quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

EM LOUVOR DA HUMILDADE


Meu capítulo do livro "Breve Tratado das Virtudes Desportivas" que saiu do prelo da Universidade Católica, coordenado por Alexandre Palma e João Eleutério:

Introdução

 Na tradição cristã o maior dos sete pecados mortais, uma lista atribuída ao papa Gregório I no século VI, é o orgulho (do frâncico urguli, que significa excelência), a que por vezes se chama soberba (em latim, superbia). Contra elas são elencadas sete virtudes capitais: contra o orgulho ou soberba é necessária humildade (humilitas). O étimo latino de humildade significa “baixo”, “com pouca elevação”. O adjectivo humilis designa o que está no solo ou perto dele, quer dizer.  Essa palavra está na base de húmus ou humo, a matéria orgânica depositada no solo pela deterioração de animais e vegetais. É muito curioso que a palavra “homem” (do latim homo, hominis) pertence à mesma família etimológica. A associação terá a ver com o facto de os seres humanos ocuparem a Terra, em claro contraste com os deuses, cuja morada é celestial. E talvez também com o facto de, após a morte, regressarem, em geral, à terra.

 Por que razão o orgulho é, na perspectiva da religião cristã, considerado tão negativo? Precisamente porque o que está em baixo contrasta com o que está no alto. Constitui um grave pecado que um ser humano, inconsciente das suas limitações, pretenda alcandorar-se ao lugar dos deuses, na cultura greco-latina, ou de Deus, na cultura que lhe sucedeu no Ocidente. Na Antiguidade os deuses eram tão poderosos como caprichosos. Deus é, no quadro da religião cristã, o único ser omnisciente e omnipotente.

Já os antigos gregos criticavam a húbris (em grego “hybris”), que significa orgulho desmedido, presunção extrema, arrogância contra os deuses, e que foi o tema de várias histórias mitológicas, que continham ensinamentos morais. A prática da húbris significa ir além dos limites considerados naturais, exceder aquilo que, ainda que de forma apenas implícita, está estabelecido. O castigo dos deuses para a húbris era a némesis, isto é, a vingança que consiste no retorno aos limites que foram indevidamente transpostos.

O Cristianismo recebeu de herança esse sentimento maléfico de excesso de limites, considerando grave pecado grave o orgulho e uma notável virtude a humildade. No Livro dos Provérbios do Antigo Testamento, encontramos sentenças como «Ele [Deus] zomba dos zombadores, mas concede graça aos humildes» (3:34), «Quando vem o orgulho, chega a desgraça, mas a sabedoria está com os humildes» (11.2), ou «O orgulho vem antes da destruição» (16:18). No Novo Testamento encontramos frases do mesmo teor como «Bem-aventurados os humildes, pois eles receberão a terra por herança» (Mateus 5:5), «Pois todo aquele que a si mesmo se exaltar será humilhado, e todo aquele que a si mesmo se humilhar será exaltado» (Mateus 23:12) e «Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos» (Filipenses 2:3).

Para Tomás de Aquino, o filósofo medieval italiano que conseguiu a “quadratura do círculo” ao fundir uma parte da visão antiga com a cristã, a humildade consistia em «conservar-se dentro dos seus próprios limites, não tentando alcançar coisas acima de si, mas submetendo-se ao que lhe é superior» (Summa Contra Gentiles, Aquino 2017, livro IV, cap. LV). Na teologia do século XX, o escritor norte-irlandês C. S. Lewis, o bem conhecido autor das Crónicas de Nárnia, escreveu: «Foi através do orgulho que o demónio se tornou demónio: o orgulho leva a todos os outros vícios: é o estado de espírito completamente anti-Deus» (Lewis 2001). É-lhe também atribuída a frase: «humildade não é pensar menos de si mesmo, mas pensar menos em si mesmo.»  Apesar de a inspiração poder provir de Lewis, a frase deve antes ser creditada ao pastor protestante e escritor norte-americano Rick Warren, autor do best-seller The Purpose Driven of Life (Warren 2012).

