sexta-feira, 9 de novembro de 2018
"NÃO ACONTECEU NADA DE EXTRAORDINÁRIO NA CRIAÇÃO", DIZ ATKINS
Excerto do último livro do químico inglês Peter Atkins (na imagem) "Como surgiu o Universo", que hoje estará em Lisboa para dar uma palestra no Oceanário:
"Gostaria de afirmar que não aconteceu nada de extraordinário na Criação. É claro que estou ciente das descrições empolgantes que dotaram esse momento de um tremendo dramatismo. Certamente o nascimento de tudo deve ter sido cosmicamente dramático, não é? Um acontecimento em forma de cataclismo cósmico gigantesco. Um impulso universal e espectacular de extraordinária actividade primordial. Uma explosão assombrosa que abalou os alicerces do espaço‑tempo. Uma fértil bola de fogo de intensidade cortante e incendiadora do espaço. Algo mesmo, mesmo grandioso. O Big Bang. A própria designação evoca um drama à escala cósmica. Efectivamente, Fred Hoyle (1915‑2001) introduziu em 1949 essa expressão de um modo sardónico, para a desvalorizar, uma vez que preferia a sua própria teoria de uma criação contínua, em curso, serenamente perpétua, uma cosmogénese eterna, um mundo sem início implicando um mundo sem fim. O Bang é visto como uma explosão gigantesca preenchendo todo o espaço, na verdade, criando todo o espaço e todo o tempo, e, num tumulto de calor, todo o Universo expandindo‑se, passando de um mero ponto de temperatura e densidade inimagináveis para algo muito mais frio e ainda em expansão, que consideramos ser hoje a nossa casa cósmica. A acrescentar a isso, temos a moda actual de considerar uma «era inflacionária», quando o Universo duplicou a sua dimensão a cada minúscula fracção de segundo, até atingir, em menos de um piscar de olhos, a sua expansão de meia‑idade, relativamente modesta, com temperaturas de apenas poucos milhões de graus, dando assim início à era que hoje conhecemos.
Não aconteceu nada de extraordinário? Sim, é um grande passo pensar em toda essa hiperactividade, energia e emergência da matéria fundamental em geral como não sendo nada de extraordinário. Mas mantenha‑se comigo, leitor. Gostava de explorar consigo o pensamento contra‑intuitivo de que não aconteceu nada de extraordinário quando o Universo iniciou a sua existência. Não estou a negar que o Big Bang, essa grande explosão, tenha ocorrido de uma forma dramática: há tantas provas a atestá‑lo, e tantas outras a favor da era inflacionária, que seria absurdo rejeitar essa noção como a descrição do Universo primordial, há pouco menos de 14 mil milhões de anos. O que estou a sugerir é uma reinterpretação.
Esta visão pretende dar um passo em frente na confrontação de um dos maiores enigmas da existência: como algo pode surgir do nada sem intervenção externa. Um dos papéis da ciência é simplificar o nosso conhecimento da Natureza descartando atributos enganadores. O assombro da complexidade quotidiana é substituído pelo assombro da interconectividade com uma simplicidade interior. A estupefacção perante as maravilhas do mundo subsiste, mas é aumentada pelo regozijo da descoberta da simplicidade que lhes subjaz e da sua potencialidade. Assim, é muito mais fácil compreender a Natureza à luz da selecção natural de Darwin do que simplesmente recostando‑nos maravilhados perante a riqueza e a complexidade da biosfera: a ideia simples de Darwin fornece um enquadramento de compreensão, mesmo que seja profunda a complexidade que emerge dele. A estupefacção subsiste, e é talvez intensificada por uma ideia tão simples explicar tanta coisa. Einstein simplificou a nossa percepção da gravitação através da generalização da sua teoria da relatividade restrita: essa generalização interpretou a gravidade como uma consequência das deformações do espaço‑tempo provocadas pela presença de corpos maciços. A sua «teoria geral» é uma simplificação conceptual, apesar de as suas equações serem extraordinariamente difíceis de resolver. Ao extirpar o desnecessário e concentrar‑se no essencial, a ciência coloca‑se numa posição em que fica mais apta a fornecer respostas. Por outras palavras, ao mostrar que não aconteceu nada de extraordinário na Criação, torna‑se mais provável que a ciência consiga dar conta do que realmente aconteceu.
As palavras‑chave da minha afirmação são, claro está, «nada de extraordinário». Com toda a franqueza, gostaria de substituir «nada de extraordinário» por «absolutamente nada». Ou seja, gostaria de afirmar que não aconteceu absolutamente nada na Criação e de poder justificar essa afirmação. Sem actividade, não é necessário agente. Se não aconteceu absolutamente nada, então a ciência não teria nada para explicar, o que seguramente lhe facilitaria a tarefa. Poderia até afirmar, em retrospectiva, que já fora bem‑sucedida! Por vezes, a ciência fez progressos demonstrando que uma questão é insignificante, como no caso de saber se dois observadores em movimento podem chegar a acordo quanto à simultaneidade dos acontecimentos, conduzindo à relatividade restrita. Embora não esteja no âmbito da ciência, o problema de se saber o sexo dos anjos é eliminado se, de qualquer forma, puder ser demonstrado que os anjos não existem ou, pelo menos, que devido a algum defeito anatómico são totalmente desprovidos de partes baixas. Portanto, a eliminação de uma pergunta pode ser uma forma legítima de lhe responder. Isto pode ser um passo maior do que a perna e ser visto como uma desvalorização do dever do académico, uma espécie de batota, uma típica violação do compromisso científico — chame‑se‑lhe o que se quiser — que o leitor não está preparado para aceitar nesta fase. Por isso restringirei o meu argumento à afirmação de que «nada de extraordinário » aconteceu quando o Universo surgiu e a seu tempo quantificarei esse «nada»."
Peter Atkins
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
FÁBULA BEM DISPOSTA
Se uma vez um rei bateu na mãe, pra ficar com um terreno chamado, depois, Portugal, que mal tem que um russo teimoso tenha queimado o te...
-
Usa-se muitas vezes a expressão «argumento de autoridade» como sinónimo de «mau argumento de autoridade». Todavia, nem todos os argumentos d...
-
Meu texto num dos últimos JL: Lembro-me bem do dia 8 de Março de 2018. Chegou-me logo de manhã a notícia do falecimento do físico Stephen ...
-
Por Eugénio Lisboa Texto antes publicado na Revista LER, Primavera de 2023 Dizia o grande dramaturgo irlandês, George Bernard Shaw, que ning...
Sem comentários:
Enviar um comentário