quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

IDEIAS QUE NEM SEQUER ESTÃO ERRADAS

 Novo texto de Eugénio Lisboa.

A principal qualidade do estilo é a clareza. 
Aristóteles 

A clareza é a boa fé dos filósofos. 
Vauvenargues

 Falar obscuramente, qualquer um consegue; com clareza, raríssimos.
 Galileu Galilei 

 O grande físico Wolfgang Pauli (1900 – 1958), que ganhou o Prémio Nobel da Física, em 1945, apadrinhado nada menos que por Einstein, era conhecido pela sua destemida frontalidade e ferina ironia. Ficou também conhecido por ter cunhado uma expressão que se tornou célebre: quando aspirantes a cientistas lhe propunham, para avaliação, teses estapafúrdias, sem pés nem cabeça, Pauli despachava-as, furiosamente, classificando-as de “not even wrong” (nem sequer erradas). Isto é, não tinham sequer dignidade para poderem ser consideradas erradas: não estavam certas nem erradas, porque não eram coisa nenhuma. É, provavelmente, a pior classificação que se pode dar a um trabalho qualquer: not even wrong.

Confesso que, com uma frequência inquietante, leio textos de escritores muito festejados, premiados, traduzidos, apaparicados, aos quais me apetece pôr o carimbo com o diagnóstico mortífero de Pauli; not even wrong. São textos que fazem parte de uma cultura que venera o obscuro, o opaco impenetrável, como valores insignes a promover. Como se o opaco e o obscuro fossem garantias de maturidade e profundidade. Como se por detrás daquelas ejaculações nevoentas, se escondessem tesouros apetecidos. O culto do arrevesado, do complicado, do “profundote” é, muito pelo contrário, um sintoma de aflitiva insegurança e imaturidade. É querer esconder uma total ausência de pensamento por detrás de um arrazoado pretensioso. Os verdadeiros pensadores não temem, antes procuram, a formulação mais simples, que desvele, sem mais embaraços, aquilo que descobriram. É a “boa fé dos filósofos”, de que falava o amável Vauvenargues, que Voltaire tanto admirava e estimava. Quem se aninha confortavelmente no obscuro, encontra-se inesperadamente parceiro do arbitrário e do atrabiliário. Passa-se o mesmo com os que, em vez do belo, nos servem o “bonito”. Já tenho respondido a quem me propõe um pensamento arrebicado e cheio de nevoeiro: “O que disse deve estar certo.” E, perante a perplexidade do meu interlocutor, esclareço: “Não percebi nada do que o Sr. disse e, na dúvida, é-se a favor do réu.” 

Tudo isto me leva a uma velha convicção, na qual estou longe de me encontrar desacompanhado, de que seria, mais do que aconselhável, fundamental, que todos os cursos de letras incorporassem uma disciplina obrigatória, particularmente bem pensada e estruturada, de história da ciência. Sublinho: obrigatória e urgente. Talvez isto acabasse por incutir a muitos homens de letras algum respeito pelo asseado das ideias e da formulação delas. E também de respeito pelas palavras. 

Até para a elaboração de metáforas se exige algum asseio, para se não cair no arbitrário quimicamente puro. Com uma desejada e suave passagem pela ciência, talvez se evitassem pérolas como estas, que desoladamente colho, hoje mesmo, num periódico lisboeta: 1) “Pões um animal no meio de um nevoeiro – que metade tapa, metade mostra – e o animal fica metade anjo, na metade que não se vê”; 2) “uma máquina de fumos na imaginação, lá dentro da cabeça, e a metáfora e a invenção surgem”; 3) “A máquina de fumos e de nevoeiro, como máquina de inventar, máquina de produzir metáforas por minuto quadrado”. Fico-me por aqui: Esta das “metáforas por minuto quadrado” é suficientemente ilustrativa do meu ponto de vista: uma pequena passagem pelo mundo da ciência não faz mal a ninguém. 

 Eugénio Lisboa 
15.12.2021

1 comentário:

Ângelo Miguel Pessoa Alves Alves disse...

Neste ponto, estamos de acordo. Na poesia atual, por exemplo, há um excesso de metáforas que acaba por a tornar obscura. Por isso, cada vez mais admiro poetas como Eugénio de Andrade. Também concordo (e isto a respeito do que escreveu anteriormente) que há poetas portugueses que receberam uma miríade de prémios de quantias avultadas, sem o merecerem. Talvez isto seja a verdadeira poesia (na primeira pessoa do singular e, hoje, esquecida):

Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.

Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.

As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...

P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...