terça-feira, 29 de março de 2011
A FÍSICA NUCLEAR, O AMBIENTE E O KOSOVO
Agora que chegou a Portugal o medo da "nuvem de Fukushima" recupero um texto meu de há dez anos (a Física Nuclear faz agora cem anos e não 90, mas não emendei) que vinha a propósito do medo do urânio empobrecido do Kosovo (estas ondas de medo são recorrentes!). O texto saiu no meu livro "A Coisa mais Preciosa que temos", da Gradiva, que está esgotado:
Em finais do século XIX, mais precisamente em 1896, o francês Henri Becquerel foi testemunha, ainda que involuntária, da primeira manifestação reconhecida do núcleo atómico. Tinha deixado um minério de urânio numa gaveta juntamente com uma placa fotográfica e verificou, algo atónito, que a placa, apesar do escuro da gaveta, ficou impressionada.
Era caso para se ficar impressionado e ele ficou. Os núcleos atómicos tinham permanecido anónimos desde que existiam, isto é, quase desde o início do Big Bang, mas a radioactividade – os raios invisíveis provenientes do núcleo – eram um seu sinal inequívoco. Mas, apesar da evidência experimental das radiações (a que se deu o nome, seguindo o alfabeto grego, de alfa, beta e gama, conforme se desviavam para um lado, para outro, ou não se desviavam sob a acção de um campo eléctrico), não se reconheceu logo o lugar de onde vinham. Tal só aconteceu em 1911, mais precisamente a 7 de Março (fez agora 90 anos!), quando o físico britânico (nascido na Nova Zelândia e, por isso, a maior contribuição que a Oceânia deu à Física) Ernert Rutherford leu, perante a Sociedade Filosófica e Literária de Manchester, uma curta comunicação onde anunciava que a deflexão de raios alfa por uma fina folha de ouro só podia ser explicada admitindo que, no centro do átomo - essa peça mais pequeno de uma substância - existia um ponto com carga eléctrica positiva, que produzia, ele próprio, um campo eléctrico intenso. Uma fotografia famosa de 1911 mostra a nata dos físicos de então, onde não falta o jovem Rutherford, de bigode, e a única mulher, Marie Curie, a discípula de Becquerel que tinha descoberto o elemento rádio e explorado a radioactividade com prejuízo da própria saúde (viria a falecer em consequência da exposição demasiada à radiação).
O átomo é quase só espaço vazio. Se o núcleo tivesse o tamanho de um caroço de fruta colocado no centro do Estádio da Luz, os electrões mais exteriores circulariam bem longe, por volta do terceiro anel. O núcleo domina, com mão de ferro, os electrões, a orbitar à volta dele. Mas o núcleo atómico não é bem um ponto: ocupa espaço, tem estrutura interior. Apesar de ser ditatorial para a população atómica, é ele mesmo uma democracia. É formada por dois tipos de partículas, os protões e os neutrões, parecidas em tudo excepto na carga eléctrica. Pouco depois da descoberta de Rutherford identificaram-se os protões, cuja carga positiva total equilibra a carga negativa total dos electrões do átomo, e, em 1933, os neutrões, partículas sem carga. Hoje sabemos que tanto protões como neutrões são feitos de quarks, um nome que foi “roubado” por Gell-Mann ao romance “Finnegan’s Wake” de James Joyce, mas ainda não conseguimos desacorrentar os quarks (que estão condenados a permanecer juntos, em pequenos grupos, tal como alguns coitados de um programa televisivo recente).
Há na Natureza 92 átomos diferentes, desde o hidrogénio – o mais leve – ao urânio – o mais pesado - mas cada um desses átomos pode existir tendo no centro núcleos um pouco diferentes (a bem dizer, há mais do que 92, uma vez que o homem já fabricou alguns elementos transuranianos). O hidrogénio pode ter um núcleo com um só protão (é o normal), pode ter um protão e um neutrão (tem-se então o chamado deutério), ou pode ainda ter um protão e dois neutrões (o trítio). Só o hidrogénio normal é estável. Os outros dois núcleos têm neutrões a mais e são radioactivos. O neutrão decai mudando-se basicamente em protão e em electrão, conservando-se a carga total nula. Os electrões saem do núcleo, em consequência do decaimento do neutrão, constituindo os raios beta. Os raios que originam as imagens num ecrã de TV são feixes de electrões tal qual os raios beta provenientes dos núcleos. O segundo átomo mais leve é o hélio. Também o seu núcleo existe em várias modalidades. A normal ou estável é o hélio 4, com 2 protões e 2 neutrões (total 4). Os raios alfa não passam de núcleos de hélio. Uma outra forma de hélio é o hélio 3, com dois protões e um neutrão (total 3). O hélio é um ingrediente abundante no Sol, que mais não é do que uma fábrica de hélio a partir da matéria-prima hidrogénio. No Sol, quatro núcleos de hidrogénio dão origem a um núcleo de hélio 4, libertando grande energia, tal como acontece na terra numa bomba de hidrogénio ou num reactor experimental de fusão nuclear.
E, para abreviar uma história longa, chegamos ao núcleo mais pesado da Natureza – o urânio. O urânio existe em várias formas todas elas radioactivas: urânio 238, 237, 236, 235, etc. (o número é o total de protões e neutrões). O urânio está agora nas bocas do mundo por causa do Kosovo. O urânio empobrecido é quase só urânio 238, ao passo que o urânio enriquecido é o urânio 235, utilizado para cisão em centrais nucleares. O urânio 238, com mais 3 neutrões que o anterior, no fim de um complicado processo de decaimentos radioactivos (com raios alfa, beta e gama), acaba num dos maiores núcleos estáveis, o chumbo.
