sábado, 5 de novembro de 2016

SUPERPREVISõES - ARTE E A CIÊNCIA DE PREVER O FUTURO


Em pre-publicação, eis o início do livro "Superprevisões" (a sair muito em breve na Gradiva) cujo primeiro autor, o psicólogo canadiano Philip Tetlock,  vai estar na Universidade de Lisboa no dia 23 de Novembro para dar uma conferência e participar num debate no âmbito do mês da Ciência da Fundação Francisco Manuel dos Santos:

"Todos fazemos previsões. Quando pensamos em mudar de trabalho, casar, comprar uma casa, fazer um investimento, lançar um produto ou reformar‑nos, as nossas decisões são baseadas no modo como esperamos que o futuro se desenrole. Essas expectativas são previsões. Muitas vezes fazemo‑las por conta própria. No entanto, quando há grandes acontecimentos — mercados em queda, guerras iminentes, líderes em situações difíceis —, recorremos a especialistas, às pessoas que sabem. Recorremos a pessoas como Tom Friedman.

Se trabalhasse na Casa Branca, o leitor poderia encontrá‑lo na Sala Oval, com o presidente dos Estados Unidos, a falar sobre o Médio Oriente. Se fosse administrador de uma empresa da lista Fortune 500, poderia encontrá‑lo em Davos, a conversar nos salões com milionários dos fundos de investimento e príncipes sauditas. Se não frequenta a Casa Branca nem hotéis de luxo suíços, poderá ler as suas colunas no New York Times e os bestsellers que o informam sobre o que está a acontecer, porque está a acontecer, e o que acontecerá a seguir. Milhões de pessoas fazem o mesmo.

Tal como Tom Friedman, Bill Flack prevê eventos globais. No entanto, o interesse pelas suas previsões é bem menor.

Durante muitos anos, Bill trabalhou para o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos no Arizona — «em parte a fazer trabalho pesado, em parte a preencher folhas de cálculo» —, mas agora vive em Kearney, no Nebrasca. Bill nasceu na região, é um verdadeiro cornhusker. Cresceu em Madison, uma cidade agrícola onde os pais possuíam e publicavam o Madison Star‑Mail, um jornal repleto de artigos sobre desporto e feiras locais. Foi bom aluno no ensino secundário e depois fez uma licenciatura em Ciências na Universidade do Nebrasca. Em seguida foi estudar na Universidade do Arizona. O seu propósito era obter um doutoramento em Matemática, mas percebeu que um tal objectivo estava acima das suas capacidades — «as minhas limitações foram‑me esfregadas na cara», conta Bill — e abandonou os estudos. No entanto, não foi tempo perdido. As aulas de Ornitologia tinham feito de Bill um observador de pássaros ávido, e, visto que o Arizona é um lugar óptimo para esta actividade, Bill começou a fazer trabalho de campo a tempo parcial para cientistas e depois obteve um emprego no Departamento de Agricultura, onde se manteve algum tempo.

 Bill tem 55 anos e está reformado, embora diga que, se alguém lhe oferecer um emprego, talvez pense em voltar a trabalhar. Isto significa que tem bastante tempo livre. E passa parte desse tempo a fazer previsões. 

Este homem já respondeu a cerca de trezentas perguntas, como «A Rússia vai anexar oficialmente mais território da Ucrânia nos próximos três meses?» e «No próximo ano algum país sairá da Zona Euro?». São questões importantes. E difíceis. As empresas, os bancos, as embaixadas, os serviços de informação de segurança tentam constantemente responder a questões desta natureza. «A Coreia do Norte irá detonar um dispositivo nuclear até ao fim do ano?», «Em quantos países serão detectados casos de ébola nos próximos oito meses?», «A Índia ou o Brasil irão tornar‑se membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU nos próximos dois anos?» Algumas destas perguntas são totalmente obscuras, pelo menos para a maioria das pessoas. «A NATO vai considerar o plano de adesão de mais algum país nos próximos nove meses?», «O governo regional do Curdistão vai realizar um referendo sobre a independência nacional este ano?», «Se uma empresa de telecomunicações não chinesa ganhar um concurso para oferecer serviços de Internet na Zona de Comércio Livre de Xangai nos próximos dois anos, os cidadãos chineses terão acesso ao Facebook ou ao Twitter?» Quando Bill vê estas perguntas pela primeira vez, provavelmente não faz ideia de como responder. Talvez pense: «O que será a Zona de Comércio Livre de Xangai?» Mas faz o seu trabalho de casa. Reúne factos, pesa argumentos contrastantes e prepara uma resposta. 

Ninguém baseia as suas decisões nas previsões de Bill Flack. Ninguém lhe pede que exponha as suas ideias na CNN. Nunca foi convidado para Davos ou para participar numa mesa‑redonda com Tom Friedman. É pena, porque Bill Flack é um previsor extraordinário. Sabemo‑lo porque todas as suas previsões foram datadas, registadas e analisadas por observadores científicos independentes para aferir a sua precisão. O seu desempenho é excelente. 

