segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

LEMBRANÇA DE NATÁLIA CORREIA

Por Eugénio Lisboa 
 
Contactei, pessoalmente, Natália Correia, por duas vezes, além de a ter lido sempre, com admiração e quase fascínio. Era uma personagem inesquecível: fisicamente muito atraente ou até, nos seus tempos áureos, deslumbrante, destemida até dizer chega, livre, afrontosamente, em tempos de ditadura, a Natália envergonhava, com a sua liberdade livre, o português médio, que se encolhia, amedrontradiço e conformista, perante os ditames estúpidos e caseiros do Estado Novo.
 
Retrato de Natália Correia por Carlos Bottelho
Antes de a conhecer pessoalmente, ela esteve envolvida na minha vida, de modo breve e sem grandes consequências. Tratava-se da publicação, pela já falida editora ARCÁDIA, do meu livro JOSÉ RÉGIO – A OBRA E O HOMEM. O livro achava-se ali, patinhando na lama, sem conseguir arrancar para estrada de chão mais sólido. Tendo a Natália ido dirigir aquela outrora prestigiosa editora, por um período muito breve, ainda tentou desassossegar a pasmaceira em que jazia o meu manuscrito. Em vão. Pouco se tendo a Natália demorado naquele nicho moribundo, a minha aprofundada glosa sobre o Régio regressou ao seu sono hibernal, até que foi, inesperada e galhardamente, resgatada do oblívio, por um novo editor, Jorge Martins, que, de Lisboa, enviou a este desconhecido dele, tido e achado, nessa altura, numa Lourenço Marques onde o tiroteio crepitava, uma carta salvífica e um novo contrato mais decente do que o anterior… Estes milagres acontecem e até nos tornam momentaneamente surdos para os decibéis da metralha. Jorge Martins é hoje um dos meus melhores amigos e um valor que muito estimo e admiro, tendo sido editor, entre outros, de Vergílio Ferreira.

Mas voltemos à intrépida Natália. A primeira vez que me encontrei com ela foi em 1968, em Lisboa, em casa do escritor Tomás Ribas. Eu vivia então em Moçambique, mas vinha de vez em quando à Europa, a qual incluía sempre, em fim de viagem, Portugal. Dessa vez viéramos acompanhados de um casal amigo, Carlos Adrião Rodrigues e a inesquecível Quina, portadora da sabedoria e do falar capitoso de Campo de Ourique. No jantar, havia, entre outra gente de nota, a Natália Correia e o Vergílio Ferreira, acompanhado da mulher. Como sempre acontece, em reuniões muito participadas, acabam sempre por se formar pequenos grupos, para conversa animada. No grupo em que estávamos eu e a minha mulher, estavam também os nossos amigos de Moçambique, a Natália, a mulher do Vergílio Ferreira e não me lembro de mais quem mais. 
 
A certa altura, a Natália, que se encontrava de pernas traçadas, resolveu destraçá-las e fê-lo, num arco amplo, generoso e assaz vistoso. A mulher do Vergílio Ferreira lançou-lhe um olhar capaz de atear incêndios. O que foste fazer! Diante daquela reprovação veemente, a Natália, positivamente, não resistiu à tentação: passou o resto da noite a traçar e destraçar a perna, animando a conversa com a sua verve destemida. A nossa amiga Quina, com a sua palheta bem condimentada, de Campo de Ourique, fez só, à saída, este comentário: “De cada vez que a Natália destraçava a perna, via-se, ao fundo, o Convento de Mafra!”

A segunda vez que estive com a Natália foi quando vivia em Londres e, de uma feita, vim a Lisboa. Uma ex-aluna minha era assessora/secretária da escritora e ofereceu-se-me para me levar ao famoso Botequim. O Botequim, como se sabe, era uma coisa minúscula e estava a abarrotar de gente. Mas a Natália recebeu-me com grande espalhafato, “Meu querido sente-se aqui ao pé de mim”, o que queria dizer que metade de mim se sentou algures e a outra metade, ao colo da Natália. E assim ficámos, muito íntimos e impecavelmente castos, a conversar e a beber. Era única a Natália, corajosa, infinitamente talentosa, uma verdadeira força da Natureza. Um ser que deixa grande marca, na sua passagem breve por esta Terra.
Eugénio Lisboa

6 comentários:

Anónimo disse...

Fernando Dacosta, «ao sentir-se abandonada por Soares-depois de lançar, a seu pedido, a Frente Nacional para a Defesa da Cultura, como contestação à política de Cavaco Silva, Natália foi prontamente ajudada por Saramago (e pela máquina do PCP [2] a cumprir o propósito da referida Frente, que culminou com um grande espectáculo na Aula Magna, em Lisboa”. É o próprio Fernando Dacosta que , em 1992, anuncia o evento, depois de especificar as razões que presidiram á criação da FNDC, enfatizando que «o movimento visa denunciar o tratamento dado pelo poder às coisas da cultura»

Retirado daqui: http://www.culturacores.azores.gov.pt/agendaMobile/default.aspx?id=42516

Eugénio Lisboa, à data era conselheiro cultural em Londres, e nunca apoiou as causas da Frente Nacional para a Defesa da Cultura.

Eugénio Lisboa disse...

