terça-feira, 6 de outubro de 2009

Um singular combate às corporações


Rui Baptista continua a sua "luta de Sísifo" (na imagem, o mito de Sísifo) pela Ordem dos Professores;

“É preciso imaginar Sísifo feliz” (Albert Camus)

Num penoso e desgastante penhasco de Sísifo, defensor de primeira linha da criação de uma Ordem dos Professores, deparei-me, no blogueÂngulo Recto”, da dirigente da Ordem dos Advogados Nicolina Cabrita, com a transcrição de um excerto de uma extensa entrevista do advogado José António Barreiros, datada de 2 de Outubro último e publicada no semanário Sol, de que destaco a seguinte declaração: “O Primeiro-Ministro definiu uma estratégia de combate às corporações”.

Esse facto é tanto mais insólito se levarmos em conta que foi um governo do Partido Socialista que deu luz verde a uma corporação profissional que, à data da sua criação, não reunia a condição dos seus associados serem portadores de uma licenciatura universitária, mas apenas de um bacharelato politécnico. Refiro-me à Ordem dos Enfermeiros, criada pelo Decreto-Lei n.º 104/98, de 21 de Abril, uma década após a integração dos cursos médios de enfermagem geral no ensino politécnico, pelo Decreto-Lei 480/88, de 23 de Dezembro.

Perfila-se, agora, sob a égide desse mesmo partido, a transformação da Câmara de Técnicos Oficiais de Contas (criada através do Decreto-Lei 452/99, de 5 de Novembro) em Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, com uma profusão de habilitações académicas que vai desde “os portadores de pelo menos o 9.º ano de escolaridade” a licenciados ou até doutorados em Economia e Gestão por reputadas universidades.

Bem sei que tempos houve em que foram abertas excepções, mas de forma alguma gritantes de compadrio. Por exemplo, os estatutos da Ordem dos Médicos (Decreto-Lei 29.178/38, de 24 de Novembro) admitiu diplomados pelas extintas Escolas Médicas de Goa e do Funchal, “com as restrições de âmbito profissional previstas na lei”. Outro exemplo: os diplomados com o curso profissional das extintas Escolas de Farmácia de Coimbra e Lisboa aos quais, a exemplo dos licenciados pela Faculdade de Farmácia do Porto, foi facultado o acesso à Ordem dos Farmacêuticos “unicamente para o exercício da direcção técnica de farmácia, com exclusão das actividades farmacêuticas especializadas do âmbito exclusivo dos licenciados” (Decreto-Lei nº. 334/72, de 23 de Agosto).

Sem prever o verdadeiro descalabro que se viria a abater sobre a qualidade do ensino com as “Novas Oportunidades” e as “Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos”, com alguns docentes não portadores de uma licenciatura universitária, encontrei naqueles dois casos um precedente para os princípios doutrinários em que baseei a defesa da Ordem dos Professores. De um meu artigo de opinião, transcrevo:
“Pela necessidade em disciplinar o exercício profissional no âmbito da docência, conferindo o título de professor, devidamente dignificado pelo exigente papel que lhe deve ser atribuído na sociedade portuguesa, e que pela exigência de uma licenciatura universitária, em grande parte dos casos, o torne paritário de outros títulos profissionais de idêntica importância académica e profissional, justifica-se plenamente a criação de uma Ordem dos Professores.

Implícita a esta criação, reside o facto da massificação do ensino dever ser responsabilizada pela diminuição da exigência na preparação dos agentes de ensino dos diversos graus verificada nos últimos anos (com excepção da carreira docente universitária), com todos os inconvenientes para um ensino da melhor qualidade na preparação dos estudantes portugueses conferindo a todos os diplomas académicos uma credibilidade de nível técnico, científico e cultural que não desmereça quando em confronto com os de outros países da Comunidade Europeia mais avançados.

Na elaboração de um estatuto sobre a Ordem dos Professores, a título excepcional, e com um transitoriedade que se não deseja prolongada para além dos casos existentes à data da sua entrada em vigor, a situação de docentes de nomeação definitiva sem o grau de licenciatura deverá ser devidamente ponderada” (“Correio da Manhã”,
28/Junho/1996).
Para abreviar um longo historial de vicissitudes por que tem passado o processo da criação da Ordem dos Professores, detenho-me apenas num ponto, que é fulcral: em 2 de Dezembro de 2005 foi debatida e “chumbada” (para usar a gíria académica) na Assembleia da República uma petição apresentada pelo Sindicato Nacional dos Professores Licenciados (SNPL), sob a alegação de estar a ser preparada uma Lei-Quadro que retiraria às futuras ordens profissionais a capacidade de avalizarem os cursos que a elas dariam acesso (convém recordar que a Ordem dos Engenheiros não reconheceu a licenciatura de José Sócrates). Ou seja, essa função passaria a ser desempenhada pelo Estado deixando as associações públicas órfãs de uma das suas principais finalidades, quiçá porque, como refere também José António Barreiros “um certo sector de esquerda conviver mal com a ideia de Ordem”. No caso da Ordem dos Professores, a maior resistência tem vindo da Fenprof deste os tempos directivos de Paulo Sucena. Dela se fez prosélito Mário Nogueira, sob a arrevesada argumentação de que as questões éticas devem ser da alçada sindical e não das associações públicas, pronunciando-se desta forma sobre assuntos que fogem obviamente à respectiva competência.

