quarta-feira, 11 de junho de 2014

UM BOLETIM ORIGINAL

Minha crónica no Público de hoje:
Um colega meu, professor universitário, deslocou-se a Lisboa para realizar um serviço que lhe foi pedido pelo Ministério da Educação e Ciência (MEC). Quando perguntou como seria feito o pagamento da viagem responderam-lhe que só tinha que preencher, no final, um "boletim itinerário". Pediu na secretaria da sua Faculdade esse boletim., preencheu-o com a sua melhor caligrafia, assinou-o devidamente na linha assinalada com “assinatura do servidor do Estado” e preparou o envelope para o enviar por correio normal (chamado snail-mail e a cair rapidamente em desuso). Não percebeu a nota de pé de página que dizia “preenchido em duplicado, devendo o original ser remetido com a respectiva folha à DGCP.” Qual folha? E onde ficaria a enigmática DGCP? Seria a Direcção Geral da Contabilidade Pública já extinta? E para que seria preciso um preenchimento em duplicado se só se remetia o original?

Mas lá enviou o papel. Qual não foi, porém, o seu espanto quando, não na volta do correio, mas passado um tempo, recebeu do MEC o boletim devolvido, com a indicação de que tinha enviado, em vez de um "original", uma cópia do boletim itinerário. O dito cujo “original”, ficou a saber, tinha de ser adquirido num balcão da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que detém o “exclusivo”, não sendo fotocopiável nem digitalizável. As perguntas que o meu colega logo fez foram: Como é que o MEC tinha dado conta, neste mundo inundado de fotocópias e cópias digitais, que o impresso enviado não era do modelo oficial e “exclusivo”? E como era possível que uma universidade pública fizesse e distribuísse.cópias aparentemente ilegais? Como tudo tem uma explicação – o meu amigo é cientista – pensou que devia haver um funcionário do MEC, ou porventura mais, cuja rotina diária seria o exame, com atenção paleográfica, da textura do papel e da qualidade da tinta para ver se havia contrafacção do boletim. E mais pensou que, na sua escola, com o orçamento minguado ao extremo, já não havia verba para comprar modelos “exclusivos”.

O MEC não se dignou mandar-lhe o boletim necessário. O meu colega teria de comprar um "original" numa sucursal da Imprensa Nacional - Casa da Moeda. E ele lá foi à mais próxima, perdendo duas horas do seu tempo em filas de trânsito e de gente. Interrogou-se se poderia preencher um novo “boletim itinerário” com este périplo extra, mas não quis complicar uma situação que já não lhe parecia nada simples. Ficou a saber, no balcão, que o modelo 683 tem o custo unitário de 21 cêntimos. O nome “Casa da Moeda” deve vir daí: acumulam pequenas moedas. O “servidor” comprou, preencheu e mandou ao MEC o “original”, esperando que o novo papel servisse. Não servia, pois tinha inadvertidamente deixado um campo em branco. Soube disso, passado o tempo regulamentar, quando recebeu nova carta devolvendo o impresso, pois os funcionários do MEC, no seu “modo funcionário de viver”, tinham sido incapazes de preencher a informação em falta, embora a tivessem. O “servidor do Estado” teria que completar o que faltava no original com a mesma caligrafia e reenviar. A saga não terminou, pois a deslocação ainda não foi paga.

Em suma: para ser ressarcido das despesas de uma banal viagem à capital, o “servidor” gastou ao Estado muito mais, correspondendo ao desperdício do seu tempo de trabalho com a viagem à Casa da Moeda. Não foi só ele que perdeu, fomos nós todos, que pagamos este estado de coisas. Fala-se muito em modernização administrativa, mas, a confirmar-se que o dito boletim em papel está generalizado na administração pública, o simplex não passa de um slogan vazio. O “boletim itinerário” é verdadeiramente original: trata-se de uma espécie de papel selado, embora sem selo. Sobreviveu do tempo do Estado Novo. Apesar de parco em palavras, encontram-se nele autênticas pérolas de linguagem, como “via ordinária” e “marcha”, existindo mesmo espaço para indicar o número de quilómetros a pé (não consegui saber quanto se recebe por quilómetro a pé, mas entendo esse subsídio como uma saudável medida de prevenção da obesidade). Neste tempo de Internet rápida, não é possível neste caso nem preenchimento electrónico nem a descarga do formulário em pdf de um site. Os funcionários do MEC e de todos os outros ministérios andam aos papéis, consumindo o seu tempo e o nosso em inutilidades. Eles não percebem sequer que, desde o tempo de Gutenberg, uma qualquer imprensa só pode fornecer cópias e não originais.

O país está como está porque, a avaliar por exemplos como este, ninguém se atreve a mudar velhos hábitos. Nem o ministério que, dito da ciência, deveria ser o primeiro a inovar. Eu, se fosse ao meu colega, nunca mais fazia trabalho nenhum adicional para um ministério que não é deste tempo, não evoluiu nada desde a época em que os pobres dos “servidores” tinham de andar em “marcha” por “vias ordinárias”.


Um ”Servidor do Estado” (tcarlos@uc.pt)

10 comentários:

Augusto Küttner de Magalhaes disse...

Muito bom uma vez mais.

DE facto este País não tem como melhorar.........não vamos lá!!!!!

Augusto Küttner de Magalhaes

António Pedro Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
António Pedro Pereira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
António Pedro Pereira disse...

Prof. Fiolhais:
Brilhante descrição da mentalidade ainda demasiado impregnada na sociedade.
Parece que andamos numa passadeira rolante em sentido contrário, por mais que aceleremos o passo ficamos quase sempre no mesmo sítio.
As permanências culturais (no caso as más, as da burocracia empedernida) têm uma enorme resiliência.

Anónimo disse...

Eu ando há 30 anos (outros mais) a enviar e a fornecer ao estado informações sobre a minha pessoa que ele, estado já possui aos kilos!
Cada vez que temos que fazer um procedimento, vai uma fotópia do bi, do contribuinte, agora só do cartão de cidadão, as finanças não se falam com a segurança social, esta com o iefp, por sua vez com as câmaras ou universidades muito menos..
Vá uma cópia disto, uma cópia daquilo, um impresso do modelo xpto do outro, vá uma fotografia, vá duas, vá três..

ABS disse...

... e é o mesmo no resto do Estado. Um boletim que é uma reminiscência da história. E continua em uso em todos os Ministérios. Um bom texto, que nos faz sorrir com algum desalento, confesso.

João Pires da Cruz disse...

Não entendo as aspas no servidor.

Anónimo disse...

Prof Fiolhais A mim já me aconteceu parecido, com um boletim itinerário, com a agravante de ter esperado um ano pelo dinheiro que gastei na gasolina antes de iniciar a "marcha". Quando escrevi uma carta ao responsável pela convocatória que originara a viagem, respondeu-me, em tom ofensivo e de ofendido, através de uma carta que lhe posso facultar. Enfim. É um país com idiotas a mais.

José Pereira (Zé de Baião) disse...

Nem se educa nem se deixa educar. Nem se evolui, nem se deixa evoluir. É provável que seja um contributo para a empregabilidade administrativa. Caso contrário, já tinham informatizado esse formulário, entre outros, há mais de uma década. São negócios de papeis e de cêntimos que fazem gastar ou ganhar (poupar?) milhões.

Rui disse...

Em 2022 este mesmo formulário 683 continua a resistir à passagem do tempo. Ando eu atualmente às voltas com o dito cujo para receber despesas de deslocação em serviço.

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