As funções do conselheiro cultural, em Londres, eram as de promover a cultura portuguesa no Reino Unido e não travar as lutas necessárias em Portugal. Mas fui mais longe, porque considerei que dar uma boa imagem de Portugal, no estrangeiro, também passava por melhorar a imagem dos nossos emigrantes , lá fora. Mantive, por isso, uma estreita ligação com com todas as associações de portugueses emigrados, nelas fazendo inúmeras intervenções culturais. A minha guerra não era em Portugal, era na Inglaterra. O Sr. Anónimo, sempre preocupado em denegrir-me, a propósito e a despropósito, serve-se da sua ignorância provinciana, com a determinação do obstinado e horrendo polícia do romance de Victor Hugo. (LES MISÉRABLES).
Não tive conhecimento do que conta da crispação entre a Natália e Mário Soares nem da ajuda dada por Saramago e pelo PCP, mas pode ter a certeza de que, se tivesse sabido, me teria solidarizado, sem pestanejar com essa ajuda, sem me incomodar nada que ela partisse daqui ou dali. Mas fiz outras coisas, pela Natália, como, por exemplo, levar uma peça de teatro dela à Irlanda, onde foi um tremendo sucesso, apesar de longuíssima e de falada em português: foi comovente, ver aquela imensa audiência, debaixo de uma tenda gigantesca, armada para aquele festival internacional, silenciosa e atenta, a pé firme, e, no final, visivelmente comovida. Se o Sr. Anónimo, em vez dessa tineta de bufo bem treinado, tivesse uma abertura de espírito e de coração mais vincada, em vez de andar pelos esgotos, à procura de porcaria, talvez gostasse de mostrar mais generosidade e alguma sintonia com o que de bom fazem os outros. É precisamente essa postura de Javert determinado em decapitar o adversário, adoptada por tantos dos seus correligionários, que anda a conduzir a vossa força partidária a uma lenta e lamentável extinção. Creia que, embora me oponha a ela, em pelouros fundamentais, lamento sinceramente o seu estado actual de quase irrelevância., por achar que tem um papel importante a desempenhar, na luta contra esta pavorosa deriva para a direita, em que o mundo se encontra.
Não voltarei a isto. E olhe que não é com vinagre que se apanham moscas.
Eugénio Lisboa, que continua a não compreender a cobardia do anonimato, em quem está sempre a acenar com padrões éticos... O tempo da clandestinidade já lá vai...




João Boavida disse...

Os textos artigos de Eugénio Lisboa são sempre de uma enorme riqueza e sedução. O que ele sabe sobre literatura e sobre escritores, sobre as grandes obras e as pequenas histórias, relativas a elas e aos seus autores, é verdadeiramente extraordinário. Penso que não há em Portugal quem tenha uma bagagem igual sobre estes temas. É um grande privilégio poder usufruir, no DRN, deste manancial tão colorido e culturalmente valioso.

Eugénio Lisboa disse...

Muito obrigado, Professor João Boavida, pelas suas generosas palavras. São um verdadeiro bálsamo, num mundo intelectual de mesquinhez, desatenção e ideologia primária, que se intromete constantemente em tudo e envenenando tudo. Há seres humanos desidratados de corpo e alma, que nos fazem ter tentações de cessar de fazer seja o que for. Mas por ser isso mesmo que eles desejam e eu sempre fui espírito de contradição, acabo por não lhes fazer a vontade.
Um grato abraço deste seu admirador
Eugénio lisboa

Carlos Ricardo Soares disse...

É para mim um privilégio continuar a ler os textos de Eugénio Lisboa. Nunca o disse aqui, mas é um autor que descobri na infância e fui acompanhando, em suplementos culturais de jornais e revistas, sobretudo pela riqueza e sedução com que partilha a sua vivência e a sua visão de português ultramarino, mormente pelo saber e entusiasmo com que fala de literatura e pela admiração que não recusa a um extraordinário rol de autores, acerca dos quais revela conhecimento que eu gostaria de ter. Encontrá-lo aqui, no De Rerum Natura, foi uma oportunidade de interagir com uma reconhecida celebridade da cultura literária portuguesa. O Eugénio Lisboa afirma-se por uma qualidade, rara no meio cultural português, de não se deixar embebecer pela garridez das bandeiras, ruflar de tambores, ou água benta, e ser avesso a que lhe digam o que é que ele deve pensar, ou escrever. Admiro os que resistem às vantagens e aos prémios de alinharem com uma ética partidária, venha ela donde vier, ou mesmo sociojurídica, e têm a coragem e autenticidade de afirmar o seu sentido crítico, para salvarem a sua dignidade moral, mesmo sabendo que podem ser censurados, até em democracia.

Eugénio Lisboa disse...

Meu caro Carlos Ricardo Soares, fico-lhe muito grato pelas suas amigas palavras de apoio. Às vezes, bem precisamos delas, especialmente, quando o enviesamento, o denegrir baixo e a total falta de empatia e abertura, a ideologia fria e insensível de quem nos lê quase nos dá o desejo de partir a caneta e fechar a boutique. Creia que já me apeteceu. Mas sou teimoso e, apesar dos meus 93 anos, não tenho frio nos olhos, como dizem os franceses. Portanto, continuarei a desassossegar as serpentes que rastejam atrás de mim, com propósitos sibilinos, e a tentar comunicar, como sempre fiz, com as almas grandes a quem o algum (pouco) valor dos outros não incomoda. Saber admirar é infalível sinal de nobreza. A inveja corrói a alma e desidrata o corpo. Fico-me por preferir admirar.
Bem haja, meu caro Carlos Ricardo Soares.
Eugénio Lisboa

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