O sentido religioso – etimologicamente religião significa ligação – obriga a humildade, pois na aderência a uma religião expressa-se a necessidade de estar com os outros, partilhando com eles crenças e expectativas. A humildade é a virtude que consiste no reconhecimento das limitações tanto do género humano como do próprio  indivíduo e na prática conduzida por essa consciência. Uma pessoa humilde respeita os outros: não se exibe nem se vangloria, considerando-se superior aos demais.

 Humildade na filosofia e na ciência

 A virtude da humildade excede hoje largamente o quadro da religião cristã. Basta notar que várias religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo, incorporam conceitos bastante semelhantes. E excede o quadro de qualquer religião. Há uma ética que defende a virtude da humildade, independentemente de qualquer concepção religiosa. Basta  notar que o filósofo materialista e ateu francês André Comte-Sponville incluiu a humildade na sua lista de 15 virtudes do seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (Comte-Sponville 1995). No quadro da filosofia, fala-se de humildade intelectual como uma virtude epistémica: consiste na assumpção da nossa capacidade de errar. Mesmo o maior dos sábios deve ter a humildade de reconhecer  que pode, a respeito de um ou de outro assunto, numa ou noutra ocasião,  estar enganado. Segundo a epistemologia popperiana, aprende-se e há progresso sempre que se reconhece o erro (Popper 2018).

 Mas a humildade intelectual é muito anterior ao filósofo inglês de origem austríaca Karl Popper.  O filósofo alemão Immanuel Kant, uma pessoa humilde que fez toda a sua vida de uma forma rotineira na mesma cidade, achava conciliável a ousadia iluminista de querer saber mais com a humildade, que para ele era, nas palavras da professora de Filosofia norte-americana Jeanine Grenberg, «a meta-atitude que constitui a perspectiva adequada do agente moral sobre si mesmo como um agente racional dependente e corrupto, mas capaz e digno» (Grenberg 2010). Já no século XX, o físico suíço e norte-americano, nascido na Alemanha, Albert Einstein, leitor de Kant na sua juventude e também ele uma pessoa humilde apesar de todo o reconhecimento que recebeu em vida, ao escrever sobre a inteligência, acentuou a necessidade de humildade que ela deve ter perante o mundo (Einstein 2018: 332):

 «Fomos dotados de inteligência apenas suficiente para conseguirmos ver claramente como essa inteligência é completamente desadequada quando somos confrontados com tudo o que existe. Se esta humildade pudesse ser conferida a toda a gente, o mundo das iniciativas humanas tornar-se-ia mais apelativo.»

 Na mundividência de Einstein, o mundo não está completamente libertado de Deus, pois, num certo sentido, o próprio mundo é Deus. A nossa inteligência sente-se pequena perante ele, o que nos obriga a ser humildes. Podemos, no caso de Einstein, falar de reverência perante o mistério do mundo (Fiolhais 2005).

Uma cientista que Einstein muito admirava, a físico-química francesa Marie Curie ou Madame Curie, nascida Sklodowska na Polónia, único prémio Nobel em duas disciplinas científicas diferentes, era também uma figura humilde, completamente dedicada ao seu trabalho e à sua família. Ficou proverbial o seu continuado espírito de missão à ciência e o seu alheamento relativamente às glórias do mundo. Sobre ela disse Einstein que «de todos os seres celebrados, foi o único a quem a fama não corrompeu.» Embora a maioria dos cientistas tenham sido, como Einstein e Madame Curie, pessoas humildes, a verdade manda dizer, dizer que a história da ciência revela a existência de sábios arrogantes ou com laivos de arrogância, como foi o caso do físico inglês  Isaac Newton, que tentou, por vários meios, denegrir a obra dos outros para enaltecimento da sua. A peça Cálculo, do bioquímico e dramaturgo norte-americano Carl Djerassi (Djerassi 2012), transmite de um modo literário o seu desencontro com o filósofo alemão Gottfried Leibniz, mas ele esteve longe de ser caso isolado.

