"É inescapável: todos e todas estamos inserido em redes de
relações sociais que nos influenciam - e que nós também influenciamos - no que
pensamos, no que dizemos e no que fazemos no dia-a-dia. Desde que nascemos, na
família. Na escola, entre colegas e professores. Entre os nossos amigos e os
nossos vizinhos. Associamo-nos a coletivos de pessoas, uns mais formais
(associações, partidos políticos, movimentos sociais, clubes ou igrejas, por
exemplo), outros mais informais (o grupo de amigos do futebol ou com quem se praticam
outras atividades, a banda musical que se forma, as pessoas do facebook ou de outras redes sociais com
quem se interage, ou os amigos que se encontram regulamente). Integramo-nos em
empresas ou em outro tipo organizações de maior ou menor porte para trabalhar,
lidando diretamente com hierarquias e relações profissionais. Experimentamos vidas
em comum, com amigos, conhecidos, namorados, companheiros. Construímos novas
famílias, e várias, ao longo da vida.
Enfim, a vida faz-se sempre uns com os outros, em grupos e
instituições que moldam as pessoas de formas diferenciada e desigual: em função
das condições económicas, sociais e culturais das famílias em que nasceram e em
que vivem; das qualificações que conquistaram e as competências que desenvolvem;
de ser homem, mulher ou transgénero; da idade que se tem e dos papeis que são
chamados a desempenhar ao longo da vida (criança, jovem, adulto ou idoso;
estudante, trabalhador ou reformado, ou filhos, pais ou avós, por exemplo); das
condições laborais e profissões que se tem, as quais conferem às pessoas estatutos
sociais mais ou menos valorizados e favorecidos do ponto de vista social.
Herdamos redes de relações sociais e construímos outras, constantemente, numa
sociedade cada vez mais complexa, fluída, globalizada e imprevisível.
É neste âmbito que, em termos gerais, encontramos a
especificidade da Sociologia enquanto área do saber: a sua vocação é estudar as
relações sociais que se estabelecem
entre as pessoas e que constroem a vida
social, ao nível mais quotidiano dos encontros sociais, ao nível mais
institucional da vida das organizações, ou ao nível mais estrutural das
relações transnacionais e dos problemas globais, para dar alguns exemplos. Interessa
à Sociologia, portanto, descobrir como essas redes de relações sociais mais
localizadas ou mais amplas são construídas, explicar como são organizadas, compreender
que influências têm na vida de cada um, e que impactes têm na vida de todos,
nomeadamente em termos de manutenção ou de transformação social.
Mas nada disto acontece de forma determinista e
pré-determinada. A vida social tem as suas regras e regularidades, mas não tem
leis universais, como tendem a procurar outras ciências. As relações sociais
são sempre contextualizadas nos tempos da História coletiva e das histórias de
vida, bem como nos espaços geográficos e culturais, de fronteiras cada vez mais
fluídas. Dentro dessas matrizes de tempos e espaços, as pessoas vão construindo
umas com as outras (em colaboração), ou umas contras as outras (em conflito),
campos de possibilidades para projetar e desenvolver as suas vidas pessoais e
coletivas.
Acontece que esses campos de possibilidades não são
igualitários na sua «estrutura», ou seja, nas oportunidades que dão e nos constrangimentos
que colocam às pessoas. As relações sociais tendem a ser caracterizadas não
apenas por diferenças marcantes, mas também por desigualdades profundas. Há
quem nasça em condições sociais e económicas mais favorecidas ou mais vulneráveis.
Há quem adquira estatutos sociais conferidores de mais poder para si próprio e
sobre os outros. Estas condições constrangem, desde logo, o espaço de
possibilidades e escolhas de cada indivíduo ou grupo. Daí a sociologia, ao
saber que isso acontece, ao estudar como e por que acontece, também participar frequentemente
com o conhecimento que produz na fundamentação de políticas que favoreçam a
igualdade de oportunidades entre as pessoas.
Considerando a relação de intimidade de toda a gente com o
objeto próprio da Sociologia, a vida social, essa relação tem tanto de fascinante
quando de perigosa no exercício das várias práticas profissionais dos
sociólogos, seja na universidade, seja em muitos outros campos onde estes
praticam o(s) saber(s) sociológico(s). Enquanto seres sociais, todos construímos
juízos de valor e categorias de interpretação da vida em sociedade, as suas
instituições e dinâmicas sociais. No entanto, nem todos estamos habilitados a
fazer sociologia.
O que difere a Sociologia da mera opinião - mesmo que
informada e sofisticada - e lhe confere o estatuto de Ciência, é o facto do conhecimento
que produz ser sempre resultado de um processo de investigação empiricamente
fundamentado. Esse processo, por sua, vez, implica a aplicação sistemática e
controlada de um conjunto de protocolos metodológicos, técnicos e
deontológicos, que orientam a produção, o tratamento e a análise de dados
empíricos de natureza diversa, quantitativa ou qualitativa. É neste sentido
que, muitos de vocês, caros e caras leitores e leitoras, já terão sido
interpelados por sociólogos ou aprendizes de sociologia para preencher um
inquérito por questionário, para responder a uma entrevista ou participar de um
grupo de discussão, ou para serem observados na vossa vida quotidiana, ou
acompanhados em alguma atividade específica.
Os dados que vocês, gentilmente, cedem aos sociólogos quando
colaboram nas nossas pesquisas, é para nós um bem extremamente valioso, na
medida em que só através deles são validadas as hipóteses de explicação e
compreensão da vida social construídas com base no património conceptual
historicamente acumulado no campo da Sociologia. É esta articulação cuidadosa e
eticamente conduzida entre os dados que as pessoas nos facilitam, as teorias
que temos e os métodos que aplicamos, que protege a Sociologia e os
profissionais que a fazem das contaminações ideológicas e posições dogmáticas tão
facilmente (re)produzidos na vida social. Ao invés, toma-as para si própria
como objeto de estudo, desconstruindo e explicando ideias feitas,
generalizações abusivas, universalismos reducionistas ou individualismos
culpabilizantes, e dando a conhecer o mundo social na sua pluralidade,
organicidade e complexidade.
Tal só se consegue fazer com uma sólida formação de base, em
termos teóricos, metodológicos e éticos, a qual deveria começar tão cedo quanto
possível. Apesar de recente, a Sociologia é, hoje em dia, um campo disciplinar
consolidado em Portugal, com uma oferta formativa de qualidade
internacionalmente reconhecida no ensino superior. Tem sido, no entanto, uma
disciplina menosprezada na oferta formativa ao nível do ensino secundário.
Resume-se hoje a uma disciplina de opção no 12º ano de escolaridade, onde os
sociólogos, anacronicamente, continuam a não ser reconhecidos pelas instâncias
oficiais como detentores da habilitação própria para fornecê-la aos estudantes,
facilmente ultrapassados nos concursos de colocação de professores por colegas
de outas áreas.
Ora, numa era em que tende a impor-se o «paradigma da
pós-verdade», a revalorização escolar da Sociologia numa etapa precoce da
trajetória escolar contribuiria, com certeza, para uma formação mais crítica,
reflexiva, inclusiva e cidadã dos jovens estudantes, quando ancorada em
conhecimento cientificamente fundamentado sobre os desafios que lhes vão ser
colocados com maior intensidade pelas sociedades contemporâneas nos seus
percursos de vida."
Vitor Sérgio Ferreira ( Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa)
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