domingo, 7 de outubro de 2007
EPONÍMIAS CIENTÍFICAS
No próximo mês vai sair na Gradiva o livro de Nuno Crato "Passeio Aleatório", no qual ele reúne algumas das suas saborosas crónicas na revista "Única" do "Expresso". Com a devida vénia e agradecendo ao autor a autorização pré-publicamos uma das crónicas do livro, "Eponímias científicas", esperando que ela aguce o apetite para as outras.
A designação vem dos gregos. Entre eles, «epónymos» era a personagem que dava o nome a uma cidade. Eponímia é o nome que daí deriva. A deusa Atena é a epónima da cidade Atenas. O nome da actual capital grega é, pois, uma eponímia.
O conceito generalizou-se a objectos e qualidades, por vias mais ou menos indirectas. Há eponímias famosas, como «guilhotina», nome que se dá ao instrumento destinado a matar os condenados através da queda de uma lâmina sobre o seu pescoço. Toma o nome do médico Joseph Guillotin, que piedosamente a inventou em 1789, ao que se diz para minorar o sofrimento dos condenados. Do outro lado do canal aparece-nos a eponímia «sanduíche», derivada de um político inglês que era conde de Sandwich. Tratava-se de um jogador fanático, que levava a comida dentro de pão para se alimentar sem largar a mesa de jogo. Os exemplos repetem-se, desde «Casanova» e «diesel» a «Bloody Mary» e «boicote». Mas talvez a área de actividade humana em que as eponímias mais abundam seja a ciência.
Em ciência, são inúmeras as leis e teorias associadas a nomes de cientistas. Fala-se da lei de Ohm, da pilha de Volta, da teoria da evolução darwiniana e do efeito de Gibbs. Robert K. Merton, sociólogo que fez estudos muito sérios sobre a actividade científica, disse em 1957 que, em ciência, a eponímia «é a forma mais duradoura e talvez a mais prestigiosa de reconhecimento». Como Merton era um sociólogo da velha guarda, que fazia estudos empíricos e quantitativos, acompanhou esta ideia de inúmeros exemplos e estudou casos, procurando detectar a forma como essas designações eram atribuídas. Notou diversas irregularidades e atribuições imprecisas, mas foi Stephen M. Stigler, historiador de probabilidades e estatística, quem mais acentuou essas disparidades.
Na tradição de Merton, Stigler estudou a atribuição de nomes em ciência e registou inúmeras imprecisões. A transformada de Laplace, por exemplo, muito utilizada em matemática, pois permite estudar o comportamento de uma função através de uma outra, sua transformada, foi apresentada por Lagrange antes de Laplace ter sequer iniciado a sua carreira científica. O paradoxo de Giffen, que regista a subida da procura de certos bens quando o seu preço sobe, ao contrário do que as leis gerais da oferta e procura pareceriam indicar, foi apresentado por Simon Gray antes de Robert Giffen ter nascido. A distribuição de Gauss, também chamada normal, uma lei importantíssima em probabilidades e estatística, foi apresentada por De Moivre 43 anos antes de Carl Gauss ter vindo ao mundo.
As disparidades são tantas e tão flagrantes que, em 1980, Stigler formulou a chamada Lei de Stigler da eponímia: «Nenhuma descoberta científica é designada com o nome do seu fundador original.» (Ver a antologia Statistics on the Table). Trata-se, evidentemente, de uma ironia. Mas o mais irónico ainda é que Joel Cohen, num artigo publicado em 1992, revelou que «a Lei de Stigler foi muitas vezes formulada antes de Stigler a ter sequer nomeado».
Quer tudo isto dizer que os nomes das criações científicas são completamente arbitrários? De forma alguma. O que Merton e Stigler descobriram é que as eponímias são habitualmente escolhidas informalmente por um grupo distante do cientista homenageado e atribuídas a um homem de ciência que pode não ter sido o originador do conceito ou da descoberta, mas que é conhecido e que teve um trabalho fundamental na área em causa.
Uma coisa parecida se passa com Pedro Nunes e o nónio. Em honra ao matemático português, chamamos «nónio» ao sistema de duas escalas deslizantes que permite medir um comprimento ou um ângulo. Mas esse sistema, exactamente como ainda hoje aparece na craveira e noutros instrumentos, não foi inventado por Pedro Nunes e sim pelo francês Pierre Vernier. Os franceses, ingleses, norte-americanos e outros povos chamam-lhe pois «vernier». A realidade é que não têm também razão, pois o invento francês é apenas uma adaptação da ideia original de Nunes, publicada quase 100 anos antes da de Vernier. Que nome se lhe deve dar afinal?
Em rigor, se quiséssemos nomear todos os cientistas que tornaram possível a solução final de Vernier, teríamos de designar o instrumento por Nonius- Clavius- Curtius- Vernier. Seria, evidentemente, um exagero. E talvez tivéssemos de lhe acrescentar Cláudio Ptolomeu de Alexandria, pois o nosso matemático afirmou, com humildade exagerada, ter sido esse cosmógrafo grego o originador da ideia. A discussão é infindável e nem sequer a Lei de Stigler nos ajuda. É que se dissermos a um francês que ele está errado e que a designação «vernier» é apenas a confirmação da Lei de Stigler da eponímia, corremos o risco de ele nos dizer que «nónio» é uma designação que confirma a mesma lei...
Continuemos a dizer «nónio». O francesíssimo e insuspeito Camille Flammarion afirmava em 1885, num artigo publicado na revista L’Astronomie (p. 323) que o «vernier» era uma invenção de Nunes.
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