sábado, 13 de janeiro de 2024

O Mundo Infestado de Demónios ou a Actualidade de Carl Sagan

Meu capítulo de um livro publicado pela Academia das Ciências (coord. Gonçalo Marcelo et al.) sobre Como Dialogar com Quem Não Quer Ouvir: para lá da polarização e da informação (Seminário de Jovens Cientistas):

Resumo:
Neste capítulo comenta-se o livro de Carl Sagan O Mundo Infestado de Demónios. A ciência como uma luz na escuridão, partindo de uma previsão aí feita de uma mistura explosiva de ignorância e poder. As presidências de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, nos Estados Unidos e no Brasil, foram exemplos do acerto dessa previsão. Apresentando o descarte de erros como uma marca da ciência, discutem-se as dificuldades do diálogo com os negacionistas da ciência. Lembram-se as listas que Sagan forneceu para “detectar disparates”. Enfatizam-se as relações entre ciência e democracia e afirma-se a pertinência nos dias de hoje do espírito crítico advogado por Sagan.

A Profecia e a sua Concretização

O último livro publicado em vida pelo astrofísico e comunicador de ciência norte-americano Carl Sagan (1934-1996), O Mundo Infestado de Demónios. A ciência como uma luz na escuridão [9], publicado originalmente em 1995, pode ser visto como uma espécie de testamento intelectual. Num tempo em que estavam na moda os discos voadores (segundo um inquérito realizado nos Estados Unidos, dois por cento dos cidadãos daquele país tinham sido raptados por alienígenas), a obra defendia a imperiosa necessidade de espírito crítico, que é um dos pilares da ciência, e que se traduz no cepticismo. O livro é um longo argumento, desdobrado em artigos que podem ser lidos independentemente, a favor da dúvida. Os textos de Sagan, nalguns casos escritos em colaboração com a sua mulher, Ann Druyan (n. 1949), resultaram de um Seminário de Pensamento Crítico na Universidade de Cornell, em Ithaca (Nova Iorque), onde Sagan era professor. Muitos deles foram escritos e publicadas na Parade, um suplemento dominical de vários jornais norte-americanos, que no total alcançavam 80 milhões de leitores. O autor não desdenhava escrever para leitores de jornais de grande circulação, na altura ainda predominantemente em papel, que facilmente acreditavam nas coisas mais incríveis, por exemplo na existência de um “dragão na garagem” para usar uma sugestiva metáfora utilizada pelo próprio Sagan nesse seu livro.

No capítulo 2, “Ciência e esperança”, encontramos uma profecia que, infelizmente, se está a cumprir neste início de século [9, p. 47]:

«Criámos uma civilização global em que os elementos fundamentais – os transportes, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, as diversões, a protecção do meio ambiente e até a instituição democrática fundamental das eleições – dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também dispusemos as coisas de forma que quase ninguém  compreende a ciência e a tecnologia. Isto é uma receita para a catástrofe. Podemos continuar durante algum tempo, mas, mais cedo ou mais tarde, essa mistura combustível de ignorância e poder vai  rebentar-nos nas mãos.»

De facto, não foram mais do que manifestações dessa explosão os resultados das eleições para a presidência dos Estados Unidos de Donald Trump em 2016 e de Jair Bolsonaro para a presidência do Brasil em 2018. Ambos, cada um à sua maneira, mostraram o efeito devastador que pode ter a mistura entre ignorância e poder. O investimento público em ciência diminuiu tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Mas, pior do que isso, os dois lideraram políticas públicas que ignoraram a ciência, prejudicando as respectivas populações. Exemplos foram: a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris de 2015 sobre alterações climáticas (para Trump as alterações climáticas não eram mais do que “um embuste criado pelos chineses para destruir a economia americana” [3]); e a continuada desflorestação da Amazónia, no Brasil. Tendo os seus mandatos coincidido com a pandemia de Covid-19 foi visível, num caso e noutro, a amplificação de desinformação sobre o vírus e a doença [4]: Trump disse que era “como uma gripe”, enquanto Bolsonaro lhe chamou uma “gripezinha ou resfriadinho”, à qual os brasileiros seriam imunes. Nas suas pitorescas palavras, “o brasileiro tem de ser estudado. Ele não pega nada. Você vê o cara pulando em esgoto ali, sai, mergulha, tá certo? E não acontece nada com ele”. Trata-se, evidentemente, de fake news, que circularam largamente graças à visibilidade dos declarantes.

