quarta-feira, 4 de abril de 2018

COM COENTROS E CONVERSAS À MISTURA

Novo livro do Professor Galopim de Carvalho.
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Há cerca de um ano, combinámos, eu e alguns dos meus leitores no Facebook, passar a livro uma selecção dos textos que aqui tenho publicado. A recolha está feita e mostrou-se mais volumosa do que eu esperava. Assim sendo, preparei uma primeira parte.

Planície alentejana com a Serra do Caldeirão a Sul (desenho e  João Alveirinho Dias)

COM COENTROS E CONVERSAS À MISTURA
(sopas de pão, açordas e migas)

que vou entregar à Âncora, a minha editora.

INTRODUÇÃO

Mais de dois anos de convivência virtual, praticamente diária, com os meus, agora, mais de 7000 seguidores no Facebook, e a insistências frequentes e empenhadas de muitos deles, senti-me no dever, quase na obrigação, de passar a livro uma selecção dos textos aqui editados (mais de um milhar) num conjunto tanto quanto possível harmónico, intercalando receitas culinárias, marcadas por sabores e modos de vida alentejanos, com temas que vão do trivial à divulgação científica, passando, pela cultura popular e erudita, em alguns dos seus diversos domínios.

Neste propósito, tem todo o cabimento falar do Alentejo dos mais variados ângulos de uma geografia abrangente, tal como a ensinava o Professor Orlando Ribeiro, meu grande mestre para a vida e para a ciência. No conjunto territorial e na diversidade da mais vasta província de Portugal cabe tudo o que deve ser considerado em relação com o espaço e, em muitos casos, com o tempo. Cabem aqui os aspectos inerentes à paisagem física, toda ela condicionada pelo substrato geológico, pelo clima e, consequentemente, pela vegetação, bem como a correspondente ocupação humana, com os seus usos e costumes, entre os quais, os saberes, os falares, os cantares e os comeres.

Conversas como aquelas que tivemos, eu e os meus companheiros, com os camponeses, em ocasiões do campismo selvagem que fazíamos nos terrenos das herdades rurais, sentados no chão, à volta da pequena fogueira, em noites de Verão, petiscando e confraternizando, onde os saberes próprios das vidas deles se misturaram com os nossos, adolescentes a estudarmos na cidade, estão aqui a par de outras, como as que habitualmente se têm à mesa em almoços e jantares de família, entre parentes ou amigos, ou entre colegas de profissão.

Em resumo, direi que nestas conversas cabe tudo. Além de saberes culinários, cabem relatos ou crónicas de situações vividas e presenciadas, experiências de profissão, intervenções cívicas, ensaios, reflexões que vão da política à filosofia, passando pela arte, com humildade e simplicidade, na perspectiva de ensinar e explicar a quem não sabe.

Foi neste entendimento que reuni um conjunto de receitas criadas de raiz, herdadas, transformadas ou inspiradas noutras que fui experimentando e seleccionando. Vindas de uma cadeia de famílias modestas e numa de seis filhos como foi a minha, os cozinhados que me ajudaram a crescer eram os necessários a esse desenvolvimento em saúde, simples, à medida do orçamento disponível, e de confecção rápida, posto que a mãe, nesse tempo e numa família numerosa, tinha muito mais que fazer. Nestes termos, as receitas que aqui deixo refectem, sobretudo, a aprendizagem que tive no domínio da gastronomia tradicional e popular alentejana.

“Com Coentros e Conversas à Mistura” não tem a preocupação de ensinar a cozinhar nem eu tenho preparação para tal. Sou um curioso sempre aberto a aprender e sempre disposto a partilhar o que vou aprendendo. Concebido para quem conhece o acto de cozinhar, permite que o leitor determine, para cada uma das confecções aqui apresentadas, as quantidades a usar, de acordo com número de convivas e com as suas próprias experiências e sensibilidade. Por natureza, gosto de experimentar e de inovar. Apenas nos pratos tradicionalmente consagrados procuro respeitar quantidades e modos de operar. Nos restantes, a grande maioria, modifiquei ou inovei, mas sempre no respeito pela tradição.
Mexo com alguma desenvoltura nos tachos, nas panelas e em muitos dos equipamentos da cozinha, sítio da casa onde sempre me senti bem e onde aprendi, com a minha mãe, os principais procedimentos inerentes à arte de cozinhar. Curioso de tudo, fui, assim, aprendendo a fazer, fazendo.