 No mundo económica e socialmente competitivo em que vivemos  hoje pululam os livros de auto-ajuda em que a humildade é nomeada e louvada. Tornou-se um elemento de marketing, apesar de raramente a vermos praticada de forma genuína.  A verdadeira humildade, que é inequivocamente uma virtude por nos permitir viver tranquilamente respeitando os outros, não pode ser confundida com a falsa humildade, personalizada na literatura pela figura de Uriah Heep no romance David Copperfield do inglês Charles Dickens (Dickens 2011), que tem comportamentos fraudulentos enquanto se apresenta como uma pessoa humilde. Heep diminui-se apenas para receber a apreciação dos outros e ganhar a confiança deles.

 A humildade no desporto

 Nos Jogos Olímpicos da Antiguidade, que começaram, na Grécia em 776 a.C., tendo durado até 80 a.C., os atletas eram recompensados não só com  a imposição de láureos na fronte, mas também como a sua representação em estátuas e como tema dos poetas. Assemelhavam-se, portanto, pelo menos temporariamente, aos deuses. Mas, sendo humanos, não podiam deixar de se lembrar da sua modesta posição.

 O desporto é, muitas vezes, considerado uma “escola de virtudes”. Uma delas é decerto a humildade. O filósofo do desporto Manuel Sérgio, ele próprio um sábio humilde (que gosta, quando fala de desporto, de pedir desculpa por saber tão pouco),  é um autor que tem repetidamente salientado o valor da humildade no desportista ou noutras pessoas que intervêm no fenómeno desportivo.  Conheci-o pessoalmente em 2005 quando ele me solicitou um prefácio para o seu livro Para uma Epistemologia do Desporto (Sérgio 2005 e Fiolhais 2021). Pude testemunhar, a par da sua viva inquietação filosófica, o sentimento de humildade que é apanágio dos verdadeiros filósofos.

No quadro do pensamento sergiano (de Manuel Sérgio, António Sérgio que me desculpe), um jogador ou um treinador ou um dirigente desportivo podem mostrar a sua qualidade sem necessitar de se auto-proclamar como “o melhor”, depreciando os outros. Um jogador pode ser muito talentoso, mas deve reconhecer os limites das suas capacidades, respeitando com isso as capacidades dos outros. O reconhecimento é sempre mais justo e, portanto, mais verdadeiro e mais duradouro, quando é feito pelos outros. Além do mais, uma vitória ou um bom resultado podem ser seguidos por uma derrota ou por um mau resultado, a um dia de glória pode seguir-se um dia de frustração. Só um conjunto bem arreigado de valores – no qual se incluem a vontade de ganhar, mas também a humildade nas vitórias ou nos bons resultados – pode sustentar uma carreira prolongada. Como diz uma  frase que é vox populi “ganhar ou perder, tudo é desporto.” Manuel Sérgio, o autor, entre vários outros, dos livros Filosofia do Futebol (Sérgio 2009),  Crítica da Razão Desportiva (Sérgio 2012), e Para uma Epistemologia da Motricidade humana (Sérgio 2018),  disse-o de uma outra maneira: «O desporto não pode ser uma guerra. O desporto tem de ser encontro, tem de ser abraçar os outros. Eu costumo dizer que não há jogos, há pessoas que jogam.»

 Muitos desportistas, em modalidades individuais ou colectivas, que pensaram orgulhosamente que iam ganhar, acabaram por ter amargas desilusões precisamente porque os outros foram mais humildes. Ser humilde não significa não ter auto-estima e confiança: significa antes reconhecer que os outros também têm auto-estima e confiança. Há, em cada circunstância, que ter a humildade de reconhecer que o talento, individual ou colectivo, por muita singularidade que tenha ou pareça ter, está bastante bem distribuído no mundo. É precisamente esta uma das características que tornam o desporto tão interessante. Conforme disse sabiamente o futebolista João Pinto, antigo defesa do Futebol Clube do Porto e da selecção nacional, quando lhe perguntaram quem ia ganhar uma partida: “Prognósticos só no fim do jogo.”