Mas, mais: Trump sugeriu métodos perigosos para o tratamento da Covid-19, como injectar um desinfectante. E Bolsonaro insistiu, advogando a toma de cloroquina, um “remédio” comprovadamente ineficaz contra a Covid-19. Nenhum dos dois impulsionou de modo suficiente a vacinação em larga escala que a magnitude do problema exigia. Um executivo da Pfizer afirmou que o presidente brasileiro recusou reiteradamente a oferta de vacinas. Trump, antes de ser Presidente, tinha declarado a sua simpatia pela tese de um médico inglês, entretanto expulso da profissão, segundo a qual a vacina tríplice viral (contra o sarampo, papeira e rubéola) administrada às crianças provocava autismo. O caso da vacinação contra a Covid-19 no Brasil foi confrangedor, uma vez que não foram facultados lotes de vacinas existentes, não faltando quem fale em genocídio. Na prática, revelaram-se negacionistas dos perigos da Covid-19 e cépticos em relação à acção das vacinas, apesar de uns e outra terem sido cientificamente comprovados. O resultado foi a posição cimeira dos Estados Unidos em número total de mortes (quase 1,2 milhões de vítimas mortais, 0,4 por cento da população) e o segundo lugar do Brasil (mais de 700 mil vítimas mortais, 0,3 por cento da população).

Na sequência do citado excerto, Sagan explica a origem da metáfora da vela para referir o papel da ciência: foi retirada do livro de 1656, A Candle in the Dark, or a Treatise Concerning the Nature of Witches & Withcraft (“Uma Luz na Escuridão ou um Tratado sobre a natureza das Feiticeiras e da Feitiçaria”), do médico e humanista inglês Thomas Ady [1], escrito num tempo de caça às bruxas – o livro foi usado, sem sucesso, no famoso processo das bruxas de Salem, em Massachusetts, na América colonial, em 1692-93. E Sagan adverte para as fragilidades da ciência: “A luz da vela é trémula. A pequena mancha luminosa que projecta vacila. A escuridão adensa-se. Os demónios começam a agitar-se.” [9] A metáfora da vela invoca o poema “Uma pequenina luz” de Jorge de Sena (1919-1978):

"Uma pequenina luz bruxuleante
não na distância brilhando no extremo da estrada
aqui no meio de nós e a multidão em volta. (…)
Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha.
Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha.«
Tudo é pensamento realidade sensação saber: brilha.
Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha (…)" [10]

Foi, de facto, uma notável premonição. Hoje vivemos no tempo das notícias falsas e das verdades alternativas, convenientemente espalhadas por uma multidão de prosélitos da mentira através dos canais que a própria ciência criou. É como se o feitiço se tivesse virado contra o feiticeiro.

O que fazer?

O que fazer? Sagan aponta o caminho com clareza. Há que valorizar a ciência, reforçar a cultura científica. Mais do que colocar a ênfase, como tem sido feito predominantemente até agora, nos conhecimentos que a ciência produz, é preciso transmitir o espírito da ciência, consubstanciado no método científico. Este consiste numa cadeia que parte da hipótese, passando pela observação, experimentação (quando aplicável) e raciocínio lógico, e chega às conclusões, submetidas à crítica da comunidade científica. Sagan, adoptando a filosofia popperiana, chama a atenção para a faculdade que a ciência oferece de descartar erros: mais do que noutras actividades humanas, em ciência aprendemos com os nossos erros, eliminando-os progressivamente, embora sem nunca chegarmos a uma verdade absoluta ou definitiva. Escreveu Sagan:

Os seres humanos podem ansiar por certezas absolutas e aspirar a elas; podem pretender, como os adeptos de certas religiões, tê-las atingido. Porém, a história da ciência – de longe a pretensão de conhecimento mais bem-sucedida acessível ao homem – ensina-nos que o máximo que podemos esperar são melhoramentos sucessivos da nossa compreensão, a aprendizagem com os nossos erros, uma abordagem assimptótica do universo, mas com a limitação de sabermos que a certeza absoluta nos escapará sempre. [9, p. 50]

A citação anterior está muito na linha do filósofo britânico de origem austríaca Karl Popper (1902 – 1994), que na sua obra Conjecturas e Refutações deixou escrito:

"A história da Ciência [em maiúscula no original], tal como a história de todas as ideias humanas, é uma história de sonhos irresponsáveis, de obstinação e de erro. Mas a Ciência é uma das muito poucas actividades humanas – talvez a única – em que os erros são sistematicamente criticados e frequentes vezes corrigidos com o tempo. É por isso que podemos dizer que, em Ciência, aprendemos frequentemente com os nossos erros, e é por isso que podemos falar, clara e judiciosamente, em fazer progressos nela. Na maioria dos outros âmbitos do esforço humano, existe mudança, mas raramente progresso (a menos que adoptemos uma visão muito estreita dos nossos possíveis objectivos na vida), na medida em que quase todos os ganhos são contrabalançados, ou mais do que contrabalançados, por perdas. E, na maioria das áreas, nós nem sequer sabemos como avaliar a mudança" [7, p. 295].

Sagan sustenta que a razão pela qual a ciência funciona tão bem é o seu mecanismo corrector de erros:

"Para a ciência, não há questões interditas nem assuntos demasiado sensíveis ou delicados para serem experimentais, nem verdades sagradas. Essa abertura a novas ideias, associada ao exame mais rigoroso e céptico, separa o trigo do joio. Não interessa em que medida uma pessoa é inteligente, importante ou amada, tem de expor o seu caso a uma crítica fundamentada e determinada. As opiniões são encorajadas a divergir – substantivamente e em profundidade" [9, p. 54].

Mas o peso da realidade, percepcionada pela observação e pela experimentação, tem muita força. Ela é o último juiz quando há qualquer discussão. As palavras de nada valem contra os factos. Como diz o lema da Royal Society de Londres, a mais antiga sociedade científica em funcionamento ininterrupto, fundada em 1660 por um pequeno grupo de livres-pensadores, Nullius in verba, “Não acredites na palavra”.

A pergunta coloca-se: fará sentido um defensor da ciência discutir com quem nega a ciência, com inimigos declarados da ciência? Esta questão foi recentemente colocada pelo filósofo norte-americano Lee Mcintyre (n. 1962) no seu ensaio Como Falar com um Negacionista. Conversas com quem recusa a ciência e a razão [6]. McIntyre explica que o fenómeno do negacionismo é uma questão de identidade, de ideologia, de coesão, quer dizer, uma afirmação de tribo. Ele defende a ideia de tentar o diálogo com negacionistas, alimentando a esperança de poder “converter” alguns deles. Não querendo fazer regra geral, a minha experiência pessoal indica que não vale a pena convencer quem já está convencido e não reconhece quaisquer erros. As “conversões” são muito raras: só se viu uma vez um Saulo transformar-se em Paulo. Nunca se viu um defensor da ideia de que as viagens à Lua foram uma encenação declarar-se convencido da realidade dessas viagens. E nunca se viu um defensor da terra plana declarar, após a apresentação de provas, facilmente disponíveis, que reconhece que o planeta, afinal, é redondo.

Sagan valoriza, sem qualquer dúvida, a discussão e o confronto de opiniões diversas, mas realça sobretudo o raciocínio lógico, uma capacidade humana que tem um papel central no método científico, mas cujo uso está longe de se restringir à ciência. Acontece que nem toda a gente está pronta a aceitar o primado desse raciocínio.

