Trancrevemos o Prólogo do livro com o título de cima, da autoria de Nicholas Carra, que acaba de sair na Gradiva, em tradução de Luíza Alves Costa:
O CÃO DE GUARDA E O LADRÃO
"Em 1964, exactamente na altura em que os Beatles invadiam as rádios Norte-americanas, Marshall McLuhan publicava Understanding Media: The Extensions of Man (Compreendendo os media: as extensões do Homem) e passava de obscuro académico a estrela. Profético, sentencioso e surpreendente, o livro era um produto perfeito dos anos sessenta, essa década já distante de trips de LSD e da ida à Lua, de viagens interiores e exteriores. Understanding Media era, no fundo, uma profecia, e o que profetizava era a destruição da mente linear.
McLuhan afirmava que os “media eléctricos” do século XX — o telefone, a rádio, o cinema, a televisão — estavam a destruir a tirania exercida pelo texto sobre os nossos pensamentos e sentidos. As nossas almas, isoladas e fragmentadas, encerradas durante séculos na leitura privada de páginas impressas, tornavam-se completas novamente, ao fundirem-se no equivalente global de uma aldeia tribal. Aproximávamo-nos da “simulação tecnológica da consciência, quando o processo criativo do conhecimento se estenderá colectiva e corporativamente a toda a sociedade humana.
Mesmo no auge da fama, Understanding Media era um livro mais falado do que lido. Hoje transformou-se numa relíquia cultural, relegada para os cursos de comunicação nas universidades. Mas McLuhan, que tinha tanto de entertainer como de estudioso, era um mestre a criar frases, e uma delas saltou das páginas do livro e continua a viver como ditado popular: “O meio é a mensagem.”
O que foi esquecido na nossa repetição deste enigmático aforismo é que McLuhan não estava apenas a reconhecer e a celebrar o poder que as novas tecnologias da comunicação têm para provocar transformações. Ele estava também a lançar um aviso sobre a ameaça que esse poder representa — e o risco de não estarmos conscientes dessa ameaça. “A tecnologia eléctrica está dentro de portas,” escreveu, “e nós somos insensíveis, surdos, cegos e mudos perante o seu confronto com a tecnologia de Gutenberg, na qual e através da qual se formou o estilo de vida americano."
McLuhan compreendeu que sempre que surge um novo meio de comunicação, as pessoas ficam naturalmente reféns da informação — do “conteúdo” — que ele transporta. Elas interessam-se pelas notícias do jornal, pela música da rádio, pelos programas da televisão, pelas palavras ditas pela pessoa que está do outro lado da linha telefónica. A tecnologia do meio, por muito admirável que seja, desaparece por detrás do que quer que se transmita através dele — factos, entretenimento, instrução, conversas.
Quando as pessoas debatem (como sempre fazem) sobre os efeitos de um dado meio de comunicação serem bons ou maus, é sobre o conteúdo que discutem. Os entusiastas celebram-no; os cépticos difamam-no. Os argumentos têm sido praticamente os mesmos sempre que surge um novo meio de informação, se retrocedermos pelo menos ao tempo dos livros saídos da prensa de Gutenberg.
Os entusiastas, com razão, elogiam a torrente de novos conteúdos a que a tecnologia deu livre curso, que vêem como um sinal de “democratização” da cultura. Os cépticos, igualmente com razão, condenam a vulgaridade do conteúdo, que vêem com um sinal de “estupidificação” da cultura. O Jardim do Éden de uns é a vasta terra desolada dos outros.
A Internet foi o último meio a levantar esta discussão. O choque entre os entusiastas e os cépticos da Rede, levado a cabo ao longo das duas últimas décadas através de dúzias de livros e artigos e de milhares de artigos em blogues, videoclipes, e podcasts, atingiu o máximo da polarização, com os primeiros anunciando uma nova era dourada de acesso e participação e os segundos ameaçando com uma nova idade das trevas de mediocridade e narcisismo.
A discussão é pertinente — o conteúdo é importante — mas por estar relacionada com opiniões e gostos pessoais, chegou a um beco sem saída. As opiniões extremaram-se, os ataques tornaram-se pessoais. “Luditas!”, acusam os entusiastas com ar de desprezo. “Filisteus!”, respondem os cépticos com ar de troça. “Cassandra!”. “Pollyanna!”.
