quinta-feira, 10 de julho de 2014

UM DIÁLOGO SOBRE A ALMA



Onde, num sonho, o narrador conversa, no Liceu de Évora,
com a aparição de um antigo professor de Filosofia, 
há muito saído do mundo dos vivos.

Naquele ano de 1948, depois de a menina Júlia ter tocado a sineta para o começo das aulas, no segundo tempo de uma manhã soalheira de começos de Outubro, ainda com muitos dos alunos a entrarem nas respectivas salas, vi ao fundo dos claustros, caminhando na nossa direcção, em largas e descontroladas passadas, uma figura algo estranha. Um tanto inclinado para a frente, olhando o chão, longe do mundo alegre, despreocupado e barulhento de rapazes e raparigas, aproximava-se de nós um homem de meia idade, grande, com uma melena escura, nascida de um dos lados da cabeça, a tentar tapar a parte calva. Era o nosso professor de Filosofia, António Hortêncio da Piedade Morais.

Saído do Liceu Alves Martins, de Viseu, viera para Évora, com colocação no Liceu Nacional André de Gouveia. Personagem introvertida, o Dr. Piedade Morais, assim era referido entre nós, seus alunos, entrava sempre de rompante na sala de aula e, sem olhar para a turma, proferia a sua lição, numa linguagem clara e acessível, visivelmente interessado nos temas em desenvolvimento. Terminado o tempo, assinalado por mais um toque da sineta, saía, como entrara, a caminho da sala dos professores, apressadamente, alheio ao bulício dos alunos, também eles a saírem das aulas, cheios de energia, a descomprimirem de cinquenta minutos de compostura.

Os diversos livros e cadernos que publicou, em apoio das suas aulas, permitiam-nos ouvi-lo sem, praticamente, ter de tirar apontamentos. E isso era bom. Aos poucos alunos que, vencendo a aparente inacessibilidade deste professor, se aproximaram dele, revelou-se um homem interessante, amável e de muito saber.

Passados mais de 60 anos, este meu velho professor apareceu-me num sonho. Era a mesma figura, fisicamente desajeitada, vestida numa roupa mal cuidada. Sentámo-nos na escadaria de mármore, frente à nobre Sala dos Actos do que fora o nosso Liceu, hoje a Universidade de Évora. Os claustros, vazios de gente e silenciosos, convidavam a um exercício de memória. Falámos dos colegas dele, meus professores, lembrando as qualidades de uns e a falta delas de outros. Falámos dos meus colegas, seus alunos, que, ao contrário de que eu supunha, ele conhecia perfeitamente. E, como não podia deixar de ser, falámos de filosofia.
Claustro do antigo Liceu Nacional André de Gouveia, hoje da Universidade de Évora
- Ainda te lembras dos pré-socráticos? – Deu ele início à nossa conversa.

- A minha vida profissional – respondi, ainda surpreso pelo inesperado aparecimento - arrastou-me quase obsessivamente para o domínio das ciências exactas e naturais. Mas não esqueci o papel da filosofia e, em particular, da que surgiu na Grécia antiga e deu nascimento a estas mesmas ciências. Lembro-me perfeitamente dos filósofos, Leucipo de Mileto e de Demócrito de Abdera, do século V, antes de Cristo, para os quais tudo o que existia era feito de átomos e vazio.

- Para esses atomistas e precursores do materialismo, o átomo, como o nome indica, era algo indivisível. Uma ideia que se manteve até ao século XX.

- Interrompeu o velho professor. - Eu sei. - Anui. - Os trabalhos do neozelandês Ernest Rutherford e do dinamarquês Niels Bohr, mostraram que assim não era. Quanto ao vazio, - continuei - trata-se de um conceito que posso imaginar como sendo o que em física se entende por vácuo absoluto.

