sábado, 20 de fevereiro de 2021

CIÊNCIA E POLÍTICA EM TEMPO DE PANDEMIA

Eis as declarações que prestei a Nuno Ribeiro, jornalista do Público, que ele resumiu muito bem aqui:

Uma coisa é ciência, que exige método e tempo pois a "verdade" demora a assentar, e outra é a política, que tem um método e um tempo e uma agenda muito diferentes. A ciência não é a única dimensão que interessa à decisão em assuntos da vida pública - a política tem o seu espaço próprio! - mas deve ser um factor essencial dessa decisão.

A comunidade científica portuguesa, apesar de já somar cerca de 50 000 pessoas e de ter alguma visibilidade no espaço público, não está organizada de forma autónoma e não tem porta-vozes constituídos, nem sequer para discutir e apresentar numa base estritamente científica questões como a da actual pandemia. O que há é um conjunto de organizações (institutos, laboratórios, universidades, etc.) e pessoas dentro delas, que estão em geral dependentes de financiamento público, e, como esse financiamento é escasso, travam uma "luta pela sobrevivência". Competem uns com os outros pela atenção dos políticos e da sociedade, esquecendo-se que os mecanismos de cooperação são, por vezes, mais relevantes que os da competição. Perante um caso tão sério como o da pandemia, temos visto várias iniciativas mais ou menos individuais e voluntaristas, mas ainda não vimos a constituição de um conselho interdisciplinar e independente, isto é, um conselho que pudesse falar com a autoridade e também com a humildade próprias da ciência (sabemos muita coisa, mas é mais o que não sabemos) e que pudesse ser um porta-voz da ciência, da melhor ciência, tanto junto do governo como do público. Esse Conselho é necessário.

Não temos aqui nem um Dr. Anthony Fauci, um cientista à frente de um organismo público como há nos Estados Unidos, nem Sir Patrick Vallance, o Chief Scientific Advisor do governo britânico. Nem temos academias científicas vivas e actuantes capazes de dar aconselhamento científico externo:  a Royal Society de Londres é um corpo independente de cientistas com mais de 350 anos, cujo presidente fala directamente com o primeiro-ministro, sendo ouvido por este, pois, o seu interlocutor está sentado na cadeira onde Newton se sentou. Também não temos um conselho de universidades que seja verdadeiramente representativo e actuante. Apesar de terem surgido,  nesta crise sanitária, vários "porta-vozes" individuais da ciência, com méritos indiscutíveis, não há entre nós nem um conselho científico nem um porta-voz credenciado pelos seus pares. Não há nenhum sítio onde possa ter lugar o diálogo interdisciplinar que é absolutamente necessário para assegurar aconselhamento científico coerente.

Neste estado de coisas, o governo português "usa" a ciência sem se preocupar verdadeiramente com ela. Invoca o nome dela em vão, como já disse o ex-director-geral da DGS Constantino Sakellarides. Não fez o mínimo esforço para formar um conselho científico para a crise. As reuniões informais no Infarmed em que se têm ouvido peritos individuais mais não são mais do que alibi para o governo fazer o que lhe aprouver, na velha tradução do "achismo" lusitano. Os políticos aproveitam o facto de os peritos num ou noutro aspecto discordarem (como é absolutamente normal) para fazerem uma depreciação da ciência, ao dizer que os cientistas são confusos, se contradizem,  se não entendem entre si, ao mesmo tempo que sobrevalorizam a política.

O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior tem estado apagado, não sendo um representante da ciência junto do governo, mas antes um representante do governo junto da ciência. Infelizmente, não tem o carisma nem a nororiedade que justamente tinha o saudoso José Mariano Gago. Tem, portanto, faltado ciência ao governo. Que, claramente, no final do ano passado tomou decisões erradas, aparecendo depois a usar termos científicos como "variantes genéticas" para esconder o seu erro. O governo também diz que a oposição estava a favor da "preservação do Natal" como se governar não fosse muitas vezes ter de decidir com o objectivo do melhor bem público em vez de entrar em concursos de popularidade com a oposição. A terceira vaga a que assistimos entre nós, proporcionalmente a maior de todo o planeta, deveu-se a deficiente planeamento e a más decisões. Teria sido preciso ir mais além do que a percepção comum que é tida normalmente pelos políticos. A ciência consiste precisamente em ir além da percepção do mundo que todos nós temos, usando com cuidado e rigor a observação, a experimentação e o raciocínio lógico.

Em suma, seria muito útil a existência de um conselho científico independente com um porta voz credível. Ele ajudaria sobremaneira na necessária comunicação da ciência não só com o poder público como com o público. É precisa uma boa comunicação da ciência para o público em geral. Nos EUA as pessoas acreditaram mais no Dr. Fauci do que em Trump. Na situação de insegurança e incerteza que vivemos, o público tem direito a uma fonte científica credível, mandatada pelos seus pares, que tenha os conhecimentos da ciência e que conheça o método da ciência. Em contraste, temos assistido a uma cacofonia de vozes, umas mais credíveis do que as outras: umas da área da ciência e outras meramente da política, muitas vezes cruzadas e dificultando a audição da mensagem. Receio que, por vezes, ninguém perceba nada de nada. É verdade que sobre certas coisas alguns cientistas dizem uma coisa e outros outra, mas não é menos verdade é que sobre a maior parte delas e sobre as coisas mais relevantes - a ciência consolidada - todos eles dizem o mesmo.

É preciso confiar na ciência que não é nem nunca foi a posição de um ou outro cientista, ou mesmo de um ou outro grupo de cientistas. A ciência nunca é um artigo só, mas uma acumulação de resultados. Alguns artigos passam, mas outros ficam. A ocasião poderia ter servido - pode ainda servir - para explicar o que é a ciência: não é apenas um conjunto de conhecimentos, mas sobretudo um método para alcançar novos conhecimentos, um método que é partilhado por uma comunidade e cujo resultado é dado à sociedade. É o nosso melhor método para conhecer o mundo material de que fazemos parte, portanto, é o melhor método para dar alguma segurança à nossa arriscada vida.

Carlos Fiolhais

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