Há um mito urbano amplamente difundido de que Darwin teria na sua biblioteca uma separata do artigo de Mendel Versuche uber Pflanzenhybriden (experiências em hibridização de plantas), publicado em 1865, nos Proceedings da Sociedade de História Natural de Brno, mas que optou por não o mencionar.
Um leitor do De Rerum Natura pergunta-nos se Darwin recebeu uma carta de Mendel e não lhe respondeu, e se isso teve a ver com o facto de ele não ler alemão ou com o facto de os cientistas britânicos darem pouca importância à ‘ciência alemã’.
Eu próprio li autores (por exemplo, Phillip Kitcher) segundo os quais essa cópia existia na biblioteca pessoal de Darwin, mas que este nunca a havia aberto (as separatas eram impressas em folhas grandes, que depois eram dobradas em cadernos mais pequenos – como os livros aliás – e requeriam o uso de um instrumento fundamental para o efeito: o corta-papel).
Contudo, essa afirmação não tem fundamento. Não há qualquer indício de que Darwin tenha recebido o artigo de Mendel. No catálogo da sua biblioteca, elaborado na Universidade de Cambridge, não consta qualquer volume daquela publicação, que era pouco importante na época, ou a célebre separata de Mendel. O contrário é verdade: Mendel leu e anotou a Origem das Espécies e outros trabalhos de Darwin.
A biblioteca de Darwin viajou da sua casa de Down House para a Universidade de Cambridge, quando um dos seus filhos a vendeu, tendo regressado anos mais tarde, quando a casa se tornou numa casa-museu. Poderíamos, então, admitir que a separata, existindo, se tivesse perdido.
Mas Darwin estava interessadíssimo no hibridismo em plantas e no fenómeno do vigor dos híbridos. É muito pouco provável que, se tivesse recebido a separata, não lhe tivesse dado atenção. E não há qualquer anotação de Darwin sobre a sua existência. E Darwin lia alemão, embora lentamente, e correspondia-se com cientistas alemães.
Há apenas 11 referências aos trabalhos de Mendel antes de 1900, quando foram "descobertos" por Bateson e de Vries. Darwin possuía algumas delas, como os livros de W. O. Focke e de H. Hoffmann, ambos em alemão, sobre hibridização em plantas. Contudo, quando anos mais tarde um jovem discípulo de Darwin, George Romanes, estava a preparar um artigo sobre hibridismo para a Enciclopédia Britânica e lhe escreveu a pedir ajuda, Darwin enviou-lhe o livro de Focke, dizendo-lhe que lhe seria mais útil que ele ("aid you much better than I can"). Sucede que as páginas desse livro que fazem referência ao trabalho de Mendel nunca foram cortadas por Darwin, nem por Romanes, que, portanto, não as leram.
Os interessados podem ler mais aqui.
Há um texto interessantíssimo de Steve Jones, publicado em The Guardian, sobre as preocupações de Darwin acerca das consequências da endogamia, que ele conhecia (“Nature thus tells us, in the most enphatic manner, that she abhors perpetual self-fertilization”) e as consequências que podiam ser inferidas sobre os casamentos entre parentes muito próximos, como era o seu.
Assim, Darwin nunca respondeu a Mendel porque este nunca lhe escreveu. Darwin tinha, aliás, por hábito responder a todas as cartas que lhe eram dirigidas, o que fazia metodicamente: lia-as entre as 9h30 e as 10h30 e respondia depois do almoço. Darwin mantinha uma correspondência impressionante com cientistas de todo o mundo – incluindo um jovem português, Arruda Furtado, que lhe escreveu várias cartas em francês, às quais Darwin respondeu em inglês (as cartas de Darwin a Arruda Furtado encontram-se no Museu de Ciência da Universidade de Lisboa).
Há um estudo curioso sobre a correspondência de Darwin e de Einstein realizado por João Oliveira e Albert-Lazlo Barabási, que surgiu na Nature a 27 de Outubro de 2005. Nele se mostra como os dois autores foram tão prolíficos na sua correspondência com outros cientistas ou não-cientistas. Darwin escreveu 7591 cartas e recebeu 6530. Einstein escreveu 14 500 e recebeu 16 200. Em média, Darwin escreveu 0,51 cartas por dia e Einstein 1,02. Um registo impressionante na era pré-correio electrónicol!
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3 comentários:
Muito obrigado pela generosidade e disponibiidade em fornecer tão abundante, tão completa e tão precisa elucidação.
Impressionante? O Leibniz escreveu, pelo menos, 20 vezes mais cartas que o Einstein. Ainda hoje não está publicada a obra completa.
ola meu naome e Maria Clara eu sou uma estudadente e tenho 11 anos.
Eu me enteresso muito por esse cara eu acho ela um fenomeno, mais eu queria fazer uma pergunta, ela trabalhava com que?
era com plantas?
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