Aquilo que tanto os entusiastas como os cépticos não vêem, viu McLuhan: que, no fundo, o conteúdo do meio de comunicação é menos importante do que o meio em si, no que diz respeito a influenciar como pensamos e agimos. Como uma janela aberta para o mundo e para nós próprios, um meio de comunicação popular molda o que vemos e como olhamos para isso — e eventualmente, se o usarmos um número de vezes suficiente, modifica-nos, como indivíduos e como sociedade.
“Os efeitos da tecnologia não se fazem sentir a nível das opiniões ou dos conceitos”, escreveu McLuhan. Pelo contrário, eles alteram “padrões de percepção num passo firme e qualquer resistência.”
O autor faz drama para enfatizar os seus argumentos, mas os argumentos são válidos. Os media fazem a sua magia, ou pregam as suas partidas, exactamente aí, no sistema nervoso.
A nossa atenção no conteúdo de um meio de comunicação pode tornar-nos cegos a estes efeitos profundos. Estamos muito ocupados a ser deslumbrados ou perturbados pelo espectáculo para nos darmos conta do que vai dentro da nossa cabeça. No fundo, fazemos de conta que a tecnologia só por si não tem importância. É o modo como a usamos que importa, dizemos a nós próprios. E o resultado é um sentimento, reconfortante na sua arrogância, de que temos o controlo. A tecnologia não é mais do que uma ferramenta, inerte enquanto não pegamos nela e que volta a ser inerte quando a largamos.
McLuhan citou uma declaração de David Sarnoff, o magnata dos media que foi pioneiro da rádio na RCA (Radio Corporation of America) e da televisão na NBC (National Broadcasting Company). Qual juiz em causa própria, num discurso na Universidade de Notre Dame em 1955, Sarnoff rejeitou as críticas aos meios de comunicação de massas sobre os quais tinha construído o seu império e a sua fortuna. Ele desviou a culpa de todos efeitos negativos das tecnologias para os ouvintes e espectadores. “Somos muito rápidos a transformar os instrumentos tecnológicos em bodes expiatórios dos pecados daqueles que os utilizam. Os produtos da sociedade moderna não são só por si bons ou maus; é o modo como são usados que determina o seu valor.”
McLuhan troçou da ideia, censurando Sarnoff por falar com “a voz do sonambulismo corrente.” McLuhan entendia que todo o novo meio de comunicação nos muda. “A nossa resposta convencional aos media, nomeadamente, de que é o modo como são usados que conta, é a atitude entorpecida dos idiotas tecnológicos”, escreveu ele. O conteúdo de um meio é apenas “o pedaço de carne suculenta levado pelo ladrão para distrair o cão de guarda da mente.”
Nem mesmo McLuhan podia prever o banquete que a Internet preparou para nós: um prato após outro, cada um mais suculento que o anterior, quase sem um momento para retomar fôlego entre cada garfada. À medida que os computadores encolheram até ao tamanho de iPhones e BlackBerrys, o banquete passou a ser volante, disponível a qualquer hora, em qualquer lugar. Em casa, no trabalho, no carro, na sala de aula, na carteira, no bolso. Mesmo aqueles que estão conscientes da influência sempre crescente da Internet, raramente permitem que as suas preocupações interfiram com o uso que fazem e com o modo como desfrutam da tecnologia.
O crítico de cinema David Thomson afirmou uma vez que “as dúvidas podem-se tornar fracas face à certeza do meio”. Ele estava a falar do cinema e de como ele projecta as suas sensações e sensibilidades não só na tela mas também em nós, a plateia absorta e complacente. A sua afirmação aplica-se com mais força ainda à Internet. O ecrã do computador desfaz as nossas dúvidas com as suas benesses e comodidades. É tão bom como nosso servo que pareceria indelicado sublinhar que é também nosso amo."
NICHOLAS CARR
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1 comentário:
Do conteúdo os livros da Editora Gradiva são excelência de compromisso com a responsabilidade a trazer-nos da reflexão.
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