"Quando pronuncio estas palavras, tenho treze anos. Eis-me sobre o estrado, recitando versos de Virgílio, aprendidos de cor. Estes são do início da Eneida. O herói é apanhado no meio de uma assustadora tempestade. Tremendo, suplica, implora, geme, evoca aqueles dos seus que morrem em combate, com um final mais glorioso do que afogarem-se no gelo. lamenta não morrer em combate e fica desolado com o obscuro destino que o ameaça...Estas palavras de Roger-Pol Droit, que aparecem nas páginas 15 e 16 do seu livro Voltar a ler os Clássicos (2010, Temas e Debates/Círculo de Leitores), são o mote para uma alargada reflexão do filósofo sobre o afastamento da cultura clássica do currículo da escola pública, da escola a que todos têm acesso. Se os métodos podem mudar em virtude de novo conhecimento pedagógico, o conteúdo da aprendizagem, se é fundamental, deve manter-se. E a cultura clássica é fundamental.
Todos os períodos tínhamos sessões de recitação latina. Um de cada vez, tirávamos à sorte um papel com uma referência e íamos declamar corajosamente algumas linhas de Tito Lívio ou de Cícero, alguns versos de Horácio ou de Virgílio - como eu, nesse dia.
O mesmo ritual era repetido todos os períodos, todos os anos. As sessões de recitação latina eram dadas no oitavo ano, no nono, no décimo. Precisemos o seguinte: eu não andava num colégio de padres, nem numa instituição particular. Nunca o meu pai admitiria que eu fosse aluno do ensino particular. A recitação latina não era de modo algum uma excentricidade, ou uma incrível excepção. A cena passa-se num liceu da República, em Paris, há apenas algumas décadas.
No ensino público, laico, obrigatório e gratuíto eu tinha sessões de recitação latina, temas gregos, exposições sobre as Guerras Púnicas, a conquista das Gálias, ou as comédias de Pauto.
O latim, nessa altura, era ensinado desde o sexto ano. Iniciei-o, portanto, aos dez anos. No oitavo, podíamos juntar-lhe o Grego, que me fez descobrir outras formas de letras - em todos os sentidos: grafia diferente, alfabeto distinto, mas também epopeias, tragédias, discursos políticos - mais tarde, textos filosóficos.
(...) Eu não tenho qualquer gosto pelas memórias e prefiro que os episódios, como é devido, obscureçam no passado. Nostalgia? Nem pensar. tenho consciência de que os tempos mudaram: uma época dessas encontra-se ultrapassada, definitivamente. Inútil, portanto, defender um retorno a essas pedagogias. Esses tempos já não existem..."
A cultura clássica, matriz da nossa civilização, do nosso pensamento, não é só nem principalmente passado, é sobretudo futuro. Oferece a cada um a possibilidade de se encontrar com a humanidade e, nesse encontro, construir-se e projectar-se para além da sua condição.
É precisamente isso que estamos a negar às gerações que vão chegando ao mundo e hão-de partir dele sem ter percebido a beleza a que Roger-Pol Droit começou a ter acesso ainda em jovenzito.
Maria Helena Damião
2 comentários:
Prof.ª Helena Damião:
A chave da abordagem deste excerto (não do livro) está nesta frase: «tenho consciência de que os tempos mudaram: uma época dessas encontra-se ultrapassada, definitivamente. Inútil, portanto, defender um retorno a essas pedagogias. Esses tempos já não existem..."».
O problema está em saber qual a parte do abandono dos clássicos resulta de modismos pedagógicos e qual resulta das alterações sociais (concretamente com reflexos na Educação), alterações que aconteceram em todas as épocas e que, em dados momentos, se constituiram como rupturas de natureza cultural.
Se é dever exigir esta reflexão não devemos, contudo, embarcar em nostalgias que nos levem à ilusão do retorno puro e duro ao passado.
E há muita confusão a este propósito e muitas «guerras de palavras» e de conceitos educativos a este propósito, que na maioria dos casos são verdadeiramente inúteis, pois não passam de cortinas de fumo para outros propósitos.
Prezado Leitor Manuel Silva
Um das grandes fontes de contestação de algumas áreas disciplinares - como é o caso das Clássicas, da Literatura e da Filosofia ou até das Artes e de algumas Ciências - é a metodologia que se lhes associa e que se categoriza como "tradicional", logo torturada para as pobres crianças a que interessam coisas mais ligadas ao quotidiano concreto…
Ora, uma coisa é a essência dessas áreas, outra coisa é a metodologia que se usa para ensinar o conhecimento que agregam. Se hoje sabemos mais nesta matéria seria natural que ajustássemos as metodologias e não que afastássemos essas áreas. Se consideramos a metodologia do ensino do Latim errada, expulsamos o Latim do currículo. E a velha tendência de deitarmos a criança fora com a água do banho!
Este desprezo pelo que é nuclear em termos civilizacionais não se deve apenas a modismos pedagógicos, embora eles tenham corroborado esse desprezo, há manifestos interesses de entidades, com peso crescente na definição do currículo, de deixar apenas e só o que entendem ser funcional. E que isso seja ensinado de modo “activo”, e colaborativo, com jogos e tic… A sociedade acha bem e a tutela legitima e assim estamos a preparar (quase) todos os nossos alunos para serem alegres funcionários…
Maria Helena Damião
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