 Três exemplos desportivos

 São vários os exemplos que podia escolher de grandes atletas portuguesas que são exemplos de grande humildade, uma atitude que nunca lhes prejudicou a carreira desportiva, bem pelo contrário, projectando-a para patamares elevados. Escolho – esperando que os outros me desculpem – três grandes nomes, conhecidos de todos, ligados a três modalidades, uma colectiva, uma individual e outra que tanto pode ser individual como colectiva: o futebol, o ciclismo e a canoagem. Falarei aqui brevemente dos feitos e das atitudes de Eusébio Ferreira, Joaquim Agostinho e Fernando Pimenta, não deixando de dar conta da minha relação de proximidade emocional com eles.

Já contei noutro lado (Rodrigues e Pinheiro 2016) o que foi a entrada na minha segunda década, aos dez anos, a ver na televisão o que fez Eusébio, de seu nome completo Eusébio da Silva Ferreira, no memorável jogo de Portugal contra a Coreia do Norte no Campeonato Mundial de Futebol de 1966, realizado em Inglaterra. Ninguém ganha jogos de futebol sozinhos, mas esse jogo foi ganho quase só por Eusébio, um atleta verdadeiramente excepcional, que, tendo tido uma origem humilde em Lourenço Marques (hoje Maputo), em Moçambique, permaneceu fiel a essa sua origem, nunca se deslumbrando com os grandes sucessos que foi conhecendo em Portugal e no mundo. Dos cinco golos nacionais nos 5-3 contra a Coreia, quatro foram seus (o último foi do seu companheiro José Augusto). Esses golos ficaram lendários porque, aos 25 minutos de jogo, a Coreia já ganhava a Portugal por 3-0: foi uma “reviravolta épica”.  De cada vez que Eusébio metia um golo, agarrava na bola e trazia-a rapidamente ao meio do campo, porque o jogo não estava acabado.  Declararia anos mais tarde: «Eu acho que o melhor golo foi o terceiro, o golo do empate. E quando fiz o terceiro, respirei fundo.» Poucos dias depois o mesmo Eusébio, o que se sagrou o melhor marcador desse campeonato, com um total de 9 golos, chorava depois de perder com a Inglaterra por 2-1 (golo português de Eusébio, de penálti,  quase no final, amenizando a derrota): os ingleses tinham sido os melhores em campo, ou pelo menos tinham marcado mais golos que é o que conta para a decisão desportiva. Mas ganhar ou perder, tudo é desporto. No jogo para o terceiro lugar contra a Rússia, Portugal ganhou por 2-1: Eusébio executou, perto do início, um penálti contra um dos melhores guarda-redes de sempre em todo o mundo, Lev Yashin. O jogador nacional, que cumprimentou cordialmente o guarda-redes depois de marcar golo, afirmou no fim do jogo, bastante feliz, mas humilde: «Disse-lhe que ia marcar para a esquerda e marquei mesmo. Não engano os amigos.»

Pode Eusébio ter ganho 11 campeonatos pelo Benfica, ter sido o melhor marcador em três Taças dos Campeões Europeus e ter sido, em 1965, o melhor jogador europeu (“Bota de Ouro”), mas a sua maior virtude na vida foi a humildade. Essa foi, de resto, a sua marca mais lembrada quando faleceu em 2014, um evento que causou grande consternação nacional.

