terça-feira, 29 de março de 2011

O 1º Jardim-Escola João de Deus de Coimbra: Coisas de Ciência em 1912.


No próximo dia 2 de Abril comemorar-se-á o centenário do primeiro estabelecimento de ensino pré-escolar em Portugal: 1º Jardim-Escola João de Deus de Coimbra. A propósito, escrevi, em altura oportuna, um texto que a seguir transcrevo, que retrata o ensino das ciências nessa escola em 1912. Este artigo foi publicado no número 32 da revista Rua Larga da Universidade de Coimbra.

"Era o dia 2 de Abril de 1912. O sorriso sereno de António irradiava a felicidade que partilhava, de mão dada, com o seu avô paterno João. Participavam na comemoração do primeiro aniversário do primeiro Jardim-Escola João de Deus, debruado com árvores centenárias que pareciam ainda ressonantes com a festa da inauguração. Contudo, já tinha decorrido um ano desde que, em Coimbra, se inaugurava o primeiro estabelecimento fixo de educação pré-escolar em Portugal, sucedâneo das Escolas Móveis (estas criadas em 1882 por um conjunto de intelectuais portugueses liderados por Casimiro Freire) segundo o Método de João de Deus.

Enquanto os elementos da Banda Militar da Infantaria 23 se colocavam a preceito na partitura de A Portuguesa, hino da República Portuguesa proclamada havia pouco mais de ano e meio, em 1910, os colegas do António e seus familiares aconchegavam-se, sem distinções de classes, géneros e sexos, no amplo jardim, espaço de escola e lugar de todas as estações e pensamentos livres, agora sobrelotado pela multidão festejante.

Como se chamado pelas afinações musicais, o eléctrico com a indicação Jardim-Escola João de Deus passou ao largo, também ele aniversariante, uma vez que circulara todo o ano pela cidade a transportar de manhã e de tarde António e os seus colegas.

Recordava as viagens matutinas, demoradas pela ansiedade de chegar ao espaço de dignidade igual entre colegas, mas alegradas pelos cantares com que se uniam em coro de vontades propulsoras.

Um sobrolho carregado trouxe-lhe a recordação dos regressos a casa, ao fim da tarde depois das cinco, em que o choro de quererem ficar para sempre no Jardim-Escola abafava o chiar metálico dos carris até aconchego do lar. Mas, persistente, cada alvorada trazia de novo o eléctrico no trilho do Jardim-Escola, lavado das tristezas vespertinas, confiante do rumo certo a conquistar dia após dia.


Naquele primeiro ano, 80 crianças entre os três e os oito anos, tinham convivido entre o Jardim, o Salão, as Salas de Aula e a Cantina, agrupados consoante a idade, por três secções. A primeira aninhava os mais pequenos com três a cinco anos de idade, 30 na totalidade. Na segunda secção, 26 crianças, de entre cinco a seis anos. O António e restantes 23 colegas com até oito anos de idade constituíam a terceira secção. Naquele primeiro ano, as professoras Guilhermina Pereira d’Eça de Figueiredo, Maria do Céo Rio e Maria Serrão da Veiga tinham guiado a aprendizagem simultaneamente racional, livre e adequada às idades em cada uma das secções.


Em cada dia útil, todos se reuniam pelas nove horas matutinas no Salão, lugar amplo de partilha de conhecimento onde, com disciplina e respeito, se desfaziam as dúvidas e se lavravam os terrenos férteis e genuínos da infância com o inovador Método de João de Deus. Em Janeiro, tinham iniciado as lições de leitura e escrita, seguidas pelas Lições de Cousas (por Saffray, traduzido por M. C. Mesquita Portugal, 1895) e trabalhos manuais diversos. Sem esquecer os primeiros seis Dons de Froëbel o Cuisenaire, o Calculador Multi-básico, as Palhinhas, os Tangrams, o Geoplano e os Blocos Lógicos, companheiros inseparáveis, entre outros jogos, da Arte das Contas (começada por João de Deus e completada pelo seu discípulo Frederico Caldeira, 1914) com que os números, a álgebra, a geometria e os volumes se aprendiam divertidamente.

Assim, prosseguiam a natural e espontânea habilidade em observar a natureza com os sentidos guiados pela curiosidade crítica e formular os porquês cardiais da explicação com as ferramentas do intelecto. Desta forma, fortalecia-se a assimilação do método científico imprescindível, a par com a alfabetização, para uma melhor formação de pessoas úteis à sociedade em transformação.


Afagado pela segurança do saber do avô João, António lembrava-se do seu maravilhamento quando, numa manhã, a professora lhes tinha mostrado como funcionava a máquina a vapor, através de um brinquedo que João de Deus Ramos provavelmente encomendara da casa de material escolar e didáctico francesa Les Fils D’Émile Deyrolle (46, Rue du Bac, Paris), e com que todos puderam brincar. Ou daquela outra manhã em que a professora tinha feito “desaparecer” um punhado de sal num vaso com água, para a seguir o fazer “reaparecer” após o ter deixado durante um dia ao Sol no Jardim! A água evaporara-se com o calor do Sol, mas o sal não. E este era o princípio do trabalho nas salinas, explicara-lhes a professora.

Um ramo de folhas bailava ao som do vento e a luz folheada iluminou outra manhã na recordação do António. Aquela em que tinham brincado com um pião de disco pintado radialmente com as cores do arco-íris (disco de Newton). Ao girar, as cores mesclavam-se todas como se de branco estivesse o disco pintado. À medida que o giro desacelerava, imergiam do branco as cores primeiras, para ficarem de novo “puras” quando o pião parava. A professora disse-lhes então que o mesmo acontecia com a luz do Sol: ela era o resultado da sobreposição de luzes de todas as cores visíveis. E ensinou que só as poderiam ver distintas e separadas se cada uma delas abrandasse em proporção diferente em relação às restantes. É isso que acontece sempre que a luz do Sol atravessa e é refractada e reflectida pelas gotas da chuva, expondo o arco-íris para nosso encanto, ou quando atravessa um prisma de vidro ou cristal como também lhes tinha mostrado a professora, reproduzindo, sem o dizer, a famosa experiência de Newton.


Um mar de gente emprestava cor ao Jardim-Escola e avivava com elevado respeito a obra materializada por João de Deus Ramos, após o seu périplo no início do século XX por diversas instituições de ensino pré-escolar por essa Europa fora, mas sintonizado com a pedagogia e didáctica inclusa na Cartilha Maternal que seu pai, o poeta João de Deus, tinha publicado em 1876. Uma toada de felicitações acarinhava toda a gente num assentimento da utilidade da educação infantil como sólida fundadora de uma sociedade com os ideais da República. “A cada novo ideal da humanidade corresponde um novo ponto de vista pedagógico”, tinha escrito João de Barros. E o do João de Deus apropriava-se oportunamente aos da República."

António Piedade

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