Meu artigo no I de hoje:
O inglês Kenneth Clark
(1903-1983) foi o mais conhecido dos críticos de arte do século XX graças aos
seus programas de televisão, cujo ápice foi a série Civilização,
transmitida pela BBC em 1969 e retransmitida, desde então, em televisões de todo
o mundo (os 13 episódios podem ser vistos no Youtube e a série em Blu-ray
pode encomendar-se na Amazon).
O livro agora editado pela
Gradiva com o subtítulo O Contributo da Europa para a Civilização Universal,
em vez do original Uma Visão Pessoal, foi escrito a partir do guião da
série televisiva. É impressionante o êxito alcançado tanto pelo programa como pelo
livro. Como o autor reconhece no prólogo: «Escrever para televisão é fundamentalmente
diferente de escrever um livro, não apenas no estilo e apresentação, mas no
conjunto da abordagem ao tema. As pessoas que se instalam no sofá para um
programa de serão esperam ser entretidas. Se se aborrecerem, desligam. E são
entretidas tanto pelo que veem como pelo que ouvem.» O livro não tem nem vídeo
nem som: mas tem ideias, que nos convidam à reflexão, e tem belas imagens, que
nos seduzem. A televisão não tem de ser inimiga do livro.
Clark procura, servindo-se de
muitos exemplos artísticos, num modo muito seu, transmitir o essencial da civilização
ocidental desde o fim do Império Romano do Ocidente até ao alvor do século XX.
Para ele o suprassumo situa-se no Renascimento italiano: Miguel Ângelo,
Leonardo da Vinci e Rafael. Sobre o pintor da Capela Sistina: «O poder
visionário de Miguel Ângelo dá-nos a sensação de que ele pertence a todas as
épocas, e talvez, acima de todas, à época dos grandes românticos, dos quais
somos ainda os herdeiros quase falidos.»
Civilização é uma óptima
prenda de Natal: está muito bem traduzido pelo historiador de arte e jornalista
José Cabrita Saraiva, que assina uma apresentação prévia e está muito bem
produzido por uma editora que sabe cuidar dos pormenores. Um sintoma do atraso
cultural português é a ausência, até hoje, deste livro entre nós: havia apenas uma
edição brasileira (Martins Fontes e Universidade de Brasília, 1979). Mas o
livro veio ainda a tempo, podendo ser contraponto numa época em que o
relativismo cultural se instalou.
De onde veio o lapidar título? O
autor conta: «Foi um acidente. A BBC queria uma série de filmes a cores sobre
arte, e achou que talvez eu pudesse dar alguns conselhos. Mas quando David
Attenborough [o autor de O Planeta Vivo, que está vivo!], então
responsável pela BBC2, me pediu para o fazer, usou a palavra Civilização, e
foi esta palavra, e só esta palavra, que me convenceu a aceitar o trabalho.
Não tinha uma ideia clara do que ela queria dizer, mas pensei que era
preferível ao barbarismo, e imaginei que era o momento certo para explicar
porquê.»
Explicado o título, mais difícil será
explicar o que é a civilização. O autor, que na sua juventude foi seduzido pela
obra do artista e crítico de arte oitocentista John Ruskin, fá-lo deste modo,
ainda no prólogo: «O que é a civilização? Não sei. Não consigo defini-la em
termos abstractos – por enquanto. Mas penso conseguir reconhecê-la quando a
vejo; e neste momento estou a olhar para ela. Ruskin disse: «As grandes nações
escrevem as suas autobiografias em três manuscritos, o livro dos seus feitos, o
livro das suas palavras e o livro da sua arte. Nenhum destes livros pode ser
compreendido se não lermos os outros dois, mas dos três o único fidedigno é o
último”. Penso que isto é verdadeiro.»
