Texto de Maria Prata, professora na Alemanha, a propósito de um assunto a que se tem dado atenção no De Rerum Natura: a falta de sensibilidade do nosso Sistema Educativo e da instituição Escola ao direito que os menores têm à intimidade e privacidade.
Vivo na Alemanha e tenho uma filha adolescente que não escapa ao chamamento irrequieto e absorvente com o qual as redes sociais vão agrupando adultos, jovens e adolescentes; os quais sem hesitar e com deleite, repetida frequência e entusiasmo dão conta de si, em pormenor, ao resto da comunidade, supostamente, restrita de amigos. Entusiasmo que os induz, quantas vezes, seguindo arrebatamentos comunicativos a extrapolar as fronteiras do racionalmente aconselhável e a partilhar vivências, sentimentos e imagens da sua vida íntima e familiar.
Expondo-se, oferecem-se generosamente àqueles que no presente podem e, no futuro, poderão consultar a net – ou seja quase toda a humanidade, atualmente cerca de 7 bilhões de desconhecidos. Se muitos dos navegadores na net o fazem por meros e louváveis objetivos de aceder à informação crescente em áreas do saber cultural e científico, sem manifesto interesse pelas vidas privadas de terceiros, surjam elas da forma que surgirem, não deixa de ser menos verdade que muita outra gente pululando pelas redes sociais, deliberada e intencionalmente, por voyeurismo, procura imagens e relatos sobre a vida privada de outros.
É fácil atingir tais intuitos. Sobretudo à custa dos que levados pelo ludismo das novas tecnologias, pela sensação de liberdade sugerida pela ligeireza e imediatez entre o querer e o acontecer, pela instantaneidade da informação, não se conteve e postou uma frase ou uma fotografia numa brincadeira entre amigos, num gesto divertido entre colegas ou como um sinal de amor entre apaixonados. Também há quem, fingindo compreensão e solidariedade, na sombra perversa e anónima do mundo virtual, aproveita momentos de tristeza, abandono e solidão daqueles que por desorientação, menor estabilidade emocional e, porventura, de desespero se entregam confiadamente a amigos súbitos.
Tendo eu uma filha adolescente, como já referi, e, sendo conhecida a agilidade de espírito, o gosto e o prazer em descobrir, usar e inovar que as gerações mais jovens desenvolvem face às possibilidades, sempre renovadas e quase infindáveis da cibernética, sigo com um interesse seletivo as informações atuais sobre estes assuntos. Reparo pois que as respetivas entidades alemãs, os serviços de proteção e de aconselhamento a menores assim como muitos professores na sala de aula, com material diverso e em conversas apropriadas, divulgam os riscos e e tentam manter vigilante o conhecimento da perigosidade que um comportamento na net, orientado para a auto exposição e isento de defesa e salvaguarda da privacidade, pode vir a ter.
Destinado a presentes e a futuros interessados, há jornais alemães de grande tiragem e impacto político que publicam artigos de peritos em áreas laborais, divulgam e discutem estudos efetuados por renomeados grupos de investigação sobre o lidar com a net e os seus efeitos sobre a vida profissional, perspetivando diferenciadamente consequências imediatas e/ou tardias que a exposição da esfera íntima em meios virtuais poderá projetar na vida profissional.
Estudos realizados, por exemplo, junto de empregadores da economia privada sobre os critérios de seleção de futuros colaboradores, revelaram que as secções de recrutamento de pessoal não menosprezam informações difundidas no Facebook, que os institutos de crédito costumam navegar pela net antes de decidir a quem conceder empréstimos, e que certas companhias de seguros conhecem aspetos da ficha clínica do segurado. Até proprietários de apartamentos para alugar se informam previamente na net sobre particularidades do futuro inquilino.
É bom avivar nos jovens que estudos e relatos fidedignos revelam em conjunto que a causa de tanta transparência reside frequentemente no gesto fácil do utilizador das redes sociais da net ao publicar de imediato o que lhe vai na alma e o que acabou de vivenciar. As consequências para a vida pessoal e profissional do autor são em parte previsíveis; porém, é provável que pertençam grandemente ao domínio do imprevisível. Quem, em 2000, falava do Facebook?
Há dias, contava-me uma professora estagiária alemã como incluíra na sua aula sobre alimentação saudável exercícios de adição e subtração. Querendo eu conhecer mais pormenores, adiantei que ela teria certamente motivado os alunos a contar sobre os hábitos alimentares da respetiva família, enfim que ela teria contextualizado os novos conteúdos no conhecimento das crianças sobre o seu meio mais imediato, como já entendi que é método didático na escola portuguesa. Respondeu-me subentendo que a minha pergunta revelava uma grosseira ausência de sensibilidade “E as crianças de famílias com menos recursos? O que dizem? Não, isso não são assuntos para se falar em sala de aula.”