- Como deves ter deduzido das minhas aulas, também sou um materialista como esses dois atomistas que citaste e ainda, como Epicuro de Samos, um outro grego do século seguinte, e como Lucrécio Caro, o poeta romano que viveu cerca de três centúrias mais tarde. Sou um materialista, diga-se, no sentido filosófico da palavra, não no vulgar e pejorativo de pessoa só interessada nos bens materiais. Sou de opinião de que tudo o que existe é matéria e que todos os fenómenos que observamos são o resultado de interacções materiais. O pensamento, ou seja, a actividade intelectual, psíquica ou espiritual, como alguns preferem dizer, cria as ideias, mas temos de concordar que essa actividade é processada por células do cérebro, que sabemos serem entidades materiais.

- Feitas de átomos como oxigénio, carbono, hidrogénio, azoto, fósforo e outros. – Acrescentei. - Isso já eu não sabia. – Disse ele, com um sorriso de quem pede desculpa por desconhecer este pormenor.

- Não sendo matéria, - ocorreu-me dizer, em consonância com o pensamento do meu interlocutor - as ideias são fruto de um estado muito avançado desta realidade física e biológica, que é o cérebro.

- As ideias – continuou ele - são parte do intelecto ou do espírito de quem as concebeu enquanto criatura viva e, portanto, radicam em algo bem material. Morto o cérebro são muitas as ideias que sobrevivem através das suas criações, por tempo menos ou mais dilatado. Leucipo e Demócrito, para citar apenas dois, morreram há mais de dois milénios, mas as suas ideias continuam bem vivas. As criações materiais, que podemos tocar ou ver, uma escultura ou uma pintura, por exemplo, encerram ideias que não morrem, a não ser que algo as destrua. Mas as criações imateriais morrem se não tiverem quem as mantenha vivas e as transmita.

- O pensamento filosófico ou o matemático só existem se forem registados num qualquer suporte material ou se alguém, como criatura viva, os recordar. – Acrescentei, no propósito de prolongar a nossa conversa.

- A música – continuou o meu interlocutor - existe mas só nos damos conta dela se for escrita, tocada, gravada ou cantada. Praticamente, perdeu-se toda a música que se cantou ou tocou na Antiguidade e na Idade Média anteriormente à introdução das pautas ou pentagramas e respectivas notações dos sons, no século XI.

- Mas sabemos que se fez música porque alguns dos instrumentos usados chegaram até nó. Estou a lembrar-me da lira e da cítara.

- Exacto. Anteriormente a esse patamar dispomos de registos musicais num tipo de notação a que foi dado o nome de neuma (do grego, pneuma, sopro), usado, a partir do século VII, no cantochão gregoriano, mas cuja reprodução é bastante duvidosa.

- Este género de musica vocal de uma só melodia, ainda em uso na liturgia católica, terá sido, em parte, herdado dos salmos cantados nas sinagogas e adaptados de modo a serem executados nas celebrações da Igreja, ao tempo de Gregório Magno, ou seja, do Papa Gregório I.

- Assim foi, de facto. Mas voltemos ao nosso assunto. - Retomou o professor o tema central da nossa conversa. – Com a poesia passa-se o mesmo. Se não for escrita ou registada perde-se. Têm sido muitos os poetas populares, que não sabendo escrever ou não tendo tido quem lhe escrevesse os versos que criaram, morrem, levando consigo toda a poética de que foram autores. Felizmente que, por terem sido escritas, chegaram até nós obras que classificamos de imorredouras e que dizemos serem as almas dos respectivos poetas. E é por isso que se fala da imortalidade de Píndaro, de Virgílio, de Camões, de Pessoa…

- E O’neill, Natália, Sofia e de Ary. – Apeteceu-me acrescentar.

Numa pausa do meu interlocutor, ousei entrar neste tema dizendo banalidades como:

- Fala-se da alma do poeta esteja ele, ou não, no mundo dos vivos. Há quem chame alma à actividade intelectual do ser humano. Para mim, a alma dos que partiram é a memória que deles nos ficou. Qual é, pois, a vossa ideia sobre a alma? Gostava de vos ouvir sobre esta entidade que a minha formação, demasiado materialista, tende a negar.

