terça-feira, 30 de março de 2010

As belezas celestes


Acabei de dar uma entrevista à Rádio Renascença a propósito da experiência que está a decorrer no CERN e que de certo modo, ainda que muito limitado, recria condições do Big Bang. É no mínimo estranho que uma rádio de inspiração religiosa não tenha melhores perguntas para fazer do que "para que serve?", "mas é para quê?", "em termos [sic] práticos?", "qual é a utilidade?", "mas em concreto...", "o que é que vão descobrir e quando?"... Bem sei que a rádio não é a Igreja, mas uma preocupação tão grande pela materialidade fez-me recear que a Igreja portuguesa possa partilhar esse tipo de preocupações mundanas, numa perigosa (para ela) perda de espiritualidade.

Apeteceu-me dizer que o Large Hadron Collider no CERN servia para descobrir as "belezas celestes". E ler aos microfones o início do livro "Os Cometas", da autoria do Padre Amadeu de Vasconcelos, um grande divulgador científico do início do século passado, publicado há exactamente cem anos na Livraria Chardron de Lello e Irmão do Porto, o que só não fiz porque o tempo de antena era limitado.

Mas vai aqui o texto, com grafia actual ("belezas" em vez de "bellezas"):
"Conta o grande Arago que um dia o piedoso e imortal Euler, encontrando-se com um seu amigo, ministro de uma igreja de Berlim, deste ouvira lastimosos queixumes pela indiferença com que os seus ouvintes acolhiam as suas palavras de pregoeiro do Evangelho. Todo se lastimava o ministro porque não conseguira comover o seu auditório com a descrição das maravilhas da criação. "Acreditareis o que afirmo? - dizia o ministro; representei esta criação no que ela tem de mais maravilhoso: citei os antigos filósofos e a própria Bíblia; metade do auditório não me escutou; a outra metade adormeceu ou abandonou o templo.

A este ministro desconsolado deu Euler o conselho de substituir as descrições dos filósofos e da Bíblia pela descrição do mundo dos astrónomos, do mundo tal qual o revelaram os descobrimentos científicos.

Foi-se o ministro, resolvido a seguir o conselho do grande matemático. Tempos depois, Euler foi visitar o seu amigo que, novamente desanimado, lhe bradou: "Ah! sr. Euler, sou muito infeliz! Esqueceram o respeito devido ao recinto sagrado e aplaudiram-me!"

Na sua simplicidade, a anedota mostra toda a grande beleza da imagem do mundo como a ciência no-la revelou. Essa beleza é tão grande que se impõe mesmo aos homens desprovidos de qualquer cultura científica".

4 comentários:

Anónimo disse...

Quem não entende as belezas do céu... como há-de entender as da terra?!... E, de igual modo ou no mesmo espírito, para que serve a Poesia?... E o esplendor da Liturgia? E tantas outras coisas..que não são para comer? JCN

joão boaventura disse...

Desculpe, se me permite sugerir, optaria por um final diferente:

...E o esplendor da Liturgia ? E tantas outras coisas...que não são para esquecer ?

Porque, se apreciamos tudo pela beleza, há outras coisas também belas... que não são para esquecer.

Bem entendo que comer não é beleza, mas há cozinheiros que se esmeram na arte e na técnica com que apresentam a obra acabada, de tal forma, que nos leva a dizer "que os olhos também comem", uma forma metafórica para exteriorizar o apreço pela arte do cozinheiro.

Anónimo disse...

Razão terá de ser o seu reparo
quanto ao meu jeito de expressão, talvez,
mas olhhe, não me julgue descortês
se à poesia a gula não comparo!

Eu quis tão só dizer que tudo aquilo
que não possui proveito imediato
não tem menos valor, por esse facto,
mas à frente lhe passa pelo estilo.

Deixemos pois com suas iguarias
o pasteleiro de alto gabarito
e, sem quaisquer vislumbres de conflito,
prestemos nosso culto às fantasias!

JCN

joão boaventura disse...

Rendido estou ao seu jeito
À brilhante fantasia
Com que enfeita o pleito
Sem nenhuma ironia.

A toalha ao chão deito já
Não posso ser pertinaz
Minha rima é muito má
Perante aquela que faz.

O aprendiz assim fala
Porque culpa não lhe caber
Resta-me aprontar a mala
Ir à escola p'ra aprender

Por o Vieira opinar:

"A escola devia ensinar
Pro aluno não me achar um bobo
Sem saber que os nomes que eu louvo
São vates de muitas qualidades"
(António Vieira, "Poesia - Poetas Populares)

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