quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

AQUI HÁ GATO DE SCHRÖDINGER


Meu artigo no último As Artes entre as Letras:

Neste ano de 2025 celebra-se o centenário de dois trabalhos revolucionários na área da física, que constituem a trave-mestre do nosso entendimento do Universo. Esses trabalhos estabeleceram formulação moderna da física quântica, a teoria que explica a estrutura e o funcionamento das partículas, dos núcleos atómicos, dos átomos, das moléculas e dos materiais. Por isso a Organização das Nações Unidas - ONU declarou no ano passado que 2025 seria o Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quânticas. Um dos autores foi o físico austríaco Erwin Schrödinger, que chegou à equação que tem hoje o seu nome, a qual, na sua primeira aplicação, permitiu conhecer as energias possíveis de um electrão no átomo de hidrogénio, o mais simples de todos. O outro autor foi o físico alemão Werner Heisenberg que, pouco antes, resolveu o mesmo problema usando um método alternativo. O próprio Schrödinger provou num trabalho publicado a meio de 1926 que os dois métodos eram perfeitamente equivalentes. Pode usar-se um ou outro não só para o átomo de hidrogénio, mas também para qualquer outro sistema quântico. E conhecemos a razão da equivalência dos métodos: os dois são duas faces da mesma moeda.

Schrödinger e Heisenberg foram dois dos maiores génios da física do século XX. As suas contribuições para essa disciplina não se ficaram por aí. O primeiro foi o autor de um famoso paradoxo, conhecido por «gato de Schrödinger», que expõe algumas dificuldades que a teoria quântica enfrenta quando confrontada com o senso comum. Por sua vez, Heisenberg foi o autor do «princípio da incerteza», segundo o qual não podemos saber ao mesmo tempo a posição e a velocidade de uma partícula, por exemplo um electrão: se soubermos onde está não podemos saber a rapidez do seu movimento e vice-versa. Os dois foram também filósofos no sentido em que ensaiaram compreensões do mundo que iam muito para além da sua ciência. Mas, unidos pela sua ciência, também tiveram separações. A principal foi política: enquanto Schrödinger decidiu abandonar o seu lugar de professor na Universidade de Berlim, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, e depois um outro lugar da Universidade de Graz, na Áustria, com a anexação da Áustria pelo seu grande vizinho, Heisenberg permaneceu na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial, tendo colaborado com os nazis na tentativa, felizmente falhada, de construção de uma bomba nuclear. Schrôdinger esteve durante os anos da guerra e do imediato pós-guerra no Instituto de Estudos Avançados de Dublin, na Irlanda, tendo, em 1955, recebido um lugar honorário na Universidade de Viena, na sua terra natal. 

O conceito criado por Schrödinger que mais entrou na cultura popular é o gato que tem o seu nome. Ele surgiu no ano de 1935, em correspondência do austríaco com o seu colega e amigo Albert Einstein, o físico suíço nascido na Alemanha que se exilou nos Estados Unidos em 1933 com a ascensão política dos nazis), no contexto da discussão das dificuldades que Einstein colocou à teoria quântica na sua forma de 1925, a qual, como rapidamente se percebeu, envolvia a ideia de probabilidades. Einstein não gostava da ideia um mundo descrito apenas por probabilidades. Estas poderiam ser úteis – ele não negava que a teoria quântica estivesse certa. Mas, por detrás das probabilidades, deveria haver um mundo realista e determinista. «Deus não joga aos dados com o Universo», disse Einstein um dia. Levantou sucessivas objeções à visão probabilística, uma das quais o «paradoxo de Einstein-Podolsky-Rosen» (EPR), que hoje é aproveitado em aplicações conhecidas por «teletransporte quântico». Schrödinger criou o termo «entrelaçamento» (em inglês «entanglement», ele era fluente tanto em alemão como em inglês, pois tinha uma avó inglesa) para descrever o fenómeno do EPR. 