A cozinha é hoje, para mim e por assim dizer, a continuação do laboratório na Universidade que, a par do trabalho de campo, constituiu o essencial da minha investigação como geólogo.

Todas estas vivências e ocorrências que, sem me ter apercebido disso, fui gravando e arquivando profundamente na memória, foram trazidas ao presente no simples acto de escrever.

Nas minhas raízes está a grande chaminé da casa da minha avó, na rua de Frei Brás, e o lume de chão que ali se fazia com lenha de sobro ou azinho e aí se cozinhava em loiça de barro vermelho. Estão os chouriços, as linguiças e as farinheiras, feitas em casa, a curarem ao fumeiro. Está a manta de toucinho, alto de uma mão travessa, e tudo o mais que se cobria de sal, na grande salgadeira. Estão ainda os cheiros e os sabores das ervas e de outros produtos locais. Tantas marcas do Alentejo determinaram as minhas preferências gastronómicas, o que não me impede de reconhecer Portugal, de norte a sul, como o país com a cozinha mais saborosa do mundo, opinião muito pessoal de quem já se sentou à mesa em muitas latitudes e longitudes.

Tantas recordações trazem-me saudades do tempo das expectativas dos paladares que nos chegavam ao ritmo das estações do ano. Lembro-me das ervilhas e das favas temporãs vindas do Algarve e dos produtos da época, das azeitonas retalhadas ou pisadas, no tempo delas, dos morangos em Maio e das cerejas pelo São João. Tenho saudades dos queijos frescos, do almece e das queijadas autênticas, pela Primavera, no tempo dos cordeirinhos, dos enchidos acabados de fazer, pelo Natal e do toucinho alto, novo, ainda sem sal, e do outro, com um ano de velho, tirado da salgadeira. As melancias e os melões eram fruta de Verão, as uvas e a marmelada tínhamo-las no Outono e as laranjas só as comíamos nos meses de Inverno.

Ficaram-me na memória os aromas e os sabores inconfundíveis da culinária alentejana. A carne de porco, temperada de alho e massa de pimentão, frita em banha, na sertã de barro, as sopas da panela com hortelã, a açorda de poejos, as sopas de cação envinagradas e a libertar o cheiro dos coentros, as sardinhas de barrica fritas no azeite e as torradas com toucinho cozido ou com azeite, açúcar e canela. São lembranças de cheiros e paladares inesquecíveis que, noutros escritos, já associei aos cantares dos homens que, muitas vezes, na taberna da vizinhança, aos fins das tarde de sábado, se abriam em coro polifónico, trocando boa parte da magra féria por copos de vinho e petiscos, esquecendo aí e assim a “porca da vida”.

Decorridos mais de sessenta anos sobre a minha vivência alentejana, transporto comigo marcas indeléveis desta região do país. Os seus montados de azinho e sobro e as suas planuras de searas ondulantes, ainda verdes em começos de Maio e já a dourar sob o calor de Junho, simbolizam a paisagem que, como é natural, mais se identifica comigo.

 A. Galopim de Carvalho.

2 comentários:

Fernando Caldeira disse...

Mais um artigo delicioso do Professor Galopim: o cheiro das primeiras ervilhas e favas (100% orgânico), é uma das marcas indeléveis da minha memória primária (como será com certeza para todos os alentejanos).

Anónimo disse...

O Professor Galopim é pródigo na partilha das suas boas memórias de um tempo em que as rosas tinham espinhos, mas também tinham pétalas e perfumavam o ar ao cair da noite!
O prazer de ajudar a mãe a tirar a pele às favas, e descascar as ervilhas acabadas de colher na horta, era um sentimento comum aos portugueses do Minho ao Algarve e ilhas adjacentes!

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