terça-feira, 15 de julho de 2014

“COMER EM ÉVORA”


Prefaciar “COMER EM ÉVORA”, da autoria de Jerónimo Heitor Coelho, a um nível literário condizente com a superior qualidade da obra, foi uma tarefa de imensa dificuldade colocada a este curioso das letras e da gastronomia, que sou eu, profissional de outros saberes, onde as rochas, sendo pedras, ganham vida e fazem história. Mas o autor assim quis e eis o que me ocorreu escrever.

Começando por analisar o título deste livro, interessa lembrar que comer, radicado no verbo latino edere, antecedido do elemento cum, significa ingerir alimentos em companhia. Numa caminhada de milénios, tão longa quanto a da humanidade, entre a procura e a descoberta de sabores, os nossos antepassados foram transformando e transmitindo de gerações em gerações o simples acto animal de comer, num outro, marcado pelo prazer dos sentidos associado ao da convivência. “COMER EM ÉVORA” é a última expressão desta caminhada e traz para o elevado plano que lhes é devido 32 restaurantes e espaços de promoção e venda de produtos regionais estabelecidos na cidade.

De distinta craveira na arte e na tecnologia fotográficas, o autor concebeu uma obra focada na gastronomia local, de invulgar excelência no discurso e, em especial, nas imagens, que se adivinha ser uma das de maior impacto na valorização deste nosso património cultural que orgulhosamente conservamos, a par do histórico, arquitectónico e artesanal e do único e inconfundível cante alentejano.

Influenciada pela dieta de celtas, guerreiros e nómadas, tidos por grandes consumidores de carne, que caçavam, a que se juntou os hábitos alimentares dos fenícios, vivendo mais dos cereais, do azeite, do vinho, dos legumes e das frutas, recursos compatíveis com um certo sedentarismo, a gastronomia alentejana somou, ainda, os sabores e os saberes introduzidos pelas ocupações romana, visigótica e, sobretudo, árabe e moura. Em séculos de dificuldades inerentes à terra, ao clima e também à condição social da grande maioria do povo, os bons sabores desta gastronomia resultam, afinal, de uma procura de prazer numa região de fracos recursos onde, como escreveu o meu mestre Orlando Ribeiro, em 1987, «comer era, acima de tudo, encher a barriga e iludir a sensação de fome».

Hoje, nos tempos de crise que se instalaram, a cozinha alentejana reencontra expressão ao lembrar que, com simples produtos da terra, bravios ou cultivados, é possível confeccionar saudáveis e apetitosos “comeres”. Com tais recursos, os alentejanos criaram e desenvolveram uma cozinha única, nutritiva, saborosa e agradavelmente perfumada.

Em 1982, a minha amiga Maria de Lourdes Modesto, empenhada na revitalização da gastronomia tradicional portuguesa, alertava contra a «insidiosa invasão de uma certa cozinha internacional, impessoal, soturna e monótona», que então alastrava por muitos restaurantes e ameaçava «entrar-nos pela casa dentro». Este foi um dos avisos que deram fruto. Outro foi o do o saudoso Luís de Sttau Monteiro, ao denunciar «chefes, gerentes e técnicos, culturalmente incompetentes, mas de competência técnica comprovada por escolas mais dadas ao marketing do que à conservação de valores culturais, estão a destruir, diariamente, as cozinhas dos países que tomam o turismo por uma fonte inesgotável de rendimento».

Felizmente, esta situação tem vindo e continua a inverter-se por todo o país, onde os restaurantes e similares servindo comida regional se multiplicam, onde surgem por todo o lado as lojas gourmet e de vinhos e onde os livros de cozinha tradicional têm clientela assegurada.

Sendo a gastronomia «um discurso sobre o prazer da mesa», como afirmou Alfredo Saramago, “COMER EM ÉVORA” é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o prazer da mesa e dos olhos, tal a fidelidade e qualidade das imagens que ilustram esta obra de referência da gastronomia alentejana.

Nascido e criado no Alentejo, a minha preferência pelas confecções que aqui se criaram e evoluíram é cultural, está ligada às origens, o que não impede que reconheça Portugal, de norte a sul, como o país com a cozinha tradicional mais saborosa de todas as que conheci, opinião muito pessoal de quem já se sentou à mesa em muitas latitudes e longitudes.

Pela beleza e pelo rigor que encerra, “COMER EM ÉVORA” faz jus ao invulgar valor cultural da gastronomia alentejana e à arte e profissionalismo do seu autor.

Lisboa, 10 de Maio de 2014
A. M. Galopim de Carvalho

1 comentário:

Albert Virella disse...

É sempre um prazer ler o que nos deixa escrito o Professor Galopim de Carvalho. Com ele sempre se aprende muito. E agora, estando na maré dos deserdados da fortuna, ou humilhados e ofendidos, o seu artigo foi um regalo para a vista e o espírito,

Obrigado

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