Há alguns anos, por volta de 2005, li, na revista Courrier Intenacional, um artigo que me deixou particularmente sensibilizada. Nele, o seu autor, um árabe que eu desconhecia por completo, demonstrava uma frontal, clara e corajosa discordância em relação à orientação que havia sido dada ao currículo escolar da Arábia Saudita. Esse artigo com título que acima recortei do original dizia:
"O nosso ensino da história produz alunos que não sabem nada do mundo em que vivem. Entram na universidade sem terem ouvido falar das grandes transformações que conduziram à modernidade, da qual, no entanto, consomem os produtos materiais, sob a forma de automóveis ou de «walkmans» que colam aos ouvidos, abanando energicamente a cabeça. Não terão compreendido que a supremacia técnica do Ocidente se explica pela Revolução Industrial e pelo subdesenvolvimento do mundo muçulmano, não por uma conspiração ocidental, mas pelo facto de não termos adoptado esse modelo.
Do mesmo modo, nunca terão ouvido falar do movimento religioso da reforma que moldou o rosto da Europa de hoje, nem saberão nada da época das grandes descobertas que alteraram os equilíbrios geoestratégicos entre o Oriente e o Ocidente.
Também não saberão muito da génese da ideia dos direitos humanos ou da criação das organizações internacionais que hoje governam o mundo.
Em suma, os nossos deploráveis estudantes, que nem sequer sabem até que ponto são deploráveis, não compreenderão grande coisa do mundo em que vivem. E acaba-se sempre por detestar o que não se compreende.
Muitos dirão que estou a exagerar, mas leiam os jornais, oiçam a rádio e vejam a televisão e, por toda a parte, encontrarão pessoas que debatem o inelutável choque das civilizações […] uma doutrina que inculcamos nos nossos filhos, desde a reforma do sistema escolar designada por «rectificação doutrinária e civilizacional», que atingiu as nossas escolas e universidades em meados dos anos 80 e que conseguiu estender a sua influência desde a primeira Guerra do Golfo (1990-91).
Antes, durante os anos 70, nós, que hoje criticamos o nosso sistema de ensino, aprendíamos a história europeia. Lembro-me das discussões que tínhamos com os nossos professores sobre as semelhanças entre a reforma religiosa na Europa e na nossa região. Mais tarde, visitei as catedrais da Grã-Bretanha, onde ainda se vê como os iconoclastas da reforma protestante destruíram as estátuas dos santos. Isto não lhe lembra nada, caro leitor? Não é uma perfeita ilustração da semelhança que existe entre as experiências históricas dos povos? É este tipo de exemplos que pode tornar-nos mais disponíveis para nos aceitarmos uns aos outros.
A nossa geração estudou o que hoje qualquer estudante em todo o mundo estuda sobre as grandes civilizações e a história dos diferentes povos. Depois, subitamente, tudo desapareceu do programa. Porquê?
Gostaria de ouvir os pontífices responsáveis por esta mudança darem as suas explicações, mas sei que não se darão ao trabalho de responder às minhas interrogações. Pelo contrário, persistirão em defender os erros que levaram toda uma geração à ignorância. Considerar-se-ão, como sempre, acima de tais polémicas […]
Em vez de cairmos na armadilha da divisão, era preferível que nos reuníssemos todos para um diálogo entre estudantes, intelectuais, empresários e políticos (…)
Os destaques que fiz no texto são os que explorei muitas vezes com os meus alunos de Educação e de Ensino pois ilustram na perfeição o caminho, em muito semelhante, que trilhamos no Ocidente. Na América e na Europa intelectuais conhecidos como Allan Bloom, George Steiner, Jacques Barzun, Karl Popper, Fernando Savater, Newton Duarte, João Boavida, entre muitos outros, usam praticamente as mesmas palavras quando se referem à orientação do currículo escolar.