O kit para detectar disparates

Mais adiante no seu livro, nomeadamente no capítulo 12 “A arte de detectar disparates”, Sagan apresenta um “kit para detectar disparates”, que mais não é um do que um manual básico para evitar erros de raciocínio que são infelizmente comuns. Vale a pena transcrever aqui os itens desse repertório, aqui numerados por conveniência:

"1. Sempre que possível deve haver uma confirmação independente dos ‘factos.’
2. Encorajar o debate substantivo das provas por parte dos proponentes de todos os pontos de vista.
3. Os argumentos apresentados pelas autoridades na matéria têm pouco peso – as ‘autoridades’ já cometeram erros no passado e voltarão a cometê-los no futuro. Talvez uma maneira melhor de dizer isto seja afirmar que em ciência não há autoridades; quando muito há ‘especialistas’.
4. Pense em mais de uma hipótese. Se há qualquer coisa a explicar, pense em todas as maneiras diferentes de o fazer (…) Depois pense em testes através dos quais possa sistematicamente refutar cada uma destas alternativas (…)
5. Tente não ficar muito preso a uma hipótese só porque é a sua (…) pergunte a si próprio por que lhe agrada. (…)
6. Quantifique. Se o que está a explicar tem alguma medida, se envolve alguma grandeza numérica. Estará muito mais bem equipado para escolher entre as várias hipóteses possíveis. (…)
7. Se há uma cadeia de argumentos, todos os seus elos têm de funcionar (incluindo a premissa) – e não apenas a maior parte.
8. A navalha de Occam. Esta excelente regra prática incita-nos, quando confrontados com duas hipóteses que explicam os dados igualmente bem, a escolher a mais simples.
9. Pergunte sempre se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio, refutada. As proposições impossíveis de refutar não valem grande coisa (…)." [9, pp. 267-268]

O segundo item parece inclinar para a abertura ao diálogo a negacionistas. De facto, a ciência deve estar, por princípio, aberta a todas as perspectivas, por estranhas que estas sejam ou pareçam: na história da ciência já vingaram muitas ideias abstrusas, como por exemplo a ideia de quantização da radiação que deu origem à teoria quântica em 1900. Mas não vale a pena voltar a considerar ideias – como, por exemplo, as que estão presentes na astrologia ou na homeopatia – que já foram sistematicamente eliminadas por vários testes. Como Sagan afirmou, numa frase que não é da sua autoria e cuja origem é incerta (é atribuída ao engenheiro e jornalista espacial James Oberg): “Devemos manter a mente aberta, mas não tão aberta a ponto de os miolos saírem da cabeça.”

O terceiro item é também digno de atenção: ao longo da história tem sido comummente invocado o peso das autoridades e esta prática continua a ser frequente. Até à alvorada da ciência moderna o pensamento de grandes nomes da Antiguidade clássica como Aristóteles era lido, sendo esperada a sua repetição acrítica. Mas Aristóteles cometeu erros evidentes, como por exemplo o erro de pensar que as mulheres tinham menos dentes do que os homens (bastava ter pedido à sua mulher para abrir a boca e dar-se ao trabalho de os contar, pedindo-lhe o gesto recíproco de contar os dele). Ainda hoje é frequente a invocação de autoridades por parte dos vendedores de qualquer coisa – por exemplo, invocar-se a autoridade de um cientista da NASA parece sempre convincente, parecendo não importar se ele é ou não mesmo da NASA [5].

O nono item volta à questão de Popper. Um exemplo é dizer-se, por exemplo, que, numa certa semana, “os nativos de Gémeos vão prosperar nas suas relações”. Este tipo de afirmações é demasiado vago. O que significa “prosperar nas suas relações”? O que é “prosperar” (seria aqui útil o uso do sexto item) e o que são “relações”? Como se poderá testar essa ideia? Perguntando aos nativos de Gémeos se prosperaram as suas relações?