Explicou-me como procedera: tinha usado cubos de açúcar para demonstrar as quantidades de açúcar ingeridas ao tomar um copo de água, um copo de sumo natural de laranja, de refrigerante, etc. As crianças tinham comparado e a seguir puderam experimentar quantos cubos teriam de adicionar se ingerissem dois copos do mesmo líquido, etc. Depois, compararam ainda a quantidade de açúcar contida numa maçã, numa cenoura, etc. Uma alimentação mais alemã, justamente.
Também por todos estes motivos, foi com espanto e muita indignação que casualmente deparei com informações verídicas e actuais que as escolas portuguesas, pela mão e autoria do seu pessoal educativo, publicam na net. À distância de um clique, ia eu tomando posse de fotografias, de dados familiares, pessoais e intransmissíveis de crianças portuguesas entregues, pela força da lei, à instituição escolar que deveria educá-las, formá-las e obviamente protegê-las.
Pessoas de comprovada autoridade científica em educação, elucidaram-me, não menos indignadas, que se tratavam de “evidências” daquilo que o professor faz, ao que parece, importantes para efeitos de avaliação do desempenho docente. E, assim, percebi porque é que a devassa da vida privada das crianças portuguesas na net aumentou nos últimos tempos.
O Ministério da Educação de um país que continua na cauda da Europa no que concerne as competências de leitura e de compreensão matemática da sua população estudantil (e não só) em vez de incentivar os professores a usar métodos de ensino cientificamente eficazes na realização das suas tarefas prioritárias em salas de aula, ou seja ensinar as crianças a ler, escrever, contar e a desenvolver o seu raciocíonio lógico e cognitivo, absorve-lhes intencional e premeditamente o tempo, as energias e a criatividade para produzirem relatos e planos tristemente “enfeitados” com as fotografias de meninas e meninos e para os publicar na net?
Se os princípios da ética e da moral são insuficientes para salvaguardar a vida privada destas crianças, por que não pelo menos ler e respeitar a lei, por exemplo o Artigo 35˚ da Constituição da República Portuguesa? A história alemã do século XX mostrou tragicamente como é vital resguardar-se: há assuntos que podemos falar em público, e há outros, sobretudo os assuntos pessoais, que não dizem respeito a mais ninguém fora das quatro paredes familiares.
À escola compete manter esse conhecimento presente e transmiti-lo às gerações vindouras. É tarefa da escola agregar em redor do saber cientificamente reconhecido como válido a diversidade de conhecimentos e fazê-los progredir; é essencial que a escola na sua prática diária forme crianças críticas, com capacidade de pensar e de decidir autonomamente, e de se interessar pela vastidão do mundo; é precise que a escola abra caminhos para chegar ao conhecimento e não limite as crianças a se ocuparem com as vidas alheias.
Pergunto-me o que contribuirá mais para desenvolver a economia de um país? Por exemplo, saber que ingerindo determinados sumos ingiro também quantidades calculáveis de açúcar e posso assim controlar melhor a possibilidade de cariar os meus dentes ou ficar a conhecer os hábitos alimentares de toda a minha turma?
Tendo iniciado, referindo-me à minha filha, termino com a sua opinião. Ao relatar-lhe os conteúdos publicados pelas escolas na net, perguntou-me se Portugal não tinha leis de proteção a menores e se pretendia criar um ficheiro de dados para facilitar a ação criminosa das redes pedófilas internacionais. Garanto que a minha filha nem é mais nem menos esperta que muitas crianças portuguesas que aqui conheço - apenas tem acesso a um outro sistema de ensino.
Maria Prata
quinta-feira, 7 de abril de 2011
Direito à privacidade?
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7 comentários:
O que só vem provar a distância entre a civilização alemã e a civilização lusitana, distância que o tempo, entre a criação de cada uma até aos dias de hoje, parece ter aumentado... como uma dívida soberana.
Utilizo aqui o signo "civilização" no sentido em que o sociólogo Norbert Elias o desenvolve, como a progressão das técnicas, dos costumes, dos conhecimentos científicos e certa visão do mundo.