Quem foi Kenneth Clark, ou melhor
Lord Clark? Nascido em Londres, numa família abastada, estudou primeiro no
Winchester College, uma escola privada masculina com mais de seis séculos, e
depois na ainda mais antiga Universidade de Oxford. Aos 27 anos foi nomeado
diretor do Museu Ashmolean de Arte e Arqueologia em Oxford e, três anos volvidos,
já estava à frente da National Gallery, o famoso museu londrino na Trafalgar
Square. Durante a Segunda Guerra Mundial, Clark viu-se forçado a esconder as preciosas
obras de arte numa mina no País de Gales, enquanto atraía o público ao museu
com numerosos concertos, que serviram para levantar o moral dos civis,
atormentados com a queda das bombas. Houve quase dois mil concertos que foram
ouvidos por mais de 550 000 espectadores. Nem todas as obras foram escondidas:
Clark inaugurou a exibição do «quadro do mês», uma iniciativa que ainda hoje se
mantém. Depois da guerra, tornou-se professor de Belas Artes em Oxford. Numa
reviravolta surpreendente aceitou dirigir em 1954 a Independent Television
Authority, a agência criada para supervisionar a televisão comercial, então
aparecida para concorrer com a BBC. Já fora da agência, Clarke fez alguns
programas sobre arte, a preto e branco, o primeiro dos quais, em 1958, Is
Art Necessary?, num canal privado. Em 1966 fez a série The Royal
Palaces, uma parceria público-privada, sobre o património da coroa
britânica. Civilização, o seu primeiro programa a cores, foi, porém, a
sua coroa de glória. Ficou mundialmente famoso pela sua autoria e apresentação,
acima de tudo pelo seu carisma que levou a arte a todos os tipo de público. Os produtores
Michael Gill e Peter Montagnon asseguraram as filmagens ao longo de três anos,
em 117 sítios de 13 países. Attenborough conseguiu encaixar o custo total,
exorbitante para a época, de 500 000 libras. Mas o resultado foi
compensador: a série foi vista na estreia por mais de 2,5 milhões de
espectadores britânicos e mais de 5 milhões de espectadores nos Estados Unidos,
o que era muito bom para um programa cultural. Estava estabelecido um padrão
para os grandes documentários televisivos.
Clark cometeu os seus erros, por
exemplo na atribuição de obras de arte que a National Gallery adquiriu, mas isso
não diminui em nada o extraordinário papel que teve na divulgação da arte. Ele
foi para a arte o que Sagan representou, em 1982, para a ciência, com a série
televisiva e o livro Cosmos. O livro Civilização em língua inglesa
nunca deixou de estar presente nas livrarias desde que saiu a primeira edição em
1969. Clark conseguiu fazer um programa televisivo e um livro intemporais! Tão
intemporais que a Tate organizou em 2014 uma exposição intitulada: «Kenneth
Clark: Looking for Civilization». E, em 2018, a BBC produziu uma nova série com
o título de Civilizações, da autoria dos críticos de arte Simon Schama,
Mary Beard e David Olusoga.
Apesar dos seus gostos estéticos,
algo conservadores, Clark era progressista na política: votava nos trabalhistas.
Do ponto de vista religioso, manifestou-se por diversas vezes contrário ao
ateísmo: achando a Igreja de Inglaterra demasiado secular, converteu-se ao catolicismo
pouco antes de morrer.
Entre os seus livros merecem destaque, a.C. (antes de
Civilização): Leonardo da Vinci: an Account of his Development as an
Artist (1939), Landscape Into Art (1949) e The Nude: A Study in Ideal
Form (1956). E d.C.: Animals and Men (1977), What is Masterpiece? (1979) e Feminine Beauty
(1980). Comprei
este último quando saiu e, passados mais de 40 anos, ainda o possuo. Em português, só havia duas traduções: O Nu. Um Estudo
sobre o Ideal da Arte (Ulisseia, 1967), com tradução de Ernesto de Sousa, e
Paisagem na Arte (idem, 1961).
Civilização centra-se nas artes plásticas.
Fala pouco sobre literatura, ciência e filosofia. Não fala de Cervantes e quase
não fala nem de Galileu nem de Kant. Nenhum português é mencionado, mas o
tradutor conta as relações próximas entre Kenneth Clark e Calouste Gulbenkian.
A colecção do arménio esteve quase a ficar em Londres…
O segundo: «Também continuo
apegado a uma ou duas convicções mais difíceis de sintetizar. Acredito, por
exemplo, na cortesia, o ritual pelo qual evitamos ferir os sentimentos dos
outros para satisfazermos os nossos próprios egos. E penso que devemos lembrar-nos
sempre de que somos parte de um grande todo, a que por comodidade chamamos
natureza. Todos os seres vivos são nossos irmãos e irmãs. Acima de tudo,
acredito que certos indivíduos receberam de Deus o dom do génio, e valorizo uma
sociedade que torna isso possível.»
Clark acrescenta: «A civilização
ocidental foi uma série de renascimentos. Isto tem de dar-nos confiança em nós
próprios». Mas previne: «Disse no início que é a falta de confiança, mais do
que qualquer outra coisa, que mata uma civilização. O cinismo e a desilusão
podem ser tão eficientes a destruir-nos como as bombas.»
O final não é muito optimista. O autor cita o poeta irlandês W. B. Yeats («Aos melhores falta‑lhes convicção, enquanto os piores/ Ardem de paixão intensa»). No filme, arruma a seguir o
livro na sua biblioteca, olha para uma escultura do seu amigo Henry Moore e sai
de cena. Dá que pensar: passado mais de meio século, estaremos mais confiantes?
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