Sagan também fornece, no mesmo capítulo 2, [9, pp. 270-271] algumas regras de lógica que são muito úteis para evitar falácias numa troca de argumentos. Ei-las na lista abaixo na qual algumas foram agrupadas pela sua relação próxima:

- Argumentar ad hominem: atacar quem diz e não aquilo que diz;
- O argumento de autoridade: não importa o que diz, mas quem o diz (já na lista anterior tinha havido uma advertência para os erros das “autoridades”);
- O argumento das consequências adversas: esgrimir cenários utópicos, que há que evitar a todo o custo;
- O apelo à ignorância: se não há prova de que é verdadeiro, então tem de ser falso, e vice-versa;
- A alegação especial: invocar excepções devidas a particularidades que supostamente escapam ao opositor;
- A petição de princípio: partir de uma suposição errada para chegar a uma resposta que se tem por certa;
- Observação selectiva ou selecção de circunstâncias favoráveis: um truque muito comum, que consiste, por exemplo, em escolher um dia excecionalmente frio em Los Angeles, para defender que não há alterações climáticas (como Trump chegou a fazer); pode nela incluir-se a estatística dos pequenos números: quando a amostra é pequena pouco ou nada se pode concluir;
- Compreensão errada da natureza da estatística: por exemplo, do conceito de média;
- Incoerência: dar uma explicação que funciona bem num lado, mas não funciona em todos os outros lados;
- Non sequitur ou “não se segue que”: ocorre quando há um erro lógico na passagem das premissas para a conclusão;
- Post hoc, ergo propter hoc ou “aconteceu a seguir, de modo que foi causado por”: pensar que qualquer coisa que está antes causou qualquer coisa que está depois.
- Perguntas absurdas: quando há contradição nos termos da própria pergunta.
- Meio excluído ou falsa dicotomia: quando só há duas possibilidades opostas e, portanto, na nenhuma intermédia; inclui, em particular, o “curto prazo versus longo prazo”, quando há uma perspetiva temporal nas escolhas, e o “declive escorregadio”, isto é, confundir uma situação intermédia com a extrema.
- Confusão entre correlação e causa: correlação não tem de significar causalidade, embora haja casos em que isso aconteça, por exemplo o aumento do dióxido de carbono da atmosfera causa aumento da temperatura do globo;
- O “homem de palha”: inventar uma figura que é uma caricatura facilmente atacável pelas suas evidentes debilidades;
- Provas suprimidas ou meia-verdades: de significado evidente, é muito comum na retórica política ou na publicidade;
- Palavras astutas (escolher eufemismos em vez de usar uma designação mais fiel e entendível, algo também muito comum na retórica política).

Há decerto mais falácias, e há livros de lógica sobre elas, mas aquelas que foram enunciadas acima chegam para verificar se uma discussão é bem feita ou se há erros de lógica. Os negacionistas da ciência incorrem frequentemente em falácias: ao fazê-lo estão a recusar uma parte essencial do método científico, que é o raciocínio lógico. Considerando este repertório torna-se mais fácil encontrar erros, como fazem os cientistas diariamente na sua profissão. O cepticismo dos cientistas pode e deve ser partilhado por todo o tipo de pessoas na sua vida comum. Escreve Carl Sagan:

"Ao mesmo tempo, a ciência exige o mais vigoroso e radical cepticismo. Dado que a grande maioria das ideias está simplesmente errada e a única maneira de separar o trigo do joio é através da experimentação e da análise crítica, quem for aberto a ponto de ser crédulo e não tiver um micrograma de sentido céptico não conseguirá distinguir as ideias prometedora das ideias sem valor. Aceitar de forma acrítica qualquer noção, ideia ou hipótese é o mesmo que não saber nada. As ideias contradizem-se umas às outras; apenas através do exame céptico seremos capazes de as seleccionar. Alguma são de facto melhores do que outras" [9, p. 38].

Sagan acrescenta, falando em nome da ciência e dos cientistas: “É melhor ser demasiado céptico do que demasiado crédulo” [9, p. 386]. É isto que os negacionistas da ciência não percebem: são demasiado crédulos e nunca poderão ser demasiado cépticos.

