sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

GARY LACHMAN E O OCULTISMO NA POLÍTICA


Meu artigo no I de ontem:

O livro de Gary Lachman que a Gradiva que acaba de publicar com o título Estrela Negra a Pairar e o subtítulo Ocultismo e Poder na Era de Trump é, nas palavras do autor, “uma espécie de relatório provisório sobre a política do oculto existente na actualidade”. A figura central é Donald Trump, mas uma parte do livro incide sobre Vladimir Putin, um líder que Trump admira. Os dois são assistidos por gurus vindos do mundo do oculto, que exibem relações, como Lachman esclarece, com o pós-modernismo, o movimento New Age, a corrente de pensamento positivo e a chamada “magia do caos”. As suas ideias políticas têm, como se sabe, a ver com o tradicionalismo, o populismo e o autoritarismo.

A minha introdução ao tema do ocultismo deu-se na adolescência quando li O Despertar dos Mágicos de Louis Pauwells e Jacques Bergier (Bertrand, 1964; original de 1960), um livro que deu origem ao movimento do “realismo fantástico”, cultivado pela revista Planète. Com o alargamento da minha formação científica libertei-me das fantasias dessa obra, que, embora em certos passos louvasse a ciência, era, em larga medida, anticientífica. Na segunda parte do Despertar dos Mágicos são dados exemplos de ligações entre o nazismo e o pensamento mágico, que iam desde a teoria do gelo e do fogo de destruição da Terra até à teoria da Terra oca, segundo a qual vivemos no interior da Terra e não na sua superfície (hoje está mais na moda a teoria da Terra plana, que é uma loucura semelhante). Quando publiquei com David Marçal A Ciência e os Seus Inimigos (Gradiva, 2017), recuperando algumas dessas histórias, incluímos obviamente Hitler no capítulo nos ditadores. Referimos a patetice que era a “ciência ariana”, pretensamente superior à “ciência judaica”. Incluímos Estaline no mesmo grupo, referindo as delirantes teorias anti-darwinianas que o charlatão Lysenko cultivou, com um rasto de miséria e morte. No capítulo seguinte, falámos de Trump, que classificámos como ignorante, devido às tretas pseudocientíficas que defendia, como os perigos das vacinas, a nagação das alterações climáticas e a incompreensão dos vírus (nunca pensámos há três anos que a sua carreira seria seriamente abalada por um novo vírus!). Ao colocarmos Trump depois de Hitler e Estaline, frisámos que Trump não pode ser considerado um ditador, dada a geografia em que vive. No entanto, podemos acrescentar hoje que um regime autocrático esteve iminente nos Estados Unidos quando o Capitólio, símbolo da democracia americana, foi invadido por hordas que ele sem dúvida incitou.

O escritor norte-americano Gary Lachman (n. 1955), que vive há muitos anos em Londres, fornece na obra em apreço uma interessante ligação entre os dois capítulos do nosso livro. Apesar das notórias diferenças, Trump sofreu fortes influências de movimentos mais ou menos ocultistas, tal como tinha ocorrido com Hitler no século passado. A obra de Lachman é assaz curiosa por ligar figuras e factos que poderíamos pensar estarem desligados, encaixando-as todas num padrão de recusa da racionalidade e de advocacia de inspirações misteriosas. Por exemplo, Trump foi um “bom aluno” do reverendo Norman Vincent Peale, que oficiava na Marble Collegiate Church de Nova Iorque (foi nessa igreja que Trump se casou com Ivana e onde assistiu ao funeral dos seus pais). O pastor acreditava piamente no poder do pensamento positivo (é autor de O Poder do Pensamento Positivo, Nascente, 2017; original de 1952), cujas teses são claramente assumidas por Trump no seu livro de autoajuda The Art of the Deal (2015). Segundo Peale, se conseguirmos imaginar clara e longamente um certo fim pretendido e se tivermos confiança suficiente, conseguiremos que ele se materialize. Esta mesma conversa da treta reapareceu no livro O Segredo, de Rhonda Byrne (Lua de Papel, 2007), uma paladina do Novo Pensamento e da New Age, dois movimentos de inspiração esotérica. Para Peale: «A mente consegue ultrapassar qualquer obstáculo.»

A extrema-direita tem alimentado esta ficção de que a vontade cria a realidade. Encontramos, por exemplo, uma tal tese em escritos do Führer. De facto, durante a campanha de Trump emergiu um movimento de extrema‑direita, próximo do nacional-socialismo e sustentado na Internet, que ficou conhecido por «direita alternativa» ou alt‑right. O seu mentor, Richard Spencer, logo após a vitória de Trump, saudou numa conferência os seus adeptos de uma maneira decalcada do nazismo. Conta Lachman: “A plateia respondeu às saudações de Spencer — ‘Hail  Trump, hail o nosso povo, hail a nossa vitória!’ — com um aplauso passional e não foram poucas as saudações nazis — ou melhor, romanas, tal como Spencer explicaria mais tarde. O facto mais perturbador foi, no entanto, Spencer e os seus seguidores reivindicarem os louros pela vitória de Trump. Chamaram‑lhe uma ‘vitória da vontade’ e declararam: ‘A nossa vontade levou Donald Trump ao poder, tornámos esse sonho a nossa realidade.’