Bill não é caso único. Há milhares de outras pessoas a responder às mesmas perguntas. Todas de modo voluntário. Em geral não são tão boas como Bill, mas cerca de 2 por cento são. Entre estas pessoas há engenheiros e advogados, artistas e cientistas, grandes financeiros e empregados ou pequenos empresários, professores e estudantes. Vamos conhecer muitos deles, tais como, por exemplo um matemático, um cineasta e alguns reformados desejosos de partilhar os seus talentos subaproveitados. Chamo‑lhes superprevisores, porque é isso mesmo que eles são. Há dados concretos, fiáveis, que o provam. Neste livro, o meu objectivo é explicar porque razão estes superprevisores são tão bons e como as outras pessoas podem aprender a fazer o que eles fazem.

Até que ponto os nossos modestos superprevisores se podem comparar com celebridades como Tom Friedman? Esta pergunta é fascinante, mas não pode ser respondida, visto a precisão dos prognósticos de Friedman nunca ter sido testada com rigor. Obviamente, tanto os admiradores como os críticos de Friedman têm as suas opiniões, positivas ou negativas — «Friedman acertou na Primavera Árabe em cheio», ou «Friedman errou clamorosamente em relação à invasão do Iraque em 2003», ou «Conseguiu prever o que ia acontecer relativamente à expansão da NATO». Mas não existem dados precisos relativos ao desempenho de Tom Friedman, apenas um conjunto infindável de opiniões — e opiniões sobre opiniões. É assim que a coisa funciona. Todos os dias os meios de comunicação social divulgam previsões sem informarem, ou sem sequer se perguntarem, até que ponto as pessoas que as fizeram são realmente boas. Todos os dias as empresas e os governos pagam por previsões que podem ser exactas ou inúteis, ou nem uma coisa nem outra. E todos os dias todos nós — líderes políticos, altos executivos, investidores, eleitores — tomamos decisões importantes com base em previsões cuja qualidade é desconhecida. Os dirigentes de equipas de basebol nem sonhariam em puxar do talão de cheques para contratar um jogador sem consultar as suas estatísticas de desempenho. Até os fãs querem ver as estatísticas dos jogadores nos placards e ecrãs televisivos. Contudo, quando quem está em causa são os previsores que nos ajudam a tomar decisões sobre assuntos muito mais importantes que um jogo de basebol, contentamo‑nos com permanecer ignorantes.

Desta perspectiva, confiar nas previsões de Bill Flack parece bastante razoável. De facto, confiar nas previsões de muitos dos leitores deste livro pode ser bastante razoável, visto que fazer bons prognósticos não é um talento inato, que se tem ou não tem. É uma capacidade que pode ser desenvolvida. Este livro pretende mostrar como.

A ANEDOTA DO CHIMPANZÉ

Quero ser um desmancha‑prazeres, por isso vou já contar o fim da anedota: o especialista médio é aproximadamente tão preciso como um chimpanzé a atirar dardos.

Provavelmente já ouviu esta história. É famosa — embora nalguns círculos seja detestada. Apareceu no New York Times, no Wall Street Journal, no Financial Times, na The Economist e em muitos outros jornais e revistas em todo o mundo. A história é esta: um investigador pediu a um grande grupo de especialistas — académicos, analistas e outros — que fizessem milhares de prognósticos sobre a economia, o mercado de acções, as eleições, as guerras e outros assuntos importantes. O tempo passou, e quando o investigador verificou a precisão desses prognósticos descobriu que o especialista médio era aproximadamente tão bom como alguém a fazer palpites aleatórios. O desfecho da anedota não é este porque a expressão «palpites aleatórios» não tem graça nenhuma; é muito melhor falar de um chimpanzé que atira dardos porque os chimpanzés são engraçados.

Aquele investigador sou eu e durante algum tempo não me importei com a anedota. Este estudo era a avaliação mais abrangente de pareceres especializados em toda a literatura científica. Um trabalho longo e árduo, que demorou cerca de vinte anos (de 1984 a 2004), e cujos resultados foram muito mais ricos e construtivos do que a anedota sugere. Mas não me incomodei com a anedota porque serviu para dar visibilidade ao meu trabalho de investigação (sim, os cientistas também saboreiam os seus quinze minutos de fama). Eu próprio tinha usado a velha metáfora do «chimpanzé a atirar dardos», pelo que não me podia queixar.

