quarta-feira, 11 de junho de 2014

OS RALHOS DO PAI DO CÉU


Quando o tempo escurecia e ficava com «ares de trovoada» ou quando, distantes ainda, se abriam os clarões dos relâmpagos ou se ouvia o ribombar longínquo e arrastado dos trovões, a minha avó Isabel entrava em grande e angustiada agitação. Já não parava quieta, fechando portas e janelas, correndo cortinados, dizendo baixinho:

- Está a ralhar o Pai do Céu! Valha-nos Santa Bárbara! Valha-nos São Jerónimo! - E rezava, nervosa, bichanando em surdina, percorrendo a casa, de mãos junto à boca, com os dedos entrelaçados e crispados.

Persignando-se apressadamente a cada clarão e a cada estrondo, rezava:

- «São Jerónimo se levantou, seu sapatinho calçou»...

A novo clarão, agora mais intenso e prolongado, secundado de mais perto pelo ribombar já próximo, a pobre paralisava-se aterrada. Envolvia-se no xaile, cobrindo cabeça e olhos.

- Valha-nos o Santíssimo Sacramento do Altar! – E prosseguia:

... «Encontrou Santa Bárbara e esta lhe perguntou: onde vais São Jerónimo?»...

– Reza filho! – implorava, tomada de angústia. – Reza, que está a ralhar o Pai do Céu!

E a outro clarão, agora enorme, logo seguido de estampido violento e seco, mesmo sobre as nossas cabeças, siderada de pânico, deixava sair, em palavras de aflição:

- Ai querido filho da minha alma! Ai Mãe do Céu!

 - ... «Vou espalhar esta trovoada»...
– Santíssima Trindade! Valha-nos a Imaculada Conceição, Mãe de Deus! ...

«Espalha-a lá para bem longe, onde não haja eira nem beira, nem raminho de oliveira, nem guedelhinha de lã, nem alminha cristã».

Abrandada a tormenta, pela intervenção ou não das santas entidades invocadas nas suas preces, sentindo-a menos perturbada e capaz de falar, eu, que nunca me tomou o medo que a dominava, perguntava porque é que o Pai do Céu ralhava.

– O Pai do Céu – explicava ainda trémula – ralha quando se zanga com as pessoas pelas coisas más que fazem e que muito O ofendem. Ele não quer que as pessoas façam maldades. – Continuava, cheia de convicção, agora mais refeita do susto.

– Se não houvesse maldades dos homens, não havia trovoadas! – Acrescentava, já mais segura de si.

Como era grande a ilusão da minha doce e querida avó!
Quando ela morreu e com ela perdi também a sua velha casa, tão querida da minha tenra e feliz infância, perguntei à minha mãe.

- Porque morreu a avó?
- Porque a levou o Pai do Céu!
– E porquê? – Insisti.
- Só Ele sabe!
- E nunca mais volta?
- Não!
- Mas porquê?
- Ele assim o quis! Foi essa a Sua Divina Vontade!

Às minhas insistentes perguntas dava-me a mãe, maquinalmente, respostas breves, certamente desejosa que eu a deixasse em paz, entregue à sua dor. Distante que estava de tudo e de todos, a minha mãe não se deu conta de que, nesse mesmo dia, ajudava a instalar em mim e para sempre, o descrédito, nessa altura angustiante, sobre o poder, a justiça e a divina bondade do Pai do Céu da minha avó.

Uma lamparina acesa pela minha mãe no seu santuário, a iluminar Santa Rita e Santa Teresinha, duas imagens da sua muita devoção, umas rezas e uma vela acesa oferecida na sexta-feira seguinte ao Senhor Jesus dos Passos, na Igreja de São Francisco e, certamente, o tempo restituíram a paz ao seu coração.

Mesmo muitos anos depois, em dias de trovoada, ela, que não lhe tinha medo mas sim, “muito respeito”, no seu modo de se expressar, levantando os olhos da costura, dizia, talvez evocando a avó:

- Está a ralhar o Pai do Céu!
Galopim de Carvalho

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