Neste fenómeno, que descreve a correlação entre partículas distantes que antes estiveram em contacto, tal como na teoria quântica em geral, só se pode conhecer o estado de uma partícula quando se efectua uma experiência de medida: mas, medido o estado de uma sabe-se imediatamente o estado da outra, por muito longe que esteja.  Antes de ser sujeita a uma experiência de medida a partícula está, pelo menos matematicamente, em dois ou mais estados ao mesmo tempo. Ora, para evidenciar o absurdo de tal situação, Schroedinger imaginou um gato fechado numa caixa, cuja vida ou morte resultaria da ocorrência de um processo quântico (um decaimento radioactivo, por exemplo). 

A questão que colocou é: segundo a teoria quântica o gato estaria morto e vivo dentro da caixa, um «zombie» portanto. E só poderíamos saber se estava vivo ou morto se abríssemos a caixa. Então, de certo modo, seria o processo de observação corresponsável pela criação de realidade. Não existiria uma realidade completamente independente do observador. O gato de Schrödinger nunca foi concretizado num laboratório, mas a ideia subjacente de se ter uma partícula simultaneamente num ou em vários estados está na base da computação quântica, uma nova forma de computação que promete sere mais rápida do que a computação convencional, aquela que hoje permite o funcionamento dos nossos computadores. Os electrões ou outras partículas usadas na computação quântica podem estar numa sobreposição de estados e podem estar entrelaçadas

Schrödinger é, portanto, um autor que, não satisfeito com as suas propostas científicas, não hesitou em pô-las em causa com o exame crítico das suas implicações lógicas. Também ele como Einstein duvidou da interpretação corrente da teoria quântica. Esta é uma das marcas maiores da ciência: nunca estar satisfeito com as conclusões a que se chega. A ciência, ao contrário do que muita gente supõe, não nos dá certeza. É, principalmente, o exercício permanente da dúvida.

10 comentários:

Mário R. Gonçalves disse...

É o exercício da dúvida sim, mas com o fito de obter certezas. A ciência dá-nos certezas, sim, acho eu: a certeza de que a Terra não é plana, de que o Sol não orbita em torno da Terra, de que não há mais vida inteligente no Sistema Solar, de que uma vacina impede a doença numa altíssima percentagem, de que o mais pesado que o ar pode voar e o mais pesado que a água pode flutuar, de que se eu clicar PUBLISH no fim este comentário fica acessível a toda a humanidade. A Ciência existe para dar certezas, ou altas probabilidades. Outra coisa é o modo como procede para alcançar essas certezas - e esse método é, com efeito, o exercício permanente da dúvida. Como preconizava o grande Descartes.

Anónimo disse...

Preferível a "certeza", ou "alta probabilidade", seria "tendencial e universalmente aceite".

Carlos Ricardo Soares disse...

Por mais que eu confie na minha capacidade de interpretar e de confirmar as informações e as explicações da ciência, é legítimo e de bom senso que reconheça, primeiro, que posso estar enganado, iludido, alucinado, manipulado, viciado, errado, e, em segundo lugar, que, na realidade, estou apenas a confiar naquilo que me dizem, sendo que, mesmo os que me dizem, por exemplo, que existe o sistema solar, etc., nunca tiveram a experiência de o observar, isto para quem a necessidade de observação, nem que seja "a posteriori" da teoria, como acontece frequentemente em ciência, é uma condição essencial do conhecimento.

Carlos Ricardo Soares disse...

Não obstante, assim que chegado à "dita" observação, logo se coloca aquela exigência inicial do meu comentário anterior.

Mário R. Gonçalves disse...

Sr Carlos Ricardo Soares, nunca poderá observar a sua morte, mas deve estar relativamente certi de que ela ocorrerá. A observação 'directa' não é imprescindível em ciência, basta: 1 - a capacidade de previsão posteriormente confirmada; 2 - O consenso generalizado, validado pela História (séculos) e pela elite civilizacional da humanidade . Para mim, isso basta para pôr de lado ilusões, manipulações, alucinações e viciações. É isso que está na base do Ensino, daquilo que transmitimos como sério e confiável à geração seguinte, Outra coisa é filosofia - aí pode achar que vivemos num mundo de sombras, que não há nehuma ou há muitas realidades, que é tudo uma construção enganosa dos nossos sentidos e da nossa mente. Boa sorte com essa maneira de ver, tão alienante como qualquer religião.