- Como certamente sabes, a Bíblia ensina que a alma, entendida como espírito, é uma emanação exclusiva do Homem a quem Deus deu vida no sexto dia da Criação, o que, segundo o texto sagrado, aconteceu há cerca de seis mil anos. Para os crentes, a alma nasce com o ser humano, cresce e evolui com ele, liberta-se dele no momento da morte do respectivo corpo e permanece para além dele.

- Nessa concepção, - anui - a morte física de alguém tem lugar no momento em que a alma abandona o corpo e parte para uma outra forma de existência, entendida como unicamente espiritual, imortal e, portanto, eterna!?

- Exacto. O termo radica no latim anima e significa “o que anima” e dele derivam palavras do nosso dia-a-dia, como animal, animado, animação, ânimo e animismo, a teoria que considera a alma, simultaneamente, princípio de vida psíquica e física ou orgânica.

- Nesta óptica, abandonado pela alma, o corpo fica sem animação e, portanto, morto. – Concluí.

- O conceito de alma é muito antigo. – Continuou o professor. - No âmbito da grande maioria das religiões cristãs e não cristãs, a alma é uma entidade imaterial que continua a existir após a morte do corpo, destinada a fruir, para sempre, a graça celestial ou condenada ao eterno tormento.

- Poderemos, então, admitir – perguntei – que, uma vez libertas do corpo e dos interesses e compromissos inerentes à vida terrena, as almas se tornam as melhores críticas dos actos dos homens ou das mulheres que foram?

- Na linha da tradição religiosa pagã da antiga Grécia, Platão ensinava que as almas, na sua imortalidade, caminhavam para a perfeição, libertando-se dos medos e de outros defeitos humanos, entre os quais, a inevitável condição de errar.

- Ganhando sabedoria, portanto. – Concluí.

- E essa sabedoria, - retomou o meu interlocutor, - era interpretada por Platão como a capacidade de conviver com os deuses por todo o sempre. Mas deixa-me dizer que, para Lucrécio, a alma morria com o corpo de que foi complemento. Ele defendia que, após a morte, dela restava o que ele designou por simulacrum, a entidade a que o povo chama fantasma e que muitos acreditam deambular entre os vivos. Nesta sua visão o poeta romano revela ter bebido na sabedoria grega. É por demais evidente que foi buscar a ideia epicurista de eidolon, termo grego que refere o mesmo tipo de entidade.

- Para os espíritas, na palavra de Allan Kardec [1], o ser humano é um espírito preso temporariamente num corpo material. E esse espírito é a alma? – Perguntei.

- No meu entender – respondeu – os dois conceitos confundem-se. O espiritismo é uma doutrina centrada na natureza, origem e destino dos espíritos ou, se quiseres, das almas, nas suas relações com o mundo corporal e nas consequências morais que delas emanam.

- Voltando à almas, - acrescentei, procurando manter a nossa conversa, - a Igreja ensina que há tantas almas, quantas a pessoas nascidas na Terra. Há, portanto, as almas das pessoas que estão vivas e as de todas as que já morreram, digamos que desde Adão e Eva. Aceitando esta versão bíblica, o número de almas é imenso e não pára de crescer. Assim sendo, apetece-me perguntar: onde é que cabem tantas almas?

- A resposta é muito simples. O conceito de alma implica o seu carácter imaterial. Assim, as almas não têm dimensão física, nem de volume nem de massa, não têm peso nem cor e não ocupam espaço. São como o pensamento. Para elas não há gravidade nem distâncias, nem fronteiras, não há alto nem baixo, nem dia nem noite, nem quente nem frio. São ubiquistas, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer momento, aqui e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a milhares de milhões de anos-luz.

- Já agora, uma outra questão. – Continuei. - Sendo a alma exclusiva do Homem e se tivermos em atenção a evolução do ser humano como espécie, desde o mais antigo primata, até ao Homo sapiens actual, passando pelos australopitecos e pelos outros hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me ocorre fazer é «a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos antepassados começaram a surgir acompanhados das respectivas almas?» Foi no Neanderthal, aparecido há umas centenas de milhares de anos, ou foi só no Cro-Magnon, que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?