Ciência e democracia

Na obra aqui em análise, Sagan menciona a influência da ciência e tecnologia na instituição das eleições. Tanto nos Estados Unidos como no Brasil se usam processos de votação electrónica, que no último caso são globais e sem alternativa: estamos perante um exemplo de aplicação da informática na recolha dos votos. É difícil ou mesmo impossível manipular os resultados registados em máquinas devidamente certificadas. Já o uso de redes sociais para manipular eleitores através de campanhas dirigidas a certos sectores devidamente identificados, isso tem sido muito fácil. Ficou famoso o escândalo, que explodiu em 2014, da empresa britânica Cambridge Analytica, que teve de fechar operações em 2018, depois de se ter sabido que se tinham apoderado de dados do Facebook para campanhas políticas, incluindo a campanha eleitoral britânica que precedeu o referendo à saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit) e a campanha da eleição nos Estados Unidos que deu, embora por pequena margem, a vitória a Trump. Mas esse caso pode ser apenas a ponta de um iceberg: empresas e hackers têm recorrido às redes sociais, muitas vezes com a conivência destas. Trump e Bolsonaro usaram abundantemente as redes sociais (aliás continuam a usar, embora apeados do poder). Estamos perante armas de desinformação maciça.

Actualmente, com o desenvolvimento e proliferação de programas de inteligência artificial, torna-se cada vez mais fácil o uso dessas técnicas de intoxicação. Com os chamados deep fakes, é possível manipular a imagem de um líder político, com imagem e som muito plausíveis, fazendo parecer que emite mensagens que na realidade são contrárias ao seu pensamento e vontade.

No entanto, apesar de todas as campanhas, umas por meios legais e outras usando outros meios, o resultado das eleições é sempre incerto, uma vez que na essência da democracia está a livre vontade dos cidadãos expressa nas urnas. Os maus governos podem ser descartados, tal como acontece com os erros científicos no quadro do funcionamento da ciência. Através do processo eleitoral, podem ser afastados os governantes que os cidadãos não querem, por, no seu entender, não terem defendido os interesses da comunidade: exemplos são as falhadas reeleições de Trump e Bolsonaro, respectivamente em 2020 e em 2022, resultados que não foram bem recebidos nem pelos candidatos nem por muitos dos seus apoiantes. Karl Popper chamou a atenção para esse paralelismo entre ciência e democracia, um paralelismo que foi também analisado pelo escritor de ciência Timothy Ferris (n. 1944), no seu livro Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza [2]. Mas Sagan, conhecedor decerto das posições de Popper, também abordou, em O Mundo Infestado de Demónios, a relação entre ciência e democracia. Vale a pena lembrá-lo, até porque a sua mensagem não perdeu de modo nenhum actualidade. No capítulo “Ciência e Esperança”:

"A ciência alimenta-se da livre troca de ideias e, a bem dizer, exige-a; os seus valores são a antítese do secretismo. A ciência não está ligada a posições vantajosas ou privilegiadas, e em conjunto com a democracia encoraja opiniões não convencionais e debates vigorosos: ambas requerem um raciocínio adequado, uma argumentação coerente, padrões de prova e honestidade rigorosas. A ciência é uma maneira de desmascarar aqueles que se limitam a simular o conhecimento" [9, p. 63].

Apesar dos traços de semelhança entre ciência e democracia, enfatizados por Sagan, por haver, em ambas, expressão de opiniões, organização de debates e necessidade de honestidade intelectual, o facto é que os negacionistas da ciência Trump e Bolsonaro foram eleitos. O primeiro, paradoxalmente, no país mais desenvolvido do mundo e que o é justamente pela sua enorme capacidade científico-tecnológica, que necessita de um sistema de educação robusto. No capítulo 25, “Os verdadeiros patriotas fazem perguntas”, escrito em colaboração com Ann Druyan (que tem sabido manter viva a memória do marido), Sagan vai mais longe na análise da relação entre ciência e política:

"Os métodos da ciência – com todas as suas imperfeições – podem ser utilizados para melhorar os sistemas social, político e económico, e, isto, em minha opinião, aplica-se seja qual for o critério de melhoria adoptado. Como é isto possível se a ciência se baseia na experiência? Os seres humanos não são electrões nem ratos de laboratório. No entanto, qualquer lei do Congresso, qualquer decisão do Supremo Tribunal, qualquer directiva presidencial sobre segurança nacional, qualquer alteração da taxa de juro, é uma experiência" [9, p. 527].