O segundo exemplo diz respeito ao ciclismo de estrada. No Verão de 1973 eu tinha acabado o sétimo ano dos liceus e preparava-me para entrar na Universidade de Coimbra. Passei férias, num parque de campismo, na Figueira da Foz. Foi assim que pude assistir ao vivo à chegada de Joaquim  Agostinho numa etapa memorável da volta a Portugal  que se desenrolou entre Abrantes e Figueira da Foz, por vias que na época não estavam no melhor dos estados. O atleta do Sporting chegou com 12 (doze!) minutos de avanço sobre o seu mais directo rival, o benfiquista Fernando Mendes. O que se passou? Pois o sucedido soube-se depois. Agostinho tinha parado para urinar e, quando voltou ao pelotão, deu pela falta de Mendes. Logo arrancou atrás dele, apanhou-o num ápice (quando passou por ele terá dito: «Acompanha-me agora se és capaz…») e continuou a aumentar o seu avanço até à meta (Tovar 2017). Não atendeu aos pedidos de Artur Agostinho, o jornalista ligado à organização da Volta (sem qualquer relação familiar com o atleta), para abrandar um pouco, pois estava a “matar” a competição. As palavras atribuídas a Joaquim Agostinho não significam que o ciclista era arrogante, bem pelo contrário. Nascido de origem humilde numa aldeia de Torres Vedras, continuou humilde depois de entrar, só aos 25 anos, no mundo do ciclismo (tinha aprendido a pedalar só aos 23), onde logo revelou os seus dotes: ele era uma verdadeira “força da Natureza”.  Foi o seu espírito humilde que ajudou a ganhar não só três Voltas a Portugal como a obter um segundo lugar na Volta a Espanha e dois terceiros lugares na Volta a França, onde teve 13 participações com um total de oito classificações nos dez primeiros lugares. Teve um lendário triunfo em 1979 numa etapa de montanha nos Alpes Ocidentais que terminou no Alpe d’Huez, ao fim de um percurso de uma luta intensa contra o desnível que revela os grandes campeões (foi erigido um busto de Agostinho numa das curvas desse itinerário). Lembro-me de ouvir, na rádio, o relato dessa prova.

Agostinho morreu a 19 de Maio de 1984, dez dias depois de ter caído da sua bicicleta quando liderava a Volta ao Algarve. Essa queda foi devida à travessia da estrada por um cão, muito perto da linha de chegada à meta na Quarteira. Ainda terminou a etapa, ajudado por colegas de equipa, mas foi-lhe diagnosticado um grave traumatismo craniano. De pouco lhe valeram os melhores cuidados médicos que lhe foram prestados nos Hospitais de Faro e da CUF, em Lisboa. Eu já era professor auxiliar na Universidade de Coimbra, pouco mais de um ano volvido sobre o meu doutoramento na Alemanha, quando tudo isso se passou e fiquei, como todo o país, desgostoso com o trágico fim, aos 43 anos, de  um campeão, ocorrido em plena prova.

Por último, um exemplo da canoagem, uma modalidade que tem tido grande expansão em Portugal nos últimos tempos. Tive a oportunidade de conhecer o canoísta Fernando Pimenta, num jantar promovido em 2019 pelo Ginásio Clube Figueirense para entrega dos Prémios Nacionais Bento Pessoa (José Bento Pessoa foi um ciclista figueirense pioneiro da modalidade entre nós na passagem do século XIX para o XX), que incluíram  um prémio a uma cientista figueirense a trabalhar nos Estados Unidos, Sílvia Curado, que tive a honra de representar. Impressionou-me a humildade do atleta, natural de Ponte de Lima, que eu admirava pelas suas extraordinárias prestações desportivas. No jantar, permaneceu sempre atento ao que podia comer e depois dele não demorou a recolher-se, uma vez que, no dia seguinte, de manhã cedo, o esperava mais um treino na vizinha pista de Montemor-o-Velho. Ele pertence ao areópago de cinco portugueses que conquistaram duas medalhas olímpicas: ganhou a medalha de prata de K3 1000 m nos Jogos Olímpicos de Londres, juntamente com o seu colega Emanuel Silva e ganhou a medalha de bronze na categoria de 2012 de K1 1000 m nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, realizados em 2021. Além disso, foi campeão do mundo em Racice, na República Checa, em K1 5000 m, depois de, no dia anterior, ter obtido a medalha de prata em K1 1000 metros. Em vários campeonatos do mundo de canoagem, conquistou um total de três medalhas de ouro, três de prata e quatro de bronze. E, em campeonatos europeus da modalidade, obteve 5 medalhas de ouro, 6 de prata e 7 de bronze. Num dia se ganha e noutro dia quase se ganha, porque há outros igualmente talentosos e preparados.  Há que saber ganhar e saber perder.

