segunda-feira, 8 de março de 2010

"Não é que goste de traduzir"

Maria Helena da Rocha Pereira, um nome maior na área dos Estudos Clássicos, a primeira mulher a apresentar provas públicas de doutoramento e também a primeira catedrática da Universidade de Coimbra, recebeu mais um prémio que reconhece a sua obra. Trata-se do Prémio Vida Literária, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores.

A este propósito, reproduzimos excertos da interessantíssima entrevista que, há um ano, deu ao jornalista António Guerreiro e que foi publicada no jornal Expresso (Actual) (Fotografia de José Ventura).

A professora é em Portugal a representante mais ilustre de uma disciplina, os estudos clássicos, que era até ao final do século XIX, a disciplina mestra das Humanidades, mas é hoje um resíduo na formação universitária...
Na verdade, é uma disciplina que tem perdido muitos alunos (...) Quando na reforma de 1957 se introduziu a disciplina de História da Cultura Clássica, comum a todos os cursos de Letras, esta foi muito apreciada tanto na Universidade de Coimbra como na de Lisboa. Nessa época, os alunos tinham tido alguns anos de Latim, alguns tinham mesmo tido Grego. Eu, por exemplo, não tive Grego, só o aprendi na Faculdade. Os alunos dessa disciplina comum encontravam-se numa situação variada quanto ao conhecimento dos textos e à competência para os ler no original. Razão pela qual comecei logo a traduzir os textos fundamentais e a distribuí-los em folhas. Era o que se podia fazer na altura.

Não havia traduções portuguesas dos clássicos?
Havia muitas traduções, mas não eram traduções directas, eram pseudo-traduções, feitas de outras línguas. Hoje estamos mais bem servidos, nesse aspeto. Mas havia uma série de textos que os alunos tinham de conhecer para perceber as minhas aulas. Em 1959, publiquei a primeira edição da antologia "Hélade", tornando acessíveis os textos fundamentais da cultura grega. Depois, traduzi obras inteiras de vários autores, por exemplo A República, de Platão. Mas não é que goste de traduzir. Tenho passado a vida traduzir por necessidade. Aquilo de que gosto é do sabor do original, sinto sempre que estou a atraiçoar. O Teatro Universitário de Coimbra, no tempo de Paulo Quintela, pediu-me que eu traduzisse A Medeia, de Eurípedes. E também traduzi para eles a Antígona. Paulo Quintela fazia umas encenações maravilhosas, tinha resolvido muitobem a maneira de o coro se exprimir, algo muito difícil porque não podia ser através do canto, uma vez que não podemos reconstituir a música da Antiguidade. Era uma coisa maravilhosa ouvir os coros das tragédias gregas encenadas por ele.

Por qual dos três géneros canónicos, o épico, o lírico e o dramático, se sentiu mais atraída?
É difícil dizer. Há quem diga que eu gosto sobretudo da tragédia. Talvez seja verdade. Porque foi o fascínio pela Oresteia, de Ésquilo, um dos fatores que fizeram com que escolhesse o curso de Clássicas. Eu andava no Liceu, tinha 13 anos, e li uma excelente tradução francesa da Oresteia e fiquei maravilhada.

Entrou para a Faculdade sem saber Grego. Ao fim de quanto tempo estava em condições de ler e apreciar os textos?
No fim do curso conseguia ler os mais simples. Depois fui estudar para Oxford e um dos professores, ao saber que eu tinha apenas quatro anos de Grego, disse-me: "A Senhora é capaz de ler no original, à primeira vista, um texto seguido, mesmo de Píndaro e Ésquilo?". Eu respondi: "Desses autores, não".

Sentiu uma grande diferença (nos métodos, nos objetos de estudo) entre aquilo que tinham sido os seus estudos e aquilo que Oxford lhe proporcionou?
Lá, fui confrontada com uma diversidade de assuntos que estavam completamente ausentes dos estudos, em Portugal. Eu tinha o estatuto de "estudante reconhecida", não pertencente a nenhum College, mas já licenciada por aqui e tendo direito a um Diretor de Estudos, que foi o professor Dodds, autor de um famoso livro, Os Gregos e o Irracional. Lá aprendi Crítica Textual, Paleografia Grega, Epigrafia, enfim, tudo isso que me faltava. E estudei os vasos gregos, com o maior especialista da época, John Beazley.