TG disse...

A Ciência é uma gigantesca pirâmide de tautologias.
Razão tinha Wittgenstein quando disse:" A ilusão do Modernismo é a crença de que as leis da natureza explicam o mundo , quando na verdade apenas descrevem regularidades estruturais."
As pessoas que buscam certezas na Ciência acabam a acreditar em dogmas tal como os religiosos.
O Mario Gonçalves nem se dá conta que quando diz que o Sol não orbita a Terra apenas está a dizer uma convenção. Poderia dizer que O SOL ORBITA A TERRA, e estaria cientificamente correcto, pois é apenas uma questão de referencial.

Rui Silva

Anónimo disse...

E por entre tautologias vamos concebendo e construindo "alavancas que levantam o mundo", mesmo sem ponto de apoio.

Mário R. Gonçalves disse...

Não vou prolongar esta polémica inútil, venho uma última vez responder ao sr Rui Silva que se me dirigiu. Onde é que eu disse que "as leis da natureza explicam o mundo"? Não precisa de citar Wittgenstein, porque nenhum cientista actual usaria essa expressão. Mas se conseguem prever, garantir resultados, é porque nelas existe algo em estreita correlação ou sintonia com "o mundo". As certezas que a Ciência me dá não são dogmas nenhuns, são a antítese do dogma. Foram alcançadas por muita dúvida, muita interrogação, muita contestação, muita comprovação, num processo longo cuja essência é negar verdades a priori, ou seja, dogmas. Pelo contrário, quem não acredita na Ciência, como processo de permanente interrogação que conduz à certezas, acaba por acreditar em charlatanices de vários tipos - religiões, apocalipses, teorias da conspiração, xamans e vudus, etc etc .Acho piada que vá buscar um conceito científico derivado da teoria da relatividade - o de 'referencial' - para afirmar que pode ser verdade que o Sol orbite a Terra. Não se dá conta do enorme disparate, pois não? É porque, meu caro, a sua (in)formação científica ficou por Wittgenstein.

Carlos Ricardo Soares disse...

Presunção, água benta e certezas, cada um toma as que quer. Sem embargo de que não basta afirmar é preciso demonstrar. Escudar-se naquilo que outros disseram é como mandar ler os livros sagrados que está lá tudo. Isto pode ser uma estratégia que funciona para gente crédula que não sabe ler e até o nosso ensino, em boa parte, ainda reproduz aquele modelo catequético que sucedeu, com muito sucesso, passe a redundância, o grave e reverenciado latim, abrindo espaço para que mais e mais papagaios, uns mais do que outros, se sentissem úteis.

Anónimo disse...

Porém, voltando à vaca fria, o gato de Schrodinger - no meu modesto parecer de amador de ciência, preocupado com o desenvolvimento cultural e científico de Portugal - deveria ser objeto de estudo obrigatório nas nossas escolas EB1,2,3 + S e nos jardins de infância, onde uma grande parte dos educadores já têm mestrados e doutoramentos em que se incluem estudos especializados sobre as transmissões sinápticas, tal e qual como os seus colegas professores do secundário.
Num sistema de ensino em que a imagem de estudante ideal, culto e curioso, de há cinquenta anos, foi substituída pela nódoa que são grupos de arruaceiros, sendo os piores e mais habituais os das chamadas escolas profissionais, que se divertem, "com orgulho", a destruir e queimar o mobiliário urbano, e passam a maior parte o tempo no café a fumar erva e aolhar para o telemóvel, o estudo inter-disciplinar do gato de Schrodinger, na versão de Projeto Anual, por exemplo, seria um catalisador de curiosidade científica para alunos, encarregados de educação, professores e investigadores das ciências da educação, trazendo, de uma vez por todas, disciplina e estudo ao contexto da sala de aula.

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