Depois de uma polémica cultural à portuguesa, pouco renhida e logo esquecida, ou, pelo menos, cuidadosamente omitida no momento de pompa e circunstância, lá foram, na passada semana, os restos mortais de Eça de Queiroz parar a Santa Engrácia.
Os amáveis votos que se dirigem a quem falece - "Descanse em Paz" - não se aplicam, por certo, ao escritor: rumou de Paris para o cemitério do Alto de São João, depois para o cemitério de Santa Cruz do Douro e, agora, voltou a Lisboa.
Não acompanhei a cerimónia, não me interessou. Passei os olhos por duas ou três fotografias: um cenário dejà vu, triste, apesar de tudo estar no seu devido lugar e muito bem apresentado. Diferente seria se dedicássemos igual esforço a pensar em como levar a ler e a amar, na escola pública, as páginas que Eça escreveu.
Faço minhas as palavras de Eugénio Lisboa, que bem tentou que Eça ficasse, para a eternidade, onde estava: "eu acho", escreveu "que o único Panteão adequado a um grande e vital escritor é a permanência dele no coração dos seus múltiplos leitores" (aqui). E os leitores fazem-se (diria eu, sobretudo,) na escola.
Aqui ficam alguns dos textos que Eugénio Lisboa publicou sobre essa polémica que, a bem dizer, parece nunca ter existido:
- TRASLADAÇÃO DOS RESTOS MORTAIS DE EÇA DE QUEIROZ PARA O PANTEÃO (aqui)- POR FAVOR, NÃO PANTEONEM O EÇA! (aqui)- AVISO POR CAUSA DA MORAL, DO BOM SENSO E DA LEGALIDADE (aqui)- EÇA DE QUEIRÓS NÃO ERA “PESSOA DE BEM” (aqui)- O PANTEÃO DE UM ESCRITOR SÃO OS SEUS LEITORES (aqui)- EÇA NO PANTEÃO NÃO TEM ADESÃO (aqui)
5 comentários:
O problema é haver Panteão, um lugar de fúnebre discriminação. As pessoas deveriam ser enterradas onde nasceram ou onde foram felizes ou onde pediram.
As cinzas de Saramago, o nosso único Nobel da literatura, estão na sua terra-natal. E ele deve estar contente com isso…
Ai, a vaidade da distinção que adoça poucos e amarga muitos!
"Mas, do digno homem da Câmara Patriarcal, só recolhi recriminações
acerbas...
— Essa léria não pega, senhor! — gritou ele, com as veias a estalar de
cólera na cara esbraseada. — Foi Vossa Senhoria que estragou o comércio!...
Está o mercado abarrotado, já não há maneira de vender nem um cueirinho
do Menino Jesus, uma relíquia que se vendia tão bem! O seu negócio com as
ferraduras é perfeitamente indecente... Perfeitamente indecente! É o que me
dizia noutro dia um capelão, primo meu: "São ferraduras de mais para um país
tão pequeno!..." Catorze ferraduras, senhor! É abusar! Sabe Vossa Senhoria
quantos pregos, dos que pregaram Cristo na cruz, Vossa Senhoria tem
impingido, todos com documentos? Setenta e cinco, senhor!... Não lhe digo
mais nada... Setenta e cinco!
E saiu, atirando a porta com furor, deixando-me aniquilado."
De A Relíquia, de Eça de Queirós
“O maior espetáculo para o homem será sempre o próprio homem.” Também foi ele que disse.
"No adro, o meu Príncipe acendeu regaladamente um cigarro pedido ao Melchior:
– E então, Zé Fernandes, que te pareceu a cerimoniazinha?
– Muito campestre, muito suave, muito risonha... Uma delícia.
Mas o abade, que se desvestira na sacristia, apareceu, já com o seu grande casaco de lustrina, o seu velho chapéu desabado, trazidos pelo moço da residência, num saco de chita. Jacinto imediatamente lhe agradeceu tantos cuidados, a afável hospitalidade que oferecera aos ossos, durante a construção da capelinha nova. E o suave velho, todo branquinho, de faces ainda menineiras e coradas, com um claro sorriso de dentes sadios, louvava Jacinto, que assim viera de tão longe, em tão longa jornada, para cumprir aquele dever de bom neto.
– São avós muito remotos, e agora tão confusos! – murmurava Jacinto, sorrindo.
– Pois mais mérito ainda o de Vossa Excelência. Respeitar um avô morto, bem é corrente... Mas respeitar os ossos de um quinto avô, de um sétimo avô!
– Sobretudo, senhor abade, quando deles nada se sabe, e naturalmente nada fizeram. O velho sacudiu risonhamente o dedo gordo:
– Ora quem sabe, quem sabe! Talvez fossem excelentes! E por fim, quem muito se demora no mundo, como eu, termina por se convencer que no mundo não há coisa ou ser inútil. Ainda ontem eu lia num jornal do Porto, que por fim, segundo se descobriu, são as minhocas que estrumam e lavram a terra, antes de chegar o lavrador e os bois com o arado. Até as minhocas são úteis. Não há nada inútil... Eu tinha lá na residência uma porção de cardos a um canto da horta, que me afligiam. Pois reflecti e terminei por me regalar com eles em xarope. Os avós de Vossa Excelência por cá andaram, por cá trabalharam, por cá padeceram. Quer dizer: por cá serviram. E, em todo o caso, que lhes rezemos um padre-nosso por alma, não lhes pode fazer senão bem, a eles e a nós.
E assim, docemente filosofando, parámos num souto de carvalheiras, onde esperava a velhíssima égua do abade, porque o santo homem agora, depois do reumatismo do último Inverno, já não afrontava rijamente como antes os trilhos duros da serra. Para ele montar, filialmente Jacinto segurou o estribo. E enquanto a égua se empurrava pelo córrego acima, quase tapada sob o imenso guarda-sol vermelho em que se abrigava o velho, nós recolhemos a casa metendo pela serra da Lombinha, através dos milhos, e depressa, porque eu estalava, aperreado, dentro da roupa preta do meu Príncipe.
– Estão pois acomodados estes senhores, Zé Fernandes, Só resta rezar por eles o padre-nosso que recomenda o abade. Somente, eu não sei, já não me lembro do padre-nosso.
– Não te aflijas, Jacinto: peço à tia Vicência que reze por mim e por ti. É sempre a tia Vicência que reza os meus padre-nossos."
De A Cidade e as Serras, Eça de Queirós
Agradeço aos leitores a recuperação da prosa de Eça. Muito obrigada, MHDamião
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