domingo, 11 de novembro de 2018

"Cansei-me... rendo-me..."

Leonardo Haberkorn, jornalista e escritor, era professor numa universidade de Montevideo. Corre na internet um artigo seu publicado em papel, em 2015, com o título "Me cansé... me rindo...", onde declara ter deixado o ensino, que antes o apaixonava, e explica porquê.
Tomámos a liberdade de o traduzir, pois, por certo, ele tocará muitos professores e directores de escolas portuguesas. Desejável é que tocasse instâncias superiores e, de modo mais alargado, a sociedade.
"Depois de muitos e muitos anos, hoje dei a última aula na Universidade. 
Cansei-me de lutar contra os telemóveis, contra o whatsapp e contra o facebook. Ganharam-me. Rendo-me. Atiro a toalha ao chão. 
Cansei-me de falar de assuntos que me apaixonam perante jovens que não conseguem desviar a vista do telemóvel que não pára de receber selfies.
Claro que nem todos são assim. Mas cada vez são mais. 
Até há três ou quatro anos a advertência para deixar o telemóvel de lado durante 90 minutos, ainda que fosse só para não serem mal-educados, ainda tinha algum efeito.
Agora não. Pode ser que seja eu, que me desgastei demasiado no combate. Ou que esteja a fazer algo mal.
Mas há algo certo: muitos desses jovens não têm consciência do efeito ofensivo e doloroso do que fazem. Além disso, cada vez é mais difícil explicar como funciona o jornalismo a pessoas que o não consomem nem vêem sentido em estar informadas. 
Esta semana foi tratado o tema Venezuela. Só uma estudante entre 20 conseguiu explicar o básico do conflito. O muito básico. O resto não fazia a mais pequena ideia. Perguntei-lhes (...) o que se passa na Síria? Silêncio. Que partido é mais liberal ou que está mais à 'esquerda' nos Estados Unidos, os democratas ou os republicanos? Silêncio. Sabem quem é Vargas Llosa? Sim! 
Alguém leu algum dos seus livros? Não, ninguém! Lamento que os jovens não possam deixar o telemóvel, nem na aula. Levar pessoas tão desinformadas para o jornalismo é complicado. 
É como ensinar botânica a alguém que vem de um planeta onde não existem vegetais. Num exercício em que deviam sair para procurar uma notícia na rua, uma estudante regressou com a notícia de que se vendiam, ainda, jornais e revista na rua.
Chega um momento em que ser jornalista é colocar-se na posição do contra. Porque está treinado a pôr-se no lugar do outro, cultiva a empatia como ferramenta básica de trabalho. 
E então vê que estes jovens, que continuam a ter inteligência, simpatia e afabilidade, foram enganados, a culpa não é só deles. Que a incultura, o desinteresse e a alienação não nasceram com eles.
Que lhes foram matando a curiosidade e que, com cada professor que deixou de lhes corrigir as faltas de ortografia, os ensinaram que tudo é mais ou menos o mesmo. Então, quando compreendemos que eles também são vítimas, quase sem darmos conta vamos baixando a guarda. 
E o mau é aprovado como medíocre e o medíocre passa por bom, e o bom, as poucas vezes que acontece, celebra-se como se fosse brilhante. Não quero fazer parte deste círculo perverso. Nunca fui assim e não serei assim. 
O que faço sempre fiz questão de o fazer bem. O melhor possível. E não suporto o desinteresse face a cada pergunta que faço e para a qual a resposta é o silêncio. Silêncio. Silêncio. Silêncio. 
Eles queriam que a aula terminasse. 
Eu também."
M. Helena Damião e Isaltina Martins

8 comentários:

Anónimo disse...

É mesmo assim!...
A solução não é fazer de conta que está tudo bem, através da elaboração de "grelhas de avaliação científicas", em excel, e exibição de gráficos coloridos que demonstram estatisticamente a constante "melhoria das aprendizagens" registadas nos últimos anos!

capitão disse...

Há uma Fé de que breve aparecerá um algoritmo e que se formos capazes de pormos as cruzes no sítio certo, a solução irá aparecer. Para quê aprender a cozinhar se há Bimbis?

Vagabundo Ignorante disse...

É assim, o alunos universitunive teem o direito de estudar e pesquisar como entenderem.
No final ou sabem, ou não sabem.
O Prof. irá avalia-los duma forma supostamente justa.
Logo quem não sabe chumba.
O mal veio de trás, pelo que as Universidades devem preocupar-se com o modo e o que é ensinado a partir da pré-primaria ....

Anónimo disse...

1 - Declaração de interesses: fui professor e agora estou aposentado;
2 - Os tempos mudam#; o ensino oficial/formal (quase) não muda;
3 - A aprendizagem muda, muda muito, comandada e estimulada pela "tecnologia", pela "metodologia" e "politologia";
4 - Cada aluno dos 30, 50, 100, 200 que, numa aula, estão à nossa frente têm diferentes interesses, diferentes objetivos e estão em diferentes estados/estágios; o professor, compreensivelmente, não pode desdobrar-se;
5 - Os "problemas" do ensino, da educação, da formação, ..., estão generalizados;
6 - Critiquemos; adaptemo-nos;
7 - Os mais novos prevalecerão sobre os mais velhos que, mais dia menos dia, deixarão o palco, eventualmente mortos;
8 - Não estou resignado; estou convencido.

#Tenho um dicionário com pouco mais de 100 (cem) anos onde ainda não encontrei uma palavra escrita da forma com que hoje as escrevemos (mesmo sem novo AO)

Anónimo disse...

Escritor, jornalista e professor universitário ...
Tanta gente com estes atributos, na nossa praça (não vamos mais longe), que, a julgar pelos seus produtos mais públicos - os livros e as peças jornalísticas - é tão rasteira, medíocre e destituída que até dá dó.

The One disse...

O problema não é a evolução. O problema não é a estagnação dos professores. O problema é a regressão cognitiva dos alunos e a estagnação conceptual do ensino, na perspectiva do aluno, ou seja, são os próprios alunos que não sabem nem são capazes de tirar proveito destes novos tempos pois, entretanto, já lhes vão faltando conhecimentos para saber como o fazer. Qualquer temos apenas um monte de bois a olhar maravilhados para o palácio... Com todo o respeito pelos bois.

Inocência Dias disse...

Vá lá... Confessem... O jornalismo, hoje, é especulativo, muitas vezes injusto, analogamente invasivo, passando não notícias que demitem o caráter de quem não gostam. Trazem sempre atrás o rabo político do gato escondido.

Virgílio A. P. Machado disse...

LA HISTORIA DETRÁS DE... 2018.11.11
"Me rindo", la historia detrás de la carta de renuncia de un profesor de Periodismo
https://verne.elpais.com/verne/2018/11/11/articulo/1541931254_806173.html

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