São palavras de alerta para arrepiarmos caminho, evitando conduzir as novas gerações à ignorância, conduzindo-as, isso sim, ao conhecimento. Ainda que esta via não seja absolutamente segura para se alcançar, na pessoa de cada um, a racionalidade e a liberdade, bem como os valores que elas polarizam é, sem dúvida, a melhor que conhecemos.
O leitor deve ter percebido que se trata de Jamal Khashoggi, o jornalista assassinado nas circunstâncias que se sabe. Quando ouvi a notícia, dei-me conta de que era a mesma pessoa que havia escrito o texto, tão verdadeiro quanto subversivo, de que me apropriei em tantas ocasiões.
No seu último artigo (“What the Arab world needs most is free expression”), publicado já depois da sua morte no The Washington Post, Jamal escreveu: “We suffer from poverty, mismanagement and poor education” (aqui).
A palavra educação, foi das últimas que redigiu. Noutros artigos que li dele nos últimos dias, ela é recorrente e está sempre associada a liberdade.
Este texto, que se diluirá rapidamente no imenso espaço virtual, traduz, não obstante, o meu profundo reconhecimento a alguém que, por ter insistido no que há de mais valioso no humano, deveria permanecer na nossa memória colectiva. Na minha ficará: enquanto puder, continuarei a usar o seu texto ainda que esteja perfeitamente consciente de que isso não terá a menor importância no rumo que o currículo escolar do Ocidente segue.
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NOTA: Agradeço reconhecidamente ao Courrier Intenacional, na pessoa de Ana Paula Figueiredo, que conseguiu, a meu pedido, recuperar o artigo de Jamal Khashoggi em suporte digital. Em meu nome e no do De Rerum Natura, muito obrigada.
Este texto, que se diluirá rapidamente no imenso espaço virtual, traduz, não obstante, o meu profundo reconhecimento a alguém que, por ter insistido no que há de mais valioso no humano, deveria permanecer na nossa memória colectiva. Na minha ficará: enquanto puder, continuarei a usar o seu texto ainda que esteja perfeitamente consciente de que isso não terá a menor importância no rumo que o currículo escolar do Ocidente segue.
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NOTA: Agradeço reconhecidamente ao Courrier Intenacional, na pessoa de Ana Paula Figueiredo, que conseguiu, a meu pedido, recuperar o artigo de Jamal Khashoggi em suporte digital. Em meu nome e no do De Rerum Natura, muito obrigada.
3 comentários:
Até na doutrina da Igreja Católica - a tal que condenou injustamente Galileu Galilei e, na atualidade, praticamente só é referida nos órgãos de comunicação social em associação com pedofilia -, a segunda obra de misericórdia espiritual ainda é "ensinar os ignorantes".
Também eu, um simples professor do ensino secundário, estou profundamente reconhecido a Jamal Khashoggi que, confesso, acabo de conhecer através das notícias e deste magnífico artigo, que basta para revelar a grande inteligência, lucidez e humanidade do seu autor.
Em Portugal, os mais recentes ataques ao conhecimento que os professores ainda tentam ensinar nas escolas têm os nomes obtusos de Aprendizagens Essenciais e Flexibilidade Curricular!
Caro Leitor Anónimo
Apesar dos regimes, apesar das reformas, haverá sempre profissionais - como jornalistas e professores - que fazem aquilo que devem - no caso, informar e ensinar. Falta, na verdade, no meu texto esta nota que o seu apontamento me sugere.
Cordialmente,
MHDamião
Prof. Doutora Helena
Muitos parabéns pelo seu post.
Como sempre, traz para a reflexão pública assuntos que a nossa consciência não pode ignorar.
Todavia, a apatia geral assume tudo como natural, não havendo, por parte da maioria, vontade e força para a indignação.
Jamal Khashoggi tinha toda a razão nas palavras que proferiu. Mas, para certo poder instituído, convém que a escola forme ignorantes ou pseudo críticos.
Os currículos vão-se esvaziando, mas estou certa de que muitos professores continuam a tentar que os seus alunos se tornem em espíritos lúcidos e lancem um olhar crítico à sua volta.
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