Mas há mais “ligações perigosas” que Lachman desnovela. Há também o guru Steve Bannon, estratega-mor da campanha trumpista e por uns tempos da Casa Branca, que tem aconselhado partidos de extrema-direita na Europa. Ora, conforme esclarece Lachman, Bannon é “seguidor dos ocultistas italianos do século XX e do filósofo esotérico Julius Evola”. Evola é um fascista italiano, autor de ideias tradicionalistas anti-liberais, anti-igualitárias e anti-democráticas, que escreveu em 1934 o título Revolta contra o Mundo Moderno (D. Quixote, 1989).

Quem é Gary Lachman? Ex-guitarrista do grupo rock nova-iorquino dos anos 70 Blondie, sobre o qual escreveu New York Rocker: My Life in the Blank Generation (2002), enveredou depois pela escrita de livros sobre temas esotéricos e mágicos: é autor de cerca de 30 obras que incluem biografias de Aleister Crowley, Carl Gustav Jung, Madame Blavatsky e Emanuel Swedenborg (as obras sobre Jung e Blavastsk estão traduzidas no Brasil). A sua lista bibliográfica inclui, relacionados com o livro que agora saiu entre nós, os títulos Politics and the Occult (2008) e The Return of Holy Russia (2020).

Por falar em Rússia, o penúltimo capítulo de Estrela Negra a Pairar é sobre os bastidores da política russa. Diz Lachmann: “Donald Trump pode ter sido o primeiro presidente pós‑moderno dos EUA, mas o seu homólogo russo, Vladimir Putin, está envolvido com a pós‑verdade e os factos alternativos há já mais tempo”. O guru da geoestratégia de Putin tem sido Alexander Dugin, um ideólogo neo-fascista, tal como Bannon simpatizante de Evola, para quem a “eleição de Trump foi “incrivelmente bela – um dos melhores momentos da minha vida”.

Apesar de o livro de Lachman ser bastante actual e conter muita informação relevante, suscita-me algumas reservas. Em primeiro lugar, parece-me que o autor não conhece a fundo alguns dos filósofos de que fala, pois o seu tom é mais jornalístico do que erudito. As referências são mais links da Internet do que fontes originais. E, em segundo lugar e mais importante: apesar de o autor tentar manter um tom neutro, é óbvio, pelo seu percurso de vida e pela sua bibliografia, que ele simpatiza com algumas das ideias sobre as quais escreve. Tem sido articulista de jornais do oculto, como o Fortean Times, dirigiu uma livraria New Age, ensina numa universidade “alternativa”, tem feito conferências sobre temas estranhos, etc. Sobre ciência, faz pouca ideia, como mostra a sua afirmação repetida de que, segundo Heisenberg, na teoria quântica o observador “cria a realidade”. Está errado, mas não está sozinho: as teorias New Age invocam falsamente essa ideia de que a consciência controla o mundo físico.

Salvando a honra do convento, Lachman reconhece, porém, que o pós-modernismo contraria o racionalismo e, portanto. a ciência: “O pós‑modernismo é uma perspectiva filosófica que surgiu no final do século XX, com influências da filosofia de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger, que anteriormente haviam quebrado com a noção de verdade estável e ‘objectiva’, a que usamos no nosso dia‑a‑dia e é usada na ciência. De forma sucinta, a essência do pós‑modernismo— apesar de negar que tem uma ‘essência’ — pode resumir‑se à frase ‘tudo flui’. Para o pós‑modernismo as certezas científicas e racionais que construíram o mundo moderno, assim como os valores tradicionais, como a verdade, já não são relevantes.” Está bem dito: é por isso que não sou pós-moderno. Acho um non-sense esta frase no final do livro: “Se filósofos como Kant e Husserl, poetas como Blake e Coleridge, mestres esotéricos como Swedenborg e Steiner, cientistas como Werner Heisenberg e mágicos como Aleister Crowley concordam que, de alguma forma  ainda não compreendemos totalmente, as nossas mentes interagem com o mundo exterior, então não há razão para negar que o pensamento positivo ou a magia do meme são possíveis. Quem os pôs em prática e obteve resultados já sabe disso.“ Colocar a par Heisenberg, o físico quântico, e Crowley, o mágico que, com Pessoa, encenou o seu suicídio em Cascais, é estapafúrdio.

Numa época em que quase não há livros novos, a Gradiva foi arrojada ao lançar uma obra  que se junta a outras sobre política internacional de grande ajuda para compreender o mundo de hoje. Mas este livro tem algumas fragilidades: eu gostaria de ter visto, do autor, uma posição mais racional e científica quando trata o anti-racional e o anti-científico.

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