Prefácio à edição portuguesa do livro "A Partícula no Fim do Universo" de Sean Carroll, que muito em breve vai sair na Gradiva,
intitula-se "Portugal e a Física numa descoberta dedicada ao Futuro da Ciência em Portugal".
São seus autores José Mariano Gago, Amélia Maio e João Varela (agradecemos à editora a gentil cedência do texto em pré-publicação):
Este livro conta a história de uma descoberta científica
extraordinária. Trata‑se,
contudo, de um episódio apenas,
e apenas num dos domínios das ciências físicas,
embora de tanta importância que dele continua a brotar
uma renovada visão do nosso mundo material, das suas
origens e do seu devir.
Data do século XIX a descoberta de que a electricidade
e o magnetismo são manifestações de um mesmo fenómeno,
a que chamamos electromagnético. Essa compreensão
nova traduziu‑se
em equações e, portanto, na capacidade
de prever fenómenos, inventar e desenvolver técnicas
novas, desde a produção e transporte de energia eléctrica
às telecomunicações e a toda a química moderna. No
século XX, a descoberta da radioactividade natural e dos
raios cósmicos e a progressiva descoberta e compreensão
dos constituintes fundamentais da matéria e das interacções
entre eles desenvolveram‑se
apenas a partir do quadro
conceptual completamente inovador que a teoria da relatividade
e a mecânica quântica vieram proporcionar.
Nos anos 60 do século XX entendeu‑se
que a «unificação
» da electricidade e do magnetismo num mesmo quadro
interpretativo era possivelmente um modelo mais
geral no qual cabia a «unificação», talvez, de todas as
outras interacções conhecidas. Depois de muitas tentativas,
um passo nesse sentido foi a construção de um modelo coerente do campo electromagnético e das interacções
«fracas
» (que se manifestam, por exemplo, no decaimento
radioactivo). Esse modelo previa a existência de novas
partículas (W e Z, entretanto descobertas efectivamente
no CERN, Organização Europeia de Física de Partículas)
e obrigava ainda à incorporação nas equações de um
«campo» ainda desconhecido a que deveria corresponder
uma partícula observável.
O livro trata, pois, da história dessa partícula imaginada,
a que hoje se chama (por razões nele explicadas) o
«bosão de Higgs», e da sua efectiva descoberta ao fim de
um esforço experimental mundial sem precedentes na
ciência.
Ao longo de mais de vinte anos, milhares de físicos e
de engenheiros, milhares de estudantes, centenas de instituições
e países de todo o mundo juntaram‑se
na invenção
e desenvolvimento de novas tecnologias, na operação
do acelerador e colisionador de partículas mais eficaz e
potente alguma vez construído, de detectores impressionantes,
e de métodos inteiramente novos de extrair,
seleccionar, partilhar e interpretar gigantescos volumes de
dados experimentais adquiridos.
O CERN, organização científica intergovernamental
europeia criada em 1954 sob a égide da UNESCO e hoje
de âmbito mundial, surge‑nos
como um dos melhores
exemplos
de sucesso de uma Europa como a desejaríamos:
aberta e apostada no conhecimento.
Em 1990 foram apresentadas propostas de experiências
capazes de revelar, ou de infirmar, a existência do «bosão
de Higgs» no novo colisionador de protões do CERN
(designado por LHC). Foi o início de um longo percurso
seguido por cientistas do LIP (Laboratório de Instrumentação
e Física Experimental de Partículas, criado em 1986, no seguimento da adesão de Portugal ao CERN) que desde
o início se associaram às experiências ATLAS e CMS, no
LHC. No total, cerca de dez mil cientistas do mundo
inteiro trabalharam para estas experiências, na maioria
europeus (incluindo portugueses, bem entendido), mas
também americanos e russos em grande número, e japoneses,
chineses, canadianos, iranianos, indianos, turcos,
israelitas ou palestinianos, cientistas de mais de duas centenas
de nacionalidades e de todos os continentes, sem
reservas ou restrições
geopolíticas. Tiveram de ser reinventadas
novas formas de organização e de funcionamento.
O CERN constituiu‑se,
mais ainda do que no passado,
numa verdadeira organização científica mundial capaz de
promover os valores da cooperação pacífica.
Foi preciso inventar ímanes supercondutores capazes
de fornecer um campo magnético suficientemente forte
para manter em trajectória circular os protões ao longo
dos 27 kms de perímetro do LHC. Foi necessário projectar
e construir o maior sistema de criogenia jamais imaginado
capaz de manter os milhares de ímanes no túnel do
LHC a uma temperatura vizinha do zero absoluto com
hélio superfluido.
Foi necessário inventar novos materiais: por exemplo,
o cristal de tungstanato de chumbo para detectar electrões
e fotões energéticos, constituído a 98 por cento de
metais pesados, mas transparente. Foi preciso desenvolver
novos fotodíodos para a detecção das emissões de luz
de baixíssima intensidade geradas nestes cristais. Para
detecção de partículas ionizantes foi preciso desenvolver
fibras ópticas cintilantes e WLS (deslocadoras do comprimento
de onda) flexíveis e resistentes à radiação.