Desde o tempo de Becquerel e Curie que se sabe que a radioactividade excessiva é prejudicial aos seres biológicos: os raios alfa, mais pesados, são os mais nefastos. Tal acontecem porque deslocam electrões do átomo, prejudicando o desenrolar normal dos processos biológicos. Mas o urânio existe na Terra, em particular nas regiões graníticas. De resto, muitos outros núcleos radioactivos, embora em quantidades pequenas, existem também na Terra. O nosso ambiente está cheio de átomos com núcleos radioactivos, emissores de radiações alfa, beta e gama. Desde que o homem existe sobre a Terra – e já lá vai mais de um milhão de anos - se habituou a viver com isso; portanto, desde muito antes de saber que os núcleos existem, que o homem vive num ambiente de radiação, num “banho” nuclear, embora pouco intenso. Por exemplo, o carbono faz parte da vida, mas há formas radioactivas de carbono que entram dentro do nosso corpo assim como entraram dentro do corpo do homem pré-histórico (servindo esse facto para datações arqueológicas). Também o potássio dos nossos ossos é em parte radioactivo (sim, somos emissores radioactivos e parte da radioactividade a que estamos sujeitos não vem do ambiente mas sim do interior de nós próprios!). Mas de onde vieram os núcleos mais pesados que o berílio, como o carbono, o cálcio e o urânio? De dentro de uma estrela, tal como o hélio que é feito no Sol. O nosso ambiente foi “cozinhado”, e a matéria dos seres humanos com ele, no interior de uma grande estrela, que explodiu espalhando as suas entranhas no espaço em volta.
Desde pouco antes da Segunda Guerra Mundial que o homem sabe fazer núcleos novos, instáveis. Sabe, portanto, criar radioactividade artificial (foi uma filha de Madame Curie, Irène, quem primeiro a produziu). As duas bombas atómicas de 1945 lançaram radioactividade para o ambiente, assim como a central nuclear de Chernobyl, ao explodir acidentalmente em 1986. Mas, como foi dito, a radioactividade do ambiente só em pequena parte é artificial. A maior parte da radioactividade a que estamos sujeitos é natural, vinda quer do manto terrestre (a manifestação mais perigosa é o radão, um gás radioactivo que gosta de ocupar as caves em regiões graníticas) quer do espaço extraterrestre (os raios cósmicos, que resultaram de estrelas longínquas que explodiram, e que bombardeiam continuamente o nosso planeta). Quanto à radiação artificial, decerto que a há, mas a dose maior recebemo-la num normal exame de raios X ou de TAC, onde também são emitidos raios X. Num tratamento de tumores cancerígenos, a dose é enorme: o paciente sujeita-se a ela para destruir as células em proliferação descontrolada. Estes são casos evidentes da utilidade da radiação.
E o Kosovo? Não se trata de uma zona com maior radioactividade natural do que outras. A radioactividade artificial, devida ao urânio empobrecido na constituição dos obuses, é também minúscula. Se há síndrome do Kosovo, ela poder-se-á dever mais à química do que à física... Respirar ou ingerir partículas de urânio ou de qualquer outro metal pesado não é propriamente saudável. O autor destas linhas suspeita que, a haver algum patologia generalizada anormal (o que não está provado), poder-se-á tratar mais de substâncias químicas poluentes libertadas de instalações industriais bombardeadas do que do tão temido urânio empobrecido. Temos, depois de Hiroshima e Chernobyl, tanto medo da física que até nos esquecemos que é preciso ter medo da química. E, acima de tudo, é preciso saber avaliar e controlar os nossos medos.
LIVROS PARA SABER MAIS
- Rómulo de Carvalho, “História dos Isótopos”, Atlântida, 1962. Livro a reeditar pela editora Relógio d´Água e que explica, com exemplar clareza, o que são os núcleos radioactivos. Isótopos são núcleos do mesmo átomo (com o mesmo número de protões e electrões), mas com diferentes números de neutrões.
- Jaime Oliveira e Eduardo Martinho, “Energia Nuclear. Mitos e Realidades”, O Mirante, 2000. Obra pedagógica da autoria de dois físicos nucleares que se recomenda vivamente como introdução às questões do nuclear. Particularmente recomendável é o prefácio desse grande divulgador de ciência que é António Manuel Baptista. Ele insurge-se – e com razão – contra a actual fobia anti-nuclear.
Na figura: tratamento médico com radiação nuclear.
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2 comentários:
Fiquei confuso. Por este texto parece que não há nada a temer com os desastres nucleares.
Quer dizer, eu tendo a entender que se trata de uma defesa da Física contra o medo injustificado mas, continua a poder existir medo justificado, ou melhor, no Japão há algumas razões para ter medo, ou não?
Caro Tiago, o texto é um disparate pegado. Tenta esclarecer que não há que ter medo da radioactividade do urânio empobrecido (e não enriquecido, como Carlos Fiolhais escreve no título do post e corrige depois no texto em si) mas ignora quase até ao fim (e depois minimiza) os perigos da toxicologia do mesmo.
O texto nada tem a ver com a central de Fucuxima. A radioactividade é o perigo no Japão, enquanto que na Sérvia o perigo veio da toxicidade. Como se costuma dizer, o cu nada tem a ver com as calças. Este é um dos exemplos de falar sem ter nada para se dizer. Carlos Fiolhais costuma dar melhores exemplos que isto...
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