De certo modo, a administração Trump foi também uma experiência, da qual, em 2021, o eleitorado tirou as suas conclusões. Paira ainda no ar a possibilidade da sua recandidatura em 2024. E nessa altura haverá novas conclusões.

Sagan fala com profunda admiração dos pais fundadores dos Estados Unidos, entre os quais se deve destacar o cientista e diplomata Benjamin Franklin (1806-1790), autor de estudos experimentais sobre a electricidade atmosférica. E fala também de Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro presidente dos Estados Unidos, não hesitando em chamar-lhe cientista. Detentor de propriedades agrícolas, fazia um registo sistemático do tempo. É um facto que, no dia da independência do seu país, 4 de julho de 1776, não deixou de fazer as suas regulares observações meteorológicas. Afirmou Jefferson: “A ciência é a minha paixão, a política o meu dever”. 

 Sagan não o refere, mas um dos grandes amigos de Jefferson foi o cientista e diplomata português Abade José Correia da Serra, que foi sócio (fellow) da Royal Society e o secretário da Academia de Ciências de Lisboa no seu início em 1779. A mansão de Jefferson, na plantação Monticello, em Charlottesville, Virgínia, perto de Washington D. C., tinha um quarto permanentemente à disposição do amigo português, com quem ele gostava de discutir ideias. Os Estados Unidos nasceram, de facto, num momento alto do Iluminismo e essa “marca de água” não pôde deixar de impregnar a sua evolução posterior. Não deixa de ser irónico que, na actualidade, essa marca seja por muitos despercebida.

O autor do Mundo Infestado de Demónios conclui este seu livro de forma lapidar, com uma apologia da educação, o meio que a sociedade criou para preparar para a vida:

Se não formos capazes de pensar por nós próprios, se não estivermos dispostos a questionar a autoridade, ficamos nas mãos dos que detêm o poder. Mas se os cidadãos tiverem um bom nível educacional e souberem formar as suas próprias opiniões, os detentores do poder trabalham para nós. Em todos os países devíamos ensinar às crianças o método científico e o interesse de uma Declaração de Direitos. Isto trará alguma decência, alguma humildade e algum espírito comunitário. No mundo infestado de demónios em que vivemos pelo facto de sermos humanos, isto pode ser tudo o que nos separa da escuridão envolvente. [9]

Talvez Sagan tenha sido demasiado optimista quanto à confiança na educação, uma educação que transmita o método científico assim como os direitos humanos, que evidentemente transcendem o método científico. A educação por muito importante que seja – e é, de facto, absolutamente indispensável! – pode não chegar para garantir uma vida colectiva minimamente decente, pode não garantir a todos bem-estar num sistema democrático. A ciência é uma das dimensões do ser humano e a ética, o direito e a política são outras, sendo necessário que todas elas se harmonizem. Não é apenas a ciência que tem de constituir uma luz que dissipe as trevas, também a ética, o direito e a política têm a obrigação de iluminar o nosso caminho.

A actualidade de O Mundo Infestado de Demónios

Numa recensão publicada em 2012 no jornal The Guardian da autoria do jornalista britânico Tim Radford (n. 1963) [8], foi colocada a questão da actualidade de O Universo Infestado de Demónios. Até que ponto resistiu o livro a uma leitura passados mais de quinze anos após a sua publicação original? O recenseador faz notar com inteira razão que os tempos tinham mudado muito com a rápida transição digital: por exemplo, na época ainda existia larga circulação de jornais em papel, não havendo ainda smartphones e tablets com acesso à Internet por todo o lado. O Facebook nasceu em 2004 e o Instagram em 2010. O YouTube só surgiu em 2005, tendo sido adquirido pela Google no ano seguinte, ao passo que o Twitter surgiu em 2006. O iPhone da Apple só apareceu em 2010, tal como o iPad, da mesma empresa. É legítimo supor que todas essas inovações tecnológicas, que proporcionam uma extraordinária partilha de informação e de conhecimento entre os humanos, pudessem ter tornado as pessoas menos susceptíveis a crenças em coisas estranhas. Mas, como está bem evidente, não é isso que se tem passado. Todos esses meios, onde qualquer um pode verter qualquer conteúdo a seu bel-prazer, serviram para espalhar um enorme oceano de notícias falsas que nos vai inundando. E as mais variadas crenças, alimentadas por essa torrente, continuam muito entranhadas.

