segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Obituário:


A 19 de outubro de 2012 morreu Manuel António Pina; iria fazer 69 anos a 18 de novembro;
a 25 de outubro, morreu Jacques Barzun; faria 105 anos a 30 de novembro.

Tive sorte com a família. Houve sempre um bisbilhoteiro pró-ativo por perto, a dar-me a conhecer uma novidade, a espicaçar-me a curiosidade, ou a desfrutar a minha ignorância, o desconhecimento de qualquer coisa.
Durante anos desloquei-me, com alguma regularidade, a um refeitório do Ministério da Educação na avenida Duque de Ávila, com o único intuito de almoçar com a minha tia Maria Luísa, cliente habitual. Irmã do meu pai, professora primária, deliciou-me sempre com um espírito doce e aguçado, e qualidades raras de conversadora.
Frequentemente vinha munida de uma história, uma imagem ou um recorte de jornal, para meu único benefício. A tirinha do Manuel António Pina no Jornal de Notícias era artigo comum: recebia-a do meu pai, que lha enviava do Porto, deliciava-se e passava-ma.
Quando nos últimos anos de vida ela e o meu pai se juntaram em Sintra, passei a ler diretamente o Manuel António Pina: o meu pai nunca deixou de comprar o JN—penso que, sobretudo, por causa da tirinha da crónica, já que também comprava o Diário de Notícias e o Público.
Fiquei freguês.
Recentemente, após a atribuição a Manuel António Pina do prémio Camões pelo conjunto da obra, adquiri um livro inestimável duma editora nortenha: Manuel António Pina por outras palavras & mais crónicas de jornal — Porto: Modo de Ler, 2010.
É daí que, com a devida vénia, passo a citar (p.247):

«O monstro está entre nós
Tinha decidido passar ao largo da TLEBS, o Monstro criado no Ministério da Educação para obrigar os nossos filhos a odiar a língua e a literatura. Que podia uma pequena crónica contra tão medonho Golias? Mas vi num site do Ministério o que o Bicho fez a uma indefesa estrofe de Os Lusíadas, a quem chama (pobre estrofe!) "corpo linguístico ambíguo", e achei de mais. Já se sabia, desde A Lição, de Ionesco, que "a linguística conduz ao crime", mas deitar à força uma oitava na mesa de anatomia e dissecar, diante de miúdos do 9.º ano, ritmos, sentidos, imagens, ideias, sonoridades, emoções, tudo o que faz a misteriosa beleza do verso camoniano, em coisas como "núcleo(s) de complemento(s) preposiciona(is) em posição pós-verbal, constituindo uma unidade sintáctica que serve de locativo à forma verbal (…)" e "núcleo(s) de grupo nominal com função de complemento directo e modificador(es) adjectiva(is) em posição de atributo", nem o Estripador.
Nos meus tempos de estagiário li uma vez numa participação policial que alguém fora mordido por um "animal canídeo do sexo masculino, vulgo cão". Diz a TLEBS que cão é um "nome comum, contável, animado e não humano" (soa como o "robot" da Guerra das Estrelas a falar). Acho preferível a versão do polícia.
JN, 23.11.2008»

Como o escritor está longe de ser um desconhecido no De Rerum Natura, aproveito para remeter o Leitor para dois dos artigos mais recentes aqui saídos: Feira do livro do Porto (1 de junho de 2010) e Toma lá eduquês (10 de junho de 2010).
Um outro familiar mais recente, um genro canadiano com um curso de História que também não está quieto com a conversa, remeteu-me para o Jacques Barzun: Da Alvorada à Decadência—De 1500 à Actualidade; 500 Anos de Vida Cultural do Ocidente — Lisboa: Gradiva, 2003.
Começo pelas indicações de artigos no blogue: Rousseau segundo Barzun: o Bom Selvagem como abstracção (17 de janeiro de 2012) e, não muito antes, Jacques Barzun fez 104 anos! (14 de janeiro de 2012).
Deste recordista do Tempo passo igualmente a citar (Teacher in America—Indianapolis: Liberty Fund, 1981. p. xxi):

«[…]
E no entanto não podemos prescindir de ensinar—ou governar. Vemos neste preciso momento a toda a nossa volta a ameaça dos não instruídos—ameaçando-se a si mesmos e a nós, o que é o mesmo que dizer que não se autogovernam e são, portanto, ingovernáveis. Infelizmente, não há método ou artifício que substitua o ensino. Vimos baquear um método a seguir a outro—o "método global" na leitura foi um desastre nacional; e a tecnologia sob a forma da máquina de ensinar não foi menos falaciosa e absurda: requer ensino e capacidade de aprendizagem de qualidade superior para resultar. O mesmo com a fita magnética e a televisão. Ensinar não vai mudar; é um encontro mano a mano, cara a cara. Não há volta a dar—devemos ensinar e aprender, cada um por si, usando palavras e trabalhando contra as eternas Dificuldades. Esta é a condição para viver e sobreviver pelo menos toleravelmente bem: digamos, tão bem como os animais nos campos, cuja instrução vem do interior—e não precisam deste livro.»
António Mouzinho


NOTA: como desconfio de mim como tradutor, aqui segue o original do texto de Barzun:
«And yet we cannot do without teaching—or governing. We see right now all around us the menace of the untaught—the menace to themselves and to us, which amounts to saying that they are unselfgoverned and therefore ungovernable. There is unfortunately no method or gimmick that will replace teaching. We have seen the failure of one method after another—”look and say” in reading has been a national disaster; and technology in the form of the teaching machine has been no less fallacious and absurd: it takes superior teaching and learning ability to profit from the device. And so it is with film and tape and television. Teaching will not change; it is a hand-to-hand, face-to-face encounter. There is no help for it—we must teach and we must learn, each for himself and herself, using words and working at the perennial Difficulties. That is the condition of living and surviving at least tolerably well: let us say, as well as the beasts of the field, which have instruction from within—and no need of this book.»

1 comentário:

Anónimo disse...

Vêm aí os turbomédicos
Publicado em 2012-08-03

O alerta do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos de que irá aparecer por aí, num futuro próximo, aquilo que o presidente desse organismo chama de "médicos de segunda", com diplomas obtidos em escolas privadas ou por "equivalência" (à maneira da controversa licenciatura de Relvas), devia ser levado a sério pelo Ministério da Educação, que tanto fala em "rigor" e em "qualidade".

A posição da Ordem dos Médicos surge na sequência da notícia de que uma escola privada terá arranjado maneira de transformar os seus licenciados em Ciências Biomédicas em turbolicenciados em Medicina (com dois meros anos de formação especializada), entrando por "equivalência" no 4.o ano da universidade espanhola Alfonso X, El Sabio. Tudo, como habitualmente, "dentro da lei".

O "caso Relvas" é apenas expressão daquilo que poderíamos classificar de "caso português", o chico-espertismo. Este atingiu proporções inimagináveis com o negócio de diplomas em que se tornou algum ensino superior privado (uma escola já oferece mesmo "licenciaturas duplas" em quatro anos, ao bom estilo promocional do "pague uma e leve duas").

A não ser que o Ministério da Saúde faça como o da Justiça, que não aceita licenciados à bolonhesa em Direito nas magistraturas, o mais certo é que os turbomédicos acabem no SNS-D (D de "desconstruído") do dr. Paulo Macedo: ficarão em conta e, para quem é, bacalhau basta.

http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?opiniao=Manuel%20Ant%F3nio%20Pina

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