Não era preciso Fernando Pimenta declarar-se humilde para reconhecer a sua humildade. Mas, à partida para os Jogos de Tóquio, o atleta, com 32 anos, proferiu estas palavras: «Vou dar tudo por tudo para conseguir o melhor resultado possível. Já o fiz durante este tempo todo de preparação, com inúmeros sacrifícios, e agora vou desfrutar do processo da competição. Os portugueses podem contar com o Fernando Pimenta de sempre: lutador, sonhador, ambicioso, humilde e com muita vontade de representar Portugal e de conquistar um grande resultado» (O Minho 2021). Não foi preciso dizer que ia ter uma nova medalha para a conseguir. À chegada a Lisboa, declarou que já tinha na sua mente os Jogos Olímpicos de Paris, a realizar em 2024.

 Conclusão

 A humildade é uma virtude desde tempos antigos. É reconhecido o seu valor na filosofia, na ciência e na vida. E também no desporto, essa área da vida na qual tanto a filosofia como a ciência importam, como tem vindo a defender Manuel Sérgio. Eusébio Ferreira, Joaquim Agostinho e Fernando Pimenta, este último ainda em actividade, são exemplos de atletas portugueses que chegaram aos píncaros da glória desportiva, sem nunca terem perdido o sentido de humildade. Atrevo-me a dizer que chegaram aos píncaros porque, tendo talento, trabalho e auto-confiança, souberam ser humildes.

Carlos Fiolhais

 

Referências

 

- Aquino, Santo Tomás de. 2017.  Suma Contra os Gentios. Campinas: Ecclesiae, livro  IV, Cap LV.

- Comte-Sponville, André. 1995.  Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Presença.

- Dickens, Charles. 2011. David Copperfield. Lisboa: Relógio d’Água.

- Djerassi, Carl. 2012. Cálculo. Peça em dois actos. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, com prefácio de Carlos Fiolhais.

- Einstein, Albert. 2018. Citações de Einstein. A Coletânea Definitiva. Col. e org. por Alice Calaprice. Lisboa: Relógio d’Água.

- Fiolhais, Carlos. 2005. «Einstein e a Religião», Estudos. Nova sér. n.º 4, 323- 329.

https://eg.uc.pt/bitstream/10316/12369/3/einstein_e_a_religiao.pdf

- Fiolhais, Carlos, 2021, «Para uma ciência da complexidade: Um conceito-chave no pensamento de Manuel Sérgio», in Franco, José Eduardo e Real, Miguel. 2021. Pensar à Frente: Corporeidade, Desporto, Ética, Cultura e Cidadania - Estudos sobre Manuel Sérgio, Porto: Afrontamento, pp. 13-24.

- Grenberg, Janine. 2010. Kant and the Ethics of Humility. A Story of Dependence, Corruption, and Virtue. Cambridge: Cambridge University Press.

- Lewis, C. S.  2001, Mere Christianity, Grand Rapids – Michigan : Zondervan.

- O Minho 19/7/2021

https://ominho.pt/podem-contar-com-o-fernando-pimenta-de-sempre-lutador-sonhador-ambicioso-e-humilde/

- Popper, Karl. 2018. Conjeturas e Refutações. Lisboa: Edições 70.

- Rodrigues, César e Pinheiro, Jacinto. Mundial 66 Olhares. Porto: Afrontamento.

- Sérgio, Manuel. 2005. Para um novo paradigma do saber e.… do ser.  Coimbra: Ariadne, com prefácio de Carlos Fiolhais.

- Sérgio, Manuel. 2009. Filosofia do Futebol. Lisboa: Prime Books.

- Sérgio, Manuel. 2012. Crítica da Razão Desportiva. Lisboa: Piaget .

 - Sérgio, Manuel. 2018. Para uma Epistemologia da Motricidade Humana. Lisboa: Nova Veja.

- Tovar. Rui. 2017. «A Volta a Portugal. As 10 melhores histórias». Observador 4/08/2017.

https://observador.pt/especiais/volta-portugal-agostinho-chagas-venceslau-plaza/

- Warren, Rick. 2012, The Purpose Driven Life: What on Earth am I here for? Grand Rapids – Michigan :  Zondervan.

 

 


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