Neste sentido a ideia inicialmente representava o retrato do Ocidente, exteriorizado na superioridade das classes superiores sobre as ditas inferiores, extrapolando-se esta imagem para as nações ocidentais (superiores) relativamente às restantes, com o que pretenderam justificar e legitimar a colonização.
Portugal pagou o preço, e enquanto se não libertar desse peso, continuará a manter a "civilização" herdada.
Como sempre demos mais importância à forma que ao conteúdo, não há aqui rigorosamente nada de novo e nada de especialmente perigoso...
Para que no último comentário aparecem demasiadas gralhas. Fica a correcção:
Como sempre, damos mais importância à forma que ao conteúdo. Não há aqui rigorosamente nada de novo e nada de especialmente perigoso...
Na verdade acho que há muita ingerência na vida das famílias, em Portugal. Por vezes chego a devolver actas com pormenores da vidas das famílias que não fazem sentido. Julgo que, em boa parte, os colegas pensam que assim se protegem de tudo quanto lhes exigem. O que corre mal é sempre da culpa do professor!
Eu continuo a pedir por favor , aos alunos, para ver os cadernos. Custa-me imenso, acho que ,mesmo um caderno diário , é um objecto privado.
Os alunos não têm rigorosamente nenhuma privacidade e convivem bem com isso. Eu só vejo a lista de produtos que consomem no bar se perceber algo de muito anormal, mas ´
e uma prática habitual dar aos pais essa relação de consumo. Isto fora a videovigilância!
Não estamos a esducar para a cidadania, mas para a submissão. Na escola de hoje eu seria uma marginal.
Que texto bom. Deveras "respirável".
Expurgado de duas gralhazitas: uma no 11º parágrafo, 2ª linha ("de que se tratavam de “evidências” daquilo"...), em que o "m" de tratavam está a mais, e outra no 15º, em que saiu "é precise" em vez de "é preciso", valia a pena enviá-lo para o ministério da educação. Não que por lá reparassem necessariamente nas gralhas. Mas porque não podemos desesperar em absoluto de que alguém, algum dia, se dê ao trabalho de ler algo de interesse...
Neste relato, para além das generalizações abusivas, o que me incomoda são as afirmações sem lógica nenhuma. O que é que as "evidências" têm a ver com a avaliação dos professores? Só posso mostrar que sei planificar, fazendo e mostrando uma planificação, isto é uma evidência; mas, que saiba, isso nada tem a ver com divulgar aspectos privados das vidas dos alunos, ou seja, nada tem a ver com a falta de senso que podem ter alguns professores que usam informação sobre os alunos para evidências de práticas das suas avaliações).
Não me parece ser apanágio da escola alemã que, em lugar de usar como exemplo dos hábitos da família do aluno, se use um exemplo descontextualizado de uma situação concreta para que o aluno desenvolva a capacidade de analisar a partir de situações menos concretas, menos familiares. O que me parece é que na escola, porque é feita de pessoas, os hábitos sociais (como a partilha da vida privada ao telefone, nas redes sociais, etc.) a invadem e nem sempre acompanhada da devida reflexão crítica.
Para além disso, as sessões de reflexão sobre o uso seguro dos meios de comunicação on-line também não é apanágio da escola alemã e faz parte da educação para a literacia da informação desenvolvida por muitas bibliotecas escolares portuguesas.
Tenho lido neste blogue vários exemplos de práticas que são apresentadas como ingerência na vida privada dos alunos. Alguns aspectos, efectivamente, parecem-me um perfeito disparate, já para não dizer ilegais. Sabiam, por exemplo, que é obrigatório solicitar, no início de cada ano lectivo, autorização aos pais para que as escola possa divulgar fotografias dos alunos e cada pai tem de, individualmente, dar a autorização de cada filho? Noutros exemplos, parece-me que se considera ingerência na vida privada uma forma, eventualmente questionável,de manter uma ligação escola-família, talvez importante para alguns alunos. No entanto, o falar-se de um hábito de uma família não implica, necessariamente um trauma. Vemos com uma enorme frequência esse tipo de prática nos filmes e séries americanos. Que o queira em Portugal? Nem por isso, mas não retiro daí nenhuma nenhuma consequência dramática para o desenvolvimento das crianças. A ingerência na vida dos outros faz parte o modo gregário do seu humano. Mas, falar-se de um hábito familiar em contexto público não significa necessariamente ingerência. Tudo depende de como é feito e para quê.
Em todo o caso, o que mais me incomoda, é a inferência para o todo de práticas questionáveis.
7 bilhões, não, sete mil milhões. Se é para falarmos português, falamos correcto(correto??)
Paulo Vilaça
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