- Para mim, como já deves ter entendido, a alma é o psiquismo decorrente da vida biológica. Ora nós sabemos, sem sombra de dúvida, que os nossos antepassados exerceram actividade psíquica e, neste sentido, torna-se evidente que tiveram alma tal como eu a entendo. E mais ainda, muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente investigadas em institutos de psicologia animal, pelo que podemos dizer que também têm alma, repito, no sentido que dou à palavra. Quem põe em causa a inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos?

Nesta fase da nossa conversa, pareceu-me, por fim, oportuno perguntar:

- O que pensa o professor do Céu e do Inferno?

- Desde a Antiguidade, - começou por dizer, - o vulcanismo preocupou, sobretudo, as populações do sul da Europa, por ser aí, no Mediterrâneo, que se podia observar a respectiva actividade. Lembremos, por exemplo, a catástrofe de Santorini e as erupções do Estromboli, do Etna ou do Vesúvio. Na Idade Média prevaleceram as ideias e os temores que marcaram aquele tempo antigo, acrescidas de crenças religiosas que viam nas lavas incandescentes uma manifestação do fogo do Inferno. Nessa convicção, os domínios de Satanás situavam-se sob os seus pés, lá bem fundo, numa imensa e eterna fornalha. O essencial desta ideia continuou a ter expressão no cristianismo e foi usada durante séculos como ameaça de castigo dirigida aos pecadores. Relativamente ao Céu, estou em crer que os seguidores da palavra de Cristo precisavam de um “modelo matemático” para justificar os seus dogmas bíblicos e, assim, o pensamento de Ptolomeu relativo ao geocentrismo foi particularmente bem aceite pela Igreja católica. Em oposição ao Inferno, o Céu pairava nas alturas, para lá das últimas esferas ptolomaicas, no imenso, luminoso, feliz e também eterno reino de Deus, destino das almas merecedoras de uma tal ventura. E agora, digo-te adeus. Foi bom falar contigo.

Tal como há décadas, vi-o afastar-se em largas e descontroladas passadas, inclinado para a frente, olhando o chão, alheio a tudo à sua volta.

[1] Pseudónimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), pedagogo francês.

A. Galopim de Carvalho

2 comentários:

Rui Baptista disse...

Prezado Professor Galopim de Carvalho:"Se bem me lembro" (Vitorino Neméio). e não estou em erro, sendo eu na altura alferes miliciano, recordo-me de o ter visto fardado de aspirante miliciano nas manobras militares de Santa Margarida ( no ano de 1953?). Mais me lembro de, na altura, alguém me ter dito ser irmão do conhecidíssimo e apreciado cançonetista Francisco José.

Se fosse hoje, certamente, dado o seu estatuto académico e poder de comunicação escrita em prosa de grande valor, dir-me-iam ser Francisco José seu falecido irmão.

Esta uma ocasião que aproveito, também, para lhe dar a conhecer o agrado e proveito que sempre colho nos seus posts publicados no "De Rerum Natura, quer de natureza científica ou literária.

Respeitosos cumprimentos,.

Carlos Ricardo Soares disse...

Não vou meter-me em discussões filosóficas ou teológicas, mas ficou-me uma dúvida sobre o "indivisível" e o átomo. Afinal Mileto e Demócrito não têm culpa de outros, muito mais tarde, chamarem átomo àquilo que não era "indivisível". Até parece que eles é que estavam errados. Se existe algo de indivisível, esse algo dever-se-ia designar átomo. Mas, já agora, existe algo de indivisível? E tudo o que existe é constituído por esse algo? E sempre assim foi, no infinito e na eternidade? Tudo o que existe é energia? Massa? Matéria? Ou, por outra, o infinito e a eternidade são matéria? Ou seja, o tal indivisível, que, sendo assim, é infinito, ubíquo e eterno?

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