Tornou‑se
necessário inventar uma tecnologia de microchip
capaz de suportar doses enormes de radiação no seio dos detectores, muitas ordens de grandeza acima da radiação
a que os circuitos nos satélites estão sujeitos, por exemplo.
Foi ainda preciso projectar e construir sistemas electrónicos
novos, instalados em centenas de armários com
milhares
de módulos e interconectados por dezenas
de milhares de ligações ópticas, para fazer a leitura de
dados das colisões todos os 25 bilionésimos de segundo.
Foi indispensável construir detectores únicos e excepcionais:
ATLAS, com a altura de um prédio de dez andares
e o comprimento de meio campo de futebol; CMS,
com o peso da torre Eiffel, integrando dezenas de milhões
de sensores posicionados com precisão micrométrica.
Inventou‑se
um novo conceito de computação, o GRID,
capaz de federar computadores em centenas de centros
de cálculo de instituições científicas em todo o planeta de
modo a poderem processar os dados recolhidos.
O que motivou esta comunidade de cientistas a lançar‑se
com entusiasmo num desafio científico e tecnológico
de tão excessiva complexidade? Para além do orgulho
próprio
de um grupo de físicos e engenheiros capaz de realizações
tecnológicas «impossíveis», esta comunidade
moveu‑se
pela convicção profunda de que o LHC iria trazer
algo de muito importante para a ciência. Nos seus anos
de universidade, muitos dedicaram muitas horas a tentar
compreender os mistérios quânticos e a estudar o legado
de Einstein. Maravilharam‑se
com o percurso da física de
partículas no século XX. São apaixonados da física que
dedicaram muito das suas vidas a estas experiências porque
sabem que há segredos da natureza a que o LHC pode
dar acesso. O mesmo se passa, naturalmente em todas as
ciências e em todo o progresso científico. O sucesso de um
longo esforço em física pertence também à comunidade científica no seu conjunto, porque representa
um progresso
dos valores da ciência, e diz respeito à sociedade toda, que
encoraja e apoia o desenvolvimento científico e acredita
nos seus cientistas.
Através do LIP, Portugal participa no programa experimental
no LHC desde o seu início, em 1992. O LIP
congrega o esforço nacional de física experimental de partículas,
instrumentação associada e aplicações directas à
investigação biomédica ou à pesquisa espacial. São associados
do LIP as Universidades de Coimbra, Lisboa e
Minho e o IST (Instituto Superior Técnico), além da
ANIMEE (Associação Nacional de Indústrias de Material
Eléctrico e Electrónico) e da FCT (Fundação para a
Ciência e a Tecnologia). São também membros do LIP
professores
de outras instituições de ensino superior
nacionais
e estrangeiras, politécnicas e universitárias.
Consequência directa da adesão de Portugal ao CERN
em 1985 e da internacionalização científica do país, a
participação nacional no LHC nos últimos vinte anos é
um dos casos de sucesso da ciência em Portugal. A contribuição
portuguesa, traduzida em resultados científicos e
em posições de liderança a vários níveis das colaborações
CMS e ATLAS, está acima da média. O LIP foi responsável
pela construção de componentes significativas dos
detectores, e tem a enorme responsabilidade de as manter
em funcionamento. Alguns dos seus cientistas integraram
directamente as equipas que analisaram os dados e
revelaram a existência do bosão de Higgs. Várias indústrias
nacionais forneceram componentes e serviços para
o LHC e para os seus detectores, adquirindo competências
e mercados novos. Centenas de jovens engenheiros
integrados nos projectos tiveram oportunidades únicas
de formação e várias dezenas de novos doutorados em física são hoje capazes de liderar projectos tecnológicos
complexos, como exigido na indústria moderna.
Esta é também uma ocasião para prestar homenagem à
centena e meia de físicos, engenheiros e estudantes de
investigação portugueses que nos últimos vinte anos,
de alguma forma ou nalgum período, colaboraram no
esforço nacional para este imenso empreendimento. Deve‑se
a estes actores anónimos, do LIP e de outras instituições
científicas e instituições de ensino superior, contribuirmos
de forma visível e reconhecida para esta aventura científica
extraordinária.
O LHC realizou as primeiras colisões à energia de
7 TeV em Março de 2010, mas só em 2011 reuniu um
volume significativo de dados. Em 2012 a energia do acelerador
subiu para 8 TeV. Uma vez os detectores afinados,
o desafio para os experimentalistas em CMS e ATLAS consistiu
então na análise de gigantescos volumes de dados
correspondentes a algumas dezenas de biliões de interacções
registadas. Objectivo: encontrar as poucas centenas
de colisões em que possivelmente tivessem sido criados
bosões de Higgs.
