( Fotografia de Eugénio Lisboa)
De Eugénio Lisboa, prezado colaborador deste blogue, com grande prazer, publica-se mais este ensaio saído no “Jornal de Letras”:
Luis Amorim
de Sousa, poeta, memorialista e diplomata, é um homem do mundo. Nascido em
Angola, viveu em Lourenço Marques, em Lisboa, em Londres, em Washington, em
Brasília, de novo em Londres, depois, em Cascais, encontrando-se, actualmente,
radicado em Oxford. Escreveu poesia da mais requintadamente refinada e
memorialismo do mais capitoso. Foi conselheiro de imprensa nas embaixadas de
Portugal em terras da América, do Brasil e do Reino Unido. Foi amigo e grande
protector (no mais nobre sentido do termo) do poeta Alberto de Lacerda, ele
próprio grande personagem do mundo da cultura. E tornou-se, após o falecimento
deste, o seu herdeiro único e devotado promotor internacional.
Um homem
assim vivido é como a Nau Catrineta: tem muito que contar. E tem-no feito, ao
sabor de uma variedade de paisagens, de culturas, de latitudes
e longitudes, de encontros e desencontros. O Pico da Micaia, Crónica dos
Dias Tesos, Londres e Companhia
e, agora, Cadernos do Potomac são
testemunhos vivos, cultivados, civilizados e irónicos de uma mundividência
longa e bem recheada.
Cadernos do Potomac são o relato desenfastiado de uma
estadia de dezoito anos em Washington (com viagens pela vasta América), na
qualidade de conselheiro de imprensa, na Embaixada de Portugal. O português ultra-britânico,
que se lhe vê no porte e no débito verbal, que é Luis Amorim de Sousa, caiu em
terras do Tio Sam, em Novembro de 1976. Para trás, deixava um emprego na BBC,
de Londres. América, pois... América... “Tremo pelo meu país, quando penso que
Deus é justo”, desabafava, com alguma razão o grande Thomas Jefferson. John
Wayne, herói da minha (e do Luis) adolescência, era menos temeroso e mais
desavergonhadamente assertivo: “Eu não acho que tenhamos feito nada de mal, ao
tirar-lhes [aos índios] este grande país. Havia um grande número de pessoas que
necessitavam de terras novas, e os índios estavam egoistamente a tentar
guardá-las para si próprios.” Há gostos para todos os formatos e a América do
Norte é, a um tempo, brutalmente predadora e exigentemente autopunitiva. Teme a
Deus, como mandam os bons costumes, e ceia com o Diabo, como mandam os
apetites. Ceia talvez mais com o segundo do que teme o primeiro... Foi no meio
disto que caiu o Luis, gentleman britânico de inatacáveis boas maneiras e
impecável autodomínio. Estas memórias, como todos os seus livros, são o seu
auto-retrato.
Sendo Luis
de Sousa quem é, não se deve esperar dele confidências assassinas nem ajustes
de contas deselegantes. Uma verdadeira autobiografia não pode, por outro lado,
ser neutra nem assexuada: “Uma autobiografia recatada ou inibida é escrita, sem
entretenimento, para o escritor, e lida, com desconfiança, pelo leitor”, disse
Sir Neville Cardus, esse inconfundível crítico de música e de...cricket. E
estes Cadernos do Potomac,
civilizados em extremo, como é tudo quanto sai das mãos do seu autor, não são
nem inibidos nem recatados em demasia. Traçam um perfil, por vezes não
excessivamente lisonjeiro, de alguns diplomatas (não indicando nunca os nomes),
mas é próprio das autobiografias revelarem mais o lado negativo dos outros do
que o do próprio: “Eu sou franco acerca de mim próprio, neste livro”, dizia
Henry Kissinger, nas suas memórias, The
White House Years, para logo acrescentar: “Eu conto o meu primeiro erro na
página 850.”