Por cá, imperava a ideia de que o Latim e o Grego, enquanto "línguas mortas", deviam ser objeto de uma aprendizagem muito voltada para a gramática e para o exercício mecânico da tradução.
Sim, os textos eram meramente campos de exercício. Imperava aquele ditado: "Conjuga e declina, saberás a língua latina". Foi com essa visão asfixiante que eu quis acabar. É certo que essa aprendizagem implica um exercício de atenção e de destreza mental que têm de existir. Mas é muito pouco, em relação a toda a riqueza cultural e literária dos textos da Antiguidade. Por exemplo, assistir ao nascimento da ciência, nos Gregos, é uma coisa maravilhosa. Pouca gente sabe que o movimento da Terra à volta do Sol foi descoberto por um Grego, Aristarco de Samos. Mas isso causou a indignação de outros sábios. E depois Ptolomeu, que teve uma grande influência, negou esse movimento. E essa descoberta ficou congelada até ao Renascimento, até Copérnico.

A massa dos textos da Antiguidade que nos chegaram é apenas uma ínfima parte do que foi escrito. Como se sente o estudioso perante esta falta?
De um modo geral, chegaram-nos fragmentos ou citações feitas por outros. Mas vão ainda aparecer muitas coisas. Sabe-se que a erupção do Vesúvio, que destruiu Pompeia e Herculano, reduziu a cinzas a biblioteca de um filósofo. Tudo leva a crer que nessa biblioteca de papiros havia muitas obras dos filósofos gregos. Por enquanto não há meio de desenrolar esses papiros sem que eles não se desfaçam por completo. Pelo que os especialistas resolveram aguardar até que haja condições técnicas para os ler. E estão sempre a aparecer papiros. Muitos, no norte de África, porque o clima e o solo arenoso favorece a conservação. Outros, noutros lados.

A massa documental tem vindo a ser aumentada?
Pois tem, com descobertas constantes. Há autores cuja obra foi bastante ampliada.

Também trabalhou na edição de textos?
Sim. Do Latim, tenho a edição - a primeira que fiz - de textos de Pedro Hispano, para efeitos da história da Medicina. Durante muitos anos andei pelas bibliotecas da Europa atrás dos escritos de Pedro Hispano. Tanto quanto se sabe, não há nenhum desses escritos em Portugal. Foram livros
utilizadíssimos para o ensino, quer na Medicina quer na Filosofia.

Onde é que os encontrou?
A maior parte na Inglaterra, mas também em França e na Itália. E, surpreendentemente, uma vez fui à Polónia, com um grupo de historiadores de Medicina de vários países, e o diretor de uma biblioteca mostrou-nos algumaspreciosidades. Uma delas era a matrícula de Copérnico, que estudou em Cracóvia, e a outra era um manuscrito de Pedro Hispano que eu não conhecia. Mas voltando a meu trabalho filológico, a coisa mais importante que fiz foi a edição crítica de Pausânias, para a Biblioteca Teubneriana (uma coleção de edições críticas de textos gregos e latinos) para o qual fui convidada pela Academia das Ciências de Berlim.

As reformas do ensino secundário não têm sido muito favoráveis ao estudo do Latim e do Grego.
Pois não, e sempre que se tem proporcionado, tenho escrito sobre isso. Mas essas reformas também não têm sido muito saudáveis para o Português e para a Matemática. Há matérias que são fundamentais e têm que se aprender pelos caminhos próprios.

Neste momento há uma série de constrangimentos que tornam praticamente impossível estudar Latim e Grego no secundário.
Pois, e isso sem dúvida que atrofia os estudos clássicos na universidade. Pelo menos o latim devia ter outra presença no ensino secundário. É aceitável que um aluno vá para Direito sem saber Latim, se o Direito romano está na base do Direito europeu?

A
cultura grega e latina servem-lhe de mediação para observar o mundo contemporâneo?
Vejo sempre tudo através dessa mediação e vejo que há fenómenos que se repetem, características positivas e negativas dos tempos atuais que também existiram na Antiguidade. Uma coisa por exemplo é a República romana, a chamada Pax Romana, outra coisa é a decadência romana... e verificamos que algo se está a repetir, ao contrário da ideia dos historiadores de que a História não se repete: por exemplo, a perda dos padrões éticos, como no final do Império romano."


A entrevista completa pode ser lida aqui.

25 comentários:

joão boaventura disse...

Quando leccionei em Moçambique, em Lourenço Marques (Maputo), mais precisamente, no Liceu António Enes, , assumi o gosto de dar a conhecer as peças de Gil Vicente, através da representação.

