segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

O que vale um livro?

Texto de João Boavida, na sequência de outro aqui recentemente publicado: Aparição, há cinquenta anos.

Um livro pode ser muita coisa. Alguns, os melhores, são aqueles que, pela sua força, pela profundidade com que nos atravessam nos obrigaram a profundas reformulações, nos despertaram para evidências antes ignoradas e nos formam a personalidade. Em certos casos transformam as nossas vidas. Às vezes é uma questão de oportunidade, de ocasião. Felizes os que encontram o livro necessário na hora certa.

Vem isto a propósito da Aparição, de Vergílio Ferreira, de que antes falei. Muitos jovens foram obrigados a lê-lo nos liceus e terão bocejado ou dito mal do autor; outros terão tido sentimentos muito diferentes. Para mim foi uma obra fundamental. Apanhou-me com quinze ou dezasseis anos e foi um livro com o qual andei em luta mas que me deixou um rasto fundo para o resto da vida.

A melhor homenagem será talvez dar conta da emoção daquela leitura primitiva, e dos sentimentos ambíguos e contraditórios que me provocou. Por um lado, a incompreensão ainda de muitas passagens do texto, e do sentido profundo que me parecia escapar e simultaneamente julgava intuir com alguma clareza; por outro a força profunda que o texto transmitiu e que me tocou fundo. A intensidade das ideias e dos sentimentos, mais intuídos que explicados ou descritos, por um lado, e por outro a espessura das palavras, a bela densidade que elas conseguiam e que arrebatava. Tudo isto foi para mim uma experiência inigualável. Devo a este livro o impacto profundo da descoberta do eu, essa condição indispensável para toda a vida intelectual e moral. Pela primeira vez senti a força da pessoa que eu era, e ao mesmo tempo percebi a sedução e o perigo que isso poderia representar. E, portanto, como a aventura da vida de cada um era simultaneamente espantosa e angustiante, e como quase tudo estava nas nossas mãos.

Para um jovem a sair da adolescência, que contributo maior se pode esperar de um livro? A descoberta do eu até à evidência mais frontal e quase insuportável de nós face a nós mesmos; a força das ideias e a sua profunda e insuperável relação com a pessoa que há em nós, com o que somos e podemos vir a ser. E ainda a qualidade estética que transforma a obra literária na realidade pura; qual dos contributos foi mais importante?

Lembro-me das longas sugestões provocadas pela capa de Sebastião Rodrigues, naquela segunda edição da Portugália: uma estilização pesada do templo de Diana e um sol alentejano soberano e dominante. E a incredulidade perante a frase da contra-capa em que Gaspar Simões dizia: “eis-nos sem dúvida perante um dos melhores romances escritos em língua portuguesa depois de Eça de Queirós”. Como podia Gaspar Simões dizer tal coisa? E, todavia, e minha emoção face à força do texto ali estava para o confirmar. A verdade é que, se em termos estéticos era diferente do que lera até então, o principal do livro não estava aí, embora, como se sabe, não se possa separar o conteúdo da forma. Mal do livro que não consegue harmonizar estas duas componentes. Mas este conseguiu-o estabelecendo connosco uma relação difícil mas profunda, uma espécie de sucção em que a evidência do eu, a “aparição” do eu ao autor e o que isso significava seduzia e perturbava, mas também projectava e estimulava de uma maneira como nunca antes tinha sentido.

Como disse, há momentos certos no crescimento e na vida para ler um livro, e há momentos errados, ou menos adequados. Tive a sorte de ler Aparição na altura certa. Ou talvez um pouco cedo, quem sabe? Mas aquilo a que me obrigou foi uma das razões da sua força e da sua profunda e duradoura influência. Naquela idade, foi um dínamo para a minha formação. Como esquecê-lo?
João Boavida
Imagem: Leitura, de Renoir

1 comentário:

jad disse...

João Boavida

Parabéns pelo texto. Excelente mesmo.

Pessoalmente não tive tanta sorte (se de sorte se tratar). Li Aparição muito mais tarde, quando o prefácio de "O Existencialismo é um Humanismo" já me tinha feito dar muitas voltas ao que eu era. Por isso, li Aparição como uma revelação de uma escrita que me sugava como um vórtice a que não se pode escapar. Li e reli e reli. E em cada leitura lá estavam novos mundos que ainda não vira.

É assim a grande escrita. É assim porque, como uma sábia sedutora, se vai revelando sem se mostrar, sem se despir, sem se expor na sua transparência.

A grande escrita revela-se na opacidade do dizer que a forma. E é nessa opacidade que mergulhamos de cada vez que nos perguntamos "Porquê?". E é dessa opacidade que se soltam as vozes que somos capazes de ouvir. E regressamos, regressamos sempre. Porque somos nós que estamos lá e não nos reconhecemos.

Por isso, nos apegamos à "espessura das palavras, a bela densidade que elas conseguiam e que arrebatava" (cito-o). E gostamos.

Parabéns.

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