Seja como
for, o teor necessário de alguma indiscrição, apimentadora do discurso, acabará
sempre por se tornar incómodo num ou noutro lugar em que o livro é recebido. Esse
é o preço a pagar pelo memorialista e por aqueles de quem ele se lembra. E não
é o único: os momentos mais saborosos e invulgares do discurso narrativo, até
porque invulgares, correm o risco de parecer que são “ficção” ou, no mínimo, um
“alindamento” da realidade. É o caso de se dizer que a realidade ultrapassa a
ficção, o que a torna duvidosa aos olhos do leitor desconfiado. Era neste
sentido que o grande Clive James, nas suas imperdíveis Unreliable Memoirs, dizia que “nada do que eu disse é factual,
excepto as passagens que parecem ficção.” E estas são mesmo garantidamente mais
“factuais”, porque tendo-se fortemente imprimido na memória do escritor, devido
à sua “singularidade”, desaparecem ou se desvanecem com mais dificuldade.
Cadernos do Potomac dão-nos a América, com as suas
riquezas e contradições, o mundo da cultura com os seres e os produtos que o
povoam, dão-nos também o mundo
improvável, surreal e, por vezes, um pouco pícaro da diplomacia, e dão-nos
ainda os conflitos profissionais – que doem – e os pessoais – que doem ainda
mais.. Personagens de forte recorte e oriundos das mais diversas paragens
enchem de colorido, de ideias e de emoções este livro que, em boa hora, Luis
Amorim de Sousa escreveu. Se os tempos de Moçambique e de Londres, nos livros
anteriores, são interminavelmente sedutores (mesmo os momentos de maior
desespero são redimidos por uma finíssima ironia, que dilui admiravelmente o
negrume), estes tempos americanos não são menos densos nem menos atraentes. O
número e a variedade de personagens que habitam este universo são
impressionantes. Os livros de memórias devem ser isto mesmo: um fulgir
constante de seres de carne e osso, com as dimensões todas e carisma bem
recortado. A este respeito, Edmund Bentley, deixou-nos esta
medalha, brincalhona, provocadora e certeira: “The Art of Biography / Is different from Geography. / Geography is
about Maps / But Biography is about Chaps.” No livro de Luis Amorim de Sousa, há alguma (pouca)
Geografia e uma grande profusão de “Chaps” (Fulanos, se quiserem...).
O livro termina, no aeroporto de Washington, de partida para Brasília, com a nova mulher, Mary, e o filho, havia pouco, nascido. Termina assim: “E de repente, como se alguém tivesse ligado um projector, uma sucessão de imagens passou vertiginosamente ante meus olhos. Vi Bud and Rose e o rosto de amigos mortos, Jim Byrne, Dan Griffin, Dan Fendrik. Vi o sorriso triste do Presidente Carter. Vi Joan Mondale vestida de amarelo. Vi Joe Hishhorn de calças aos quadrados. Vi Lillian Hellman de cigarro aceso. Vi Tip O’Neill a cantar nas festas dos irlandeses. Vi Sydney Lewis sentado na cadeira de rodas... [interrompo a longa citação]. Em suma, uma sucessão de “chaps”. Porque se trata de biografia, não de geografia. De instrução e entretenimento, não de seco relatório. E um pouco de ficção...factual. Uma narrativa empolgante, civilizada e culta.
O livro termina, no aeroporto de Washington, de partida para Brasília, com a nova mulher, Mary, e o filho, havia pouco, nascido. Termina assim: “E de repente, como se alguém tivesse ligado um projector, uma sucessão de imagens passou vertiginosamente ante meus olhos. Vi Bud and Rose e o rosto de amigos mortos, Jim Byrne, Dan Griffin, Dan Fendrik. Vi o sorriso triste do Presidente Carter. Vi Joan Mondale vestida de amarelo. Vi Joe Hishhorn de calças aos quadrados. Vi Lillian Hellman de cigarro aceso. Vi Tip O’Neill a cantar nas festas dos irlandeses. Vi Sydney Lewis sentado na cadeira de rodas... [interrompo a longa citação]. Em suma, uma sucessão de “chaps”. Porque se trata de biografia, não de geografia. De instrução e entretenimento, não de seco relatório. E um pouco de ficção...factual. Uma narrativa empolgante, civilizada e culta.
Eugénio Lisboa
1 comentário:
No fundo
No fundo
Ninguém se chama Mary.
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