Primeiro, voluntariamente, abri um pequeno curso de teatro com os rudimentos necessários para a representação, para o qual aderiram alguns alunos.

Quando escolhi a primeira peça, apareceram voluntários e, entre eles, um que era gago e me pôs um problema de consciência. Não o rejeitei e, para espanto meu, nos ensaios nunca gaguejou pelo que cheguei à conclusão que, com textos decorados, não tartamudeiam.

Perante esta acção encarregou-me, o então reitor, de ensaiar a Antígona de Sófocles, o que se me afigurava difícil porque não tinha a peça, embora conhecesse o enredo. Tinha conhecimento da paixão de Paulo Quintela pelo teatro Universitário de Coimbra, e da tradução da Antígona de Sófocles pela Professora Maria Helena da Rocha Pereira.

Atrevi-me a escrever à autora a contar-lhe da minha aventura, ou desventura, e a solicitar-lhe o texto, no que foi pronta, solícita e amável. Não sei se se lembrará ainda do meu pedido, mas tenho ainda comigo o folheto já todo rabiscado com indicações e anotações minhas. Embora tivesse agradecido a oferta, renovo neste momento e com prazer a dádiva da oferta sem a qual nunca teria tido a possibilidade de renovar mais uma das Antígonas que certamente não consta nas “Les Antigones”, de George Steiner.

O meu muito obrigado.

Anónimo disse...

Nem tudo... estará dito. JCN

Anónimo disse...

"TRESPASSA-SE"

Ar puro, ar fresco, ar limpo, ar renovado
pelo que diz respeito à Antiguidade:
tiremos-lhe o bolor petrificado,
demos-lhe um banho de modernidade!

Tornemo-la presente, ao nosso jeito,
no que ela tem de eterno e permanente
tanto na forma como no conceito
tentando acomodá-la à nossa mente!

Haja um novo humanismo sem prurido
nas nossas almas ao calor dos mitos
do mundo antigo... rejuvenescido!

Exorcizemos sem pestanejar
o cediço saber dos eruditos
novos padrões criando ou novas modas!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Corrijo o último verso para:

novos padrões criando em seu lugar!

Assim é que é! Poema que já corre mundo... lusófono. JCN

Anónimo disse...

ENTRE CLÁSSICOS

Minha forma de ver a Antiguidade
não se encontra nos livros, é só mimha:
é produto da minha intimidade
com todos os contornos que ela tinha.

Com seus poetas me tratei de tu,
por eles afinando a minha lira:
as suas almas pude ver a nu
como através de límpida safira.

Quanto aos demais autores dizer posso
que com eles travei conhecimento
desde os meus tempos de menino e moço.

Desenterrei do solo o seu passado,
não descobrindo caco ou monumento
que não me tenha a mente alvoroçado!

JOÃO DE CASTRO NUNES

joão boaventura disse...

Com a devida vénia

Desenterrei do blog o meu passado
Quanto aos dois autores poder dizia
Cantando de Stalin o sangue herdado
Da lusa gente, e nisso não mentia.

O tempo passa sem esclarecer
Por ilimitada a minha paciência
Obra de Piteira Santos para ler
De Joaquim Montezuma a referência.

Já que incomodar não é pecha minha
Com esta derradeira petição
Vou encerrar o que eu em mente tinha
Mesmo que continue sem audição.

João de Castro Nunes leia o que eu digo
Do que peço duelo fatal não faço
Adoro seus versos, os meus maldigo
E mais não recomeço por cansaço.

Anónimo disse...

Seja o que for que se pense,
o certo é que em tradução
a tragédia ateniense
perde toda a emoção!

JCN

joão boaventura disse...

Nesse caso deve ler
As mil interpretações
“Les Antigones” de Steiner
Multiplica as traduções

Mas em grego ou português
Tanto a paixão como a dor
Em chinês ou japonês
Está no corpo do actor

Anónimo disse...

Para João Boaventura, de ânimo grato e natural empatia:

Não é fácil ombrear
na poesia comigo,
mas desde logo lhe digo
que gostei do seu trovar.

É questão de no futuro
afinar seu violino,
tornando-o mais cristalino,
como de resto lhe auguro.

A perfeição no soneto
é difícil de atingir,
sendo preciso insistir.

O sentimento poético
do ditador soviético
é tema quase secreto!

JCN

Anónimo disse...

Traduções são traduções,
cada qual menos fiável,
pois não passam de traições,
como é frase memorável!

JCN

Anónimo disse...

Outra coisa eu não conheça
que as "Antigones" citadas
pelo Steiner: não me peça
que as volte a le requentadas!