Também não me incomodei porque a anedota tem subjacente uma conclusão importante. Quando abrimos um jornal ou vemos as notícias na televisão, encontramos sempre especialistas que prevêem acontecimentos futuros. Alguns são cautelosos. A maioria, porém, é ousada e confiante. Alguns afirmam‑se visionários dotados, capazes de ver o que vai acontecer nas décadas futuras. Com poucas excepções, não estão à frente das câmaras porque possuem uma capacidade de previsão comprovada. A precisão raramente é mencionada. As previsões antigas são como as notícias velhas — depressa são esquecidas —, e quase nunca se pede aos especialistas que tentem ligar o que disseram com o que de facto aconteceu. O único talento inegável destas pessoas é a capacidade de contar uma história empolgante com convicção, o que costuma ser suficiente. Muitas enriqueceram a vender previsões de valor não comprovado a  empresários, agentes do governo e pessoas comuns que nunca pensariam sequer em engolir um comprimido de eficácia e segurança duvidosas, mas muitas vezes pagam por previsões tão dignas de confiança como a banha da cobra vendida na parte traseira de uma carroça. Estas pessoas — e os seus clientes — merecem ser provocadas. Fiquei contente quando vi que a minha investigação estava a ser usada com esse objectivo.

No entanto, percebi que, à medida que o meu trabalho se ia tornando conhecido, o seu significado ia mudando. O que a minha investigação tinha mostrado é que o especialista médio pouco mais fizera do que dar palpites sobre muitas das perguntas políticas e económicas que eu tinha proposto. «Muitas» não é o mesmo que todas. Era mais fácil ter um bom desempenho em questões de curto prazo, questões que exigiam pensar apenas no que podia acontecer no ano seguinte, e a precisão diminuía com a distância temporal do prognóstico — aproximando‑se a precisão do nível do chimpanzé a atirar dardos quando o prognóstico dizia respeito a eventos que pudessem ocorrer nos três a cinco anos seguintes. Trata‑se de uma descoberta importante. Diz‑nos alguma coisa sobre os limites da opinião especializada num mundo complexo — e sobre os limites daquilo que mesmo os superprevisores podem alcançar. No entanto, tal como na brincadeira infantil do telefone estragado, em que uma frase é sussurrada ao ouvido de uma criança, que a transmite a outra criança, e assim por diante, e todos ficam chocados ao descobrir como a frase mudou ao longo da cadeia de transmissão, a mensagem real foi adulterada ao ser retransmitida, e as subtilezas perderam‑se completamente. A mensagem passou a ser «todos os especialistas que fazem prognósticos são inúteis», o que é um disparate. Algumas variantes são ainda mais toscas — por exemplo, «os especialistas sabem tanto como os chimpanzés». A minha investigação tornara‑se uma referência para niilistas que consideram o futuro imprevisível por natureza e para populistas ignorantes que insistem em usar o termo «alegado» antes da palavra «especialista».

Enfim, cansei‑me da anedota. A minha investigação não oferecia uma base empírica a estas conclusões extremas, e eu não sentia qualquer afinidade com elas. Hoje isto é ainda mais verdadeiro.

É perfeitamente possível encontrar pontos de vista razoáveis entre os detractores e os defensores dos especialistas e das suas previsões. Por um lado, os detractores têm alguma razão. No mercado das previsões, existem vendilhões suspeitos que oferecem prognósticos questionáveis. Além disso, a capacidade de previsão está sujeita a limites que talvez sejam intransponíveis. O nosso desejo de conhecer o futuro excederá sempre a nossa capacidade de o fazer. No entanto, os detractores exageram ao rejeitar todas as previsões, considerando‑as actividades sem sentido. Estou convencido de que é possível prever o futuro, pelo menos nalgumas situações e até certo ponto, e que qualquer pessoa inteligente, de mente aberta e disponível para trabalhar arduamente pode desenvolver as capacidades necessárias para o fazer.

Podem chamar‑me «céptico optimista»."

Philip Tetlock e Dan Gardner

1 comentário:

Carlos Ricardo Soares disse...

A previsão do futuro não está ao alcance, nem de uma intuição prodigiosa, já que todas as ciências conjugadas, por sua vez, não a conseguirão. Refiro-me, obviamente, ao futuro de tudo e não ao próximo futuro deste grão de arroz (que há um minuto ainda parecia ser o que é agora, ou agora parece ser o que era há um minuto). O futuro é feito de imensos futuros e é, em medida considerável, acidental. O futuro talvez não dependa do acaso, mas depende de muitas coisas que não conhecemos, sejam condições naturais em constante rearrumação, sejam condições sociais em constante reorganização. Em ambas predomina a possibilidade de rutura abrupta do curso dos factos e dos acontecimentos que nos habituamos a considerar normais. As hecatombes e as guerras esfacelam as cidades e interrompem, ou pelo menos suspendem, as lógicas sócio-económicas dominantes.
Se o futuro de cada um é uma incógnita, o futuro da humanidade não o é menos.
Pensar sobre o tema é, como reconheço, um desafio interessante. Limitei-me a pegar no problema. Mas é possível alinhar e sistematizar um grande número de variáveis, hierarquizando-as e, com graus diversos de probabilidade, esperar que algum futuro ocorra e aconteça.
Por exemplo, há cinco minutos, quando iniciei este comentário, previ (esperei) que iria escrever, mas não previ (esperei) o que iria escrever.

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