O «Modelo‑Padrão
» prevê que o Higgs se desintegre,
dando origem a outras partículas. As pesquisas de eventos
com dois fotões ou dois bosões ZZ ou WW eram as mais
promissoras. Entre Março e Junho de 2012 as experiências
tinham acumulado uma estatística equivalente à que
tinha sido conseguida em 2011. Depois da campanha de
2011 sabíamos que, a existir, o Higgs teria massa entre
114 e 127 GeV. De forma a evitar qualquer possibilidade
de enviesar os resultados, em 2012 a optimização das análises
foi feita com dados simulados ou com dados reais em
zonas de controlo, sem poder ver ou antecipar o resultado
nesta região de massa, um procedimento designado por blinding. O dia 15 de Junho foi um dia de emoção na
experiência CMS. Os resultados finais dos eventos com
dois fotões ou quatro leptões foram revelados de manhã
por jovens investigadores, e entre eles investigadores
do
LIP, que tinham passado a noite anterior a correr as análises
e a refazer os gráficos sem aquele procedimento. Foi
para nós o momento da «descoberta». O entusiasmo
e
empenho dos jovens investigadores de ATLAS foram idênticos,
e simultâneos, na aventura da descoberta do Higgs
a decair em dois fotões ou em ZZ ou WW, processo para
o qual jovens investigadores portugueses de ATLAS contribuíram
directamente.
A conferência internacional da física de partículas
(ICHEP) começaria a 4 de Julho em Melbourne, na Austrália.
De comum acordo entre as colaborações ATLAS e
CMS, a direcção do CERN e os organizadores da conferência
ICHEP foi decidido que os resultados seriam apresentados
pela primeira vez num seminário no CERN, tal
como é tradição neste laboratório para todos os seus
resultados, retransmitido para ICHEP à hora da sessão
de abertura da conferência. O seminário a 4 de Julho de
2012 começou às 9h00 em Genebra (8h00 de Lisboa)
quando eram 18h00 em Melbourne.
A descoberta do bosão de Higgs foi um marco científico
muito importante. Mas foi também «apenas» mais
um marco numa longa trajectória. A pesquisa das propriedades
do Higgs continua. Muitas das perguntas que a
física colocava há trinta anos continuam sem resposta e
as motivações para o prosseguimento do programa experimental
do LHC permanecem abertas. Os esforços e
resultados das ciências físicas nas últimas duas décadas,
nas áreas interdependentes das partículas, astrofísica e
cosmologia, deram‑nos
novos conhecimentos mas simultaneamente adensaram os mistérios. Sabemos mais, mas
também conseguimos hoje identificar muito mais perguntas
para as quais não temos resposta.
Continuamos sem saber se há simetrias adicionais na
Natureza por revelar ou se o espaço‑tempo
tem mais
dimensões
do que as que se conhecem, embora ambas as
possibilidades conduzam a explicações plausíveis para dificuldades
teóricas que parecem sugerir uma «nova física»
para além do «Modelo‑Padrão
» actual.
À matéria escura necessária para compreender a rotação
das galáxias juntou‑se
a energia escura para justificar a
expansão acelerada do universo observada nas medidas de
supernovas. Sabemos que, em conjunto, representam talvez
96 por cento do Universo, mas ignoramos o que sejam.
A tabela das três famílias de constituintes elementares
da matéria completou‑se
com o quark top descoberto no
Tevatron (nos Estados Unidos) em 1995, mas continuamos
sem perceber a razão de ser destas três famílias.
O LHC vai certamente ajudar a compreender alguns
destes mistérios. A observação do bosão de Higgs marca
o início de um programa sistemático de pesquisas de nova
física na fronteira do conhecimento actual.
Outros avanços científicos neste domínio virão certamente
de outras iniciativas corajosas, como a construção
de grandes telescópios, sondas em satélites, observatórios
de raios cósmicos ou de matéria escura, ou ainda de aceleradores
e detectores inovadores.
Esta é, contudo, apenas uma parte da aventura actual
do conhecimento humano a que chamamos Ciência e
para a qual todas as áreas científicas, todos os domínios,
todo o conhecimento, contribuem.
Nas últimas décadas, Portugal venceu finalmente o
essencial do seu secular atraso científico. O seu destino como país depende hoje, de forma decisiva, do progresso
cultural e científico que alcançar e da vontade de aprender
da sociedade inteira.
Possa esta pequena história de um sucesso científico
da humanidade inspirar os mais novos a quererem aprender
mais e a sociedade a defender o futuro da ciência em
Portugal.
José Mariano Gago, Professor do IST e presidente do LIP
Amélia Maio, Professora da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (CFNUL) e responsável do LIP pela participação portuguesa na experiência ATLAS
João Varela, Professor do IST e responsável do LIP pela participação portuguesa na experiência CMS (e porta‑voz adjunto de toda a experiência CMS em 2012‑13)
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