JCN

Anónimo disse...

Em parte alguma existiu
uma outra Antígona igual
para além da que emergiu
na tragédia original!

JCN

joão boaventura disse...

De fugida em fugida
Oblitera meu pedido
É uma alma ferida
Pela cenose da vida.

Entendo a sua dor
Mas a minha não espelho
Só me resta contrapor
Seu argumento trebelho.

Os livros que me citou
Diz que em segredo estão
Desculpe essa não soou
Apresento uma moção.

Penso que conhecimento
É tema universal
Não alcanço entendimento
Desculpe não leve a mal.

Das duas, uma será:
Na estante estão perdidos
E não localizará;
Informar... só os amigos.

Discriminação será.
Ou estante ao Deus dará
No buscar preguiçará.
Emprestou... não volverá.

Acta est fabula

João de Castro Nunes disse...

Mais rábula que fábula! JCN

João de Castro Nunes disse...

Perante o seu grande empenho
pode ficar descansado
que dos recortes que tenho
hei-de achar o desejado!

Questão de tempo é somente,
não de falta de vontade
nem de caixinha indecente
imprópria da minha idade.

De resto, já lhe indiquei
onde podia encontrar
os textos que relatei
quanto à data e ao lugar.

Em todo o caso prometo
que farei as diligências
para lhe dar em directo
as pedidas referências!

JCN

joão boaventura disse...

Já estou arrependido
Pela minha teimosia.
Em muitos papeis perdidos,
Procurava, e não asia.

É um tormento sem igual
Que a ninguém eu desejo
Por isso não leve a mal,
Acredite sm bocejo.

Das referências desisto
Não morro por não saber.
Agora eou eu que insisto,
De contrário vai sofrer.

Em stress entra sem saber
E eu vou-me arepender.
O Stalin, que vá morrer
Mas, João Castro, viver.

Lucidus ordo

João de Castro Nunes disse...

Para comigo falar


A fim de me retrucar
em verso correspondente
será bom primeiramente
seu cavaquinho afinar.

Se me permite o conselho,
dado eu ser muito mais velho,
porque não prefere a prosa
que lhe sai mais primorosa
sem ser preciso, no fim,
alardear seu latim?!

JCN

joão boaventura disse...

Outro argumento apresento
Dele não me vou gabar.
Esperar não aguento
Devo logo acelerar.

Ninguém s’envergonhará
Disse Rafael Bluteau,
Quem muito abarcará
Porque muito estudou.

Ignorância em algumas
Das mil e uma sabidas
Não constituem lacunas
Das coisas desconhecidas.

Por isso vou renovar
E boa nota tomar
Do Stalin me esqueci
Por completo arrefeci.

Gratia argumentandim

Anónimo disse...

Lamento que o meu comentári que deveria anteceder o de João Boaventura, pois lhe é subjacente, não tenha merecido aprovação, originando-se uma quebra no diálogo. Ou ambos ou nenhu. Assim não vale... e saio de cena. JCN

joão boaventura disse...

Culpas não me cabem
Mas erros acontecem
Insista por favor
Repita o emissor.

Anónimo disse...

Solução... a contento: elegância, limpeza e prontidão! Bem hajam! JCN

joão boaventura disse...

Concordo.

Para finalizar.
Eu disse "meus versos maldigo" porque sei que não respondo aos cânones poéticos, nem tenho a veleidade de ser poeta, mas foi a única forma de chegar a si para que pudesse traduzir o meu pensamento.

A minha pseudo-poesia equivalia ao linguarejar da criança, da qual o poeta espanhol Campoamor dizia:

"Inventando al hablar palabras nuevas por no saber las viejas todavia"

Esta minha adenda serviu para que o último comentário acabasse no 22.º lugar. parece-me um número mais perfeito.

João de Castro Nunes sei que concordará que é agora o momento do pano descer: acta est fabula.

Foi um prazer.

Anónimo disse...

A "gratia argumentandim"
precisa de correcção:
caso contrário, o latm
passaria a ser latão,

que é um termo genuíno
usado por Aquilino.

JCN

J.G. disse...

Professor Boaventura, há quantos anos e tanta alegria por encontrá-lo por aqui. Se me lembro da Antíqua. O sr fez o favor de me encarregar de fazer a sonoplastia. Um enorme abraço. José Garcia

Cláudia S. Tomazi disse...

Sim Senhor! Isso é que certamente deveria chamar-se de pescadinha de rabo na boca.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...