Radford termina a sua recensão debruçando-se sobre a questão da educação. Serve-se de uma citação de uma frase, então recente, de um legislador do estado do Texas, nos Estados Unidos, em que ele se pronuncia sobre a responsabilidade do seu estado pela educação dos cidadãos: “De onde é que veio esta ideia de que toda a gente tem direito a educação gratuita, a cuidados médicos gratuitos, a tudo gratuito? Veio de Moscovo, da Rússia. Veio directamente das entranhas do Inferno.” [8] E Radford remata com uma pergunta retórica: “Será que vivemos num mundo assim tão diferente [daquele em que vivia Sagan no século passado]?” [8].

O mundo é essencialmente o mesmo: o mundo somos nós, os seres humanos da espécie dita sapiens, só sendo diferentes os meios tecnológicos de que dispomos. O facto de as redes sociais terem passado a influenciar as nossas vidas apenas incrementou a visibilidade da irracionalidade humana. Nem sempre somos sapiens. Padecemos de medos irracionais, como o de sermos raptados por extraterrestres vindos do espaço ou de sermos atacados por dragões nas nossas garagens. Não existem, que se saiba, nem extraterrestres malvados que nos tenham invadido nem dragões furiosos escondidos nas nossas casas, mas, se é verdade que todos temos um lado racional, não é menos verdade que todos temos um lado irracional: alguns parecem gostar, mais do que outros, de exibir este lado, como está prodigamente à vista na Internet.

Hoje os leitores, predominantemente digitais, mais facilmente acreditam em qualquer coisa do que antes até porque, apesar de toda a liberdade de publicação, os livros e a imprensa exigem, em geral, alguma curadoria por empresas e instituições que prezam a sua credibilidade. Numa sociedade onde o relativismo é galopante (em parte, devido à influência de ideologias pós-modernas, para as quais “tudo vale”) e o erro está omnipresente (apesar do aparecimento de fact-checking, tornou-se impossível desmascarar as numerosas manifestações do erro, algumas das quais bastante subtis), é preciso, através não só da escola, mas também dos meios de comunicação social de todos os tipos, fazer brilhar a luz da ciência, por muito pequena que esta pareça. Parafraseando Jorge de Sena, curiosamente um poeta, romancista e ensaísta que tinha formação em engenharia civil: “Tudo é incerto ou falso ou violento”. Mas ela brilha!

Bibliografia
1. Ady, T., A Candle in the Dark, or a Treatise concerning the Nature of Witches & Witchcraft…, Printed for R.I., 1656.
2. Ferris, T., Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza, Gradiva, 2013.
3. Fiolhais, C. & Marçal, D., A Ciência e os seus Inimigos, Gradiva. 2018 [1.ª ed., 2017].
4. Marçal, D. & Fiolhais, C., Apanhados pelo Vírus: Factos e mitos sobre a COVID-19, Gradiva, 2020.
5. Marçal, D., Pseudociência, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2014.
6. McIntyre, L., Como Falar com um Negacionista. Conversas com quem recusa a ciência e a razão, Desassossego (Grupo Saída de Emergência), 2022.
7. Popper, K., Conjecturas e Refutações. O desenvolvimento do conhecimento científico, Almedina, 2018 [2003].
8. Radford, T., “The Demon-Haunted World by Carl Sagan – review” in The Guardian. 20 de Julho de 2012. Disponível em https://www.theguardian.com/science/2012/jul/20/demon-haunted-world-carl-sagan-review.
9. Sagan, C., O Mundo Infestado de Demónios. A ciência como uma luz na escuridão, Gradiva, 2012 [1.ª ed., 1997].
10. Sena, J., de Poesia II, Guimarães, 2015.

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