segunda-feira, 12 de novembro de 2018

A destituição do ser humano da sua humanidade

Estou perfeitamente consciente de que me encontro entre os muitíssimos milhões de pessoas que desconhecem em grande medida o rumo que o mundo está a tomar. Não porque o mundo tenha vontade própria, mas porque há quem decida esse rumo e o apresente, na altura certa, como pronto e inevitável; não porque recuse informar-me mas porque a mudança é demasiado rápida para ser possível acompanhá-la.

Nesse rumo marca presença de destaque a tecnologia. Noto que, sendo ela a face visível das inquietações que legitimamente desencadeia, não é a sua origem. O que, de facto, deve inquietar é a nova maneira de a encarar: ela passou a valer por si, tudo justificando.

A questão não é, pois, a sua invenção e o seu uso (na verdade, obra da humanidade) mas o distanciamento crescente que provoca face ao sentido do humano (de tal modo que este se afigura muito difícil de recuperar). 

É de defender, de facto, a tecnologia que concorre para o que eticamente está certo - por exemplo, salvar vidas ou melhorá-las, proporcionar o acesso à cultura -, mas como aceitar a que é usada contra este desígnio? A que é usada para substituir pessoas em tarefas que requerem inteligência? A que é usada para as vigiar e controlar, atentando contra a sua liberdade e dignidade? 

Como é possível que pessoas dêem forma humana a máquinas? Como é possível que "humanizem" máquinas? Como é possível que pretiram outras pessoas em favor de máquinasComo é possível que subjuguem outras pessoas a máquinas?

Nunca antes na nossa história tivemos tanta gente escolarizada no mundo e a chegar tão longe, a níveis superiores. Mas, certamente, o essencial foi esquecido, desvirtuado.

E o que é, afinal, o essencial? É "tornar éticos ou morais os educandos, inculcar-lhes valores éticos, torná-los pessoas morais" (Barros de Oliveira,1997, p. 53). Acontece que essa tarefa requer "uma permanente conquista pois "na sua ausência o ser regressa à barbárie e à animalidade" (Antunes, 1973, p. 33). 

Chegámos a um momento em que, muito seriamente, devíamos parar para pensar. Mas isso não vai, por certo, acontecer e, portanto, a vertigem de destituição do ser humano da sua humanidade prossegue, como se percebe no exemplo abaixo, anunciado ao mundo depois de estar pronto e a funcionar em pleno. 
"... agência de notícias do governo chinês, anunciou que fará uso de pivots para ler as notícias em vídeo, aproximando-nos um pouco mais do eventual futuro distópico que tanto receamos em que os robots tomam controlo do mundo. Como pode ver pelo vídeo, a IA em questão toma como base imagem de um pivot real, editando apenas a zona da boca de forma a que esteja sincronizada com as notícias que são lidas com uma voz sintetizada. Haverá dois pivôs de IA (um para inglês e outro para chinês) e “trabalharão 24 horas no site oficial e em várias redes sociais, reduzindo os custos de produção de notícias e melhorando a eficiência”. Tendo em conta a forma como o governo chinês tem integrado tecnologia nas cidades – de modo a melhorar os níveis de vigilância governamental, recorrendo até a reconhecimento facial) – e pretende implementar nos próximos anos crédito social que pode acentuar disparidades sociais, é natural que estes pivôs artificiais estejam a ser vistos com algum receio" (Miguel Patinhas Dias, 8 de Novembro de 2018).
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Referências bibliográficas:
- Antunes, M. (1973). Educação e sociedade. Lisboa: Sampedro.
- Oliveira, J.H.B. (1997). Filosofia e Psicanálise Educação. Coimbra: Livraria Almedina.

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

Um dos pontos críticos da robotização com aspeto humano tem a ver com a "performance", tanto estética, quanto vocal, ou outra competência específica. Quando comecei a lecionar, há uns anos, ainda sem computadores, nem telemóveis, logo me apercebi de que a televisão, rádio e os produtos sofisticados (acabados) dos profissionais de comunicação e do discurso, incluindo pregadores e demagogos, me faziam uma concorrência brutal, desde logo, enquanto modelo de comunicação.
A comunicação "cozinhada" estava para o professor "cozinheiro", como o "fast food" está para o cozinheiro "professor".
Ter esta consciência foi muito vantajoso, porque ajudou-me a discernir mais claramente qual o papel e os objetivos e os efeitos de uns e de outro.
O lugar do professor não pode ser ocupado por um livro, nem por um discurso, mais ou menos solene, mais ou menos entoado. Nem por um gravador. O professor é uma central de soluções e de erros e de problemas, mas também é humano, tão humano como o são os alunos. E isto é insubstituível e imprescindível, não só para a educação, mas também para a formação e as aprendizagens.
Quando penso na IA, não penso apenas que os robots podem ensinar e aprender e fazer imensas tarefas impossíveis ao homem. Também penso que eles vão ser programados para não fazerem erros fatais. E penso que, por exemplo, os aviões nunca fizeram concorrência às aves, nem as calculadoras fizeram concorrência ao cérebro humano. Pelo contrário.
Mas o que creio ser mais importante é a singularidade humana, a individualidade, a irregularidade e errância, os altos e baixos, a imprevisibilidade e o génio.
Um mundo de robots é uma monotonia de ordem unida. Cada série de robots fará exatamente o que lhe está programado que faça. Um mundo de robots é um mundo que se repete e não muda. Incapaz de fazer história, de produzir história. Só o homem o faz.
E estou a pensar na robotização do homem, que tem sido uma tendência das forças de organização social e política, nomeadamente militar, desde tempos imemoriais.
A necessidade de robotozição já vem de muito longe, mas só agora está a ser concretizada pelos meios mais surpreendentes.

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