Mas, se como escreveu Camus, “é preciso imaginar Sísifo feliz”, esse estado de alma tem sido intangível tantos têm sido os anos do rolar da pedra pela encosta abaixo que os defensores da Ordem dos Professores têm carregado às costas. Haja a esperança de que o SNPL assuma novamente para si esse papel, passada que seja a sua estranha participação numa Plataforma Sindical constituída por muitos sindicatos que se uniram contra as medidas tomadas pela ministra da Educação do governo que ora finda.

Rui Baptista

11 comentários:

Marta Bellini disse...

Olá, Rui

Muiito bom seu artigo

marta
Brasil

Rui Baptista disse...

Prezada Marta:

O seu amável depoimento teve para mim o agrado em saber, mais uma vez, que no Brasil, e de uma sua relevante académica nacional, o "De Rerum Natura" continua a merecer uma atenção que atravessa o Atlântico. Bem-haja!

Anónimo disse...

O SNPL...?! Já foi chão que deu uvas. Ou muito me engano ou nada o distingue já dos outros... Venha o diabo e escolha.

Rui Baptista disse...

Caro Anónimo:

Perfeitamente de acordo consigo.

Se se der ao trabalho de consultar os objectivos que presidiram à criação do Sindicato Nacional os Professores Licenciados (SNPL), verificará que eles foram atraiçoadas com a entrada deste sindicato na Plataforma Sindical (fortemente politizada), em renegação dos objectivos que foram a génese da sua criação

Este “stau quo”, levou a que, numa espécie de pacto que faria corar de vergonha o próprio Fausto, o SNPL e a Fenprof se passassem a dar como Deus com os anjos, embora com perspectivas sindicais bem diferenciadas assumindo um casamento de conveniência que prejudicou o primeiro e favoreceu a segunda.

Em face do exposto, numa assembleia geral, por não concordar com esta, para mim espúria situação, na minha qualidade de presidente da respectiva assembleia geral (durante dezoito anos, tantos quantos os de vida levava o SNPL) chamei a atenção para a minha frontal discordância contra a opinião da maioria quase absoluta dos presentes. Apresentei na altura o meu pedido de demissão de que fui demovido por uma proposta, apresentada na altura, e votada por maioria, com duas abstenções, com um voto de confiança à minha pessoa e ao desempenho do meu cargo.

Por se manter esta situação, outra saída me não restava. Passado tempo, no dia 14 de Abril de 2008, demiti-me do meu cargo sem deixar um alerta numa carta enviada ao SNPL: “A adesão do SNPL à Plataforma dos Sindicatos coloca em perigo a sua própria sobrevivência por se identificar a papel químico com outros sindicatos mais fortes, com maior número de associados e melhor implantados no terreno nesta área de associativismo. Com isso, o SNPL obrigou-se a pagar um preço demasiado alto para que os seus associados ‘deixem de ser postergados pela administração e ignorados pelos outros sindicatos e suas federações’”. Este um receio pessoal que o futuro se encarregará de dar ou não razão numa altura em que a Fenprof se chega cada vez mais à frente para ser iluminada pelas luzes da ribalta pública transformando os outros sindicatos em simples figurantes.

Nicolina Cabrita disse...

Caro Dr. Rui Baptista,

Agradeço-lhe a amável menção ao meu «Ângulo Recto», a propósito das declarações ao semanário «SOL» do Dr. José António Barreiros, actual Presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, órgão que integro. Devo, antes de mais, esclarecer que não estou mandatada pelo Dr. Barreiros para precisar o sentido dessas declarações, pelo que só ele poderá explicar melhor o que quer dizer quando referiu que “O Primeiro-Ministro definiu uma estratégia de combate às corporações”. Posso, apenas, deixar-lhe a minha opinião estritamente pessoal sobre a matéria em causa, que é a seguinte:

Reconheço que este último Governo foi, seguramente, aquele que pior conviveu com a independência das corporações. Todavia, no que concerne à autoregulação das profissões de interesse público, creio que esta realidade está sob ameaça desde muito antes desta última legislatura. Julgo até que a principal ameaça neste domínio vem de Bruxelas, e assenta na visão/abordagem puramente economicista que a Comissão Europeia tem da actividade das profissões liberais. Há muito que me venho manifestando contra esta «visão» no meu «Ângulo» e escolhi, até, este tema para a reflexão que apresentei no último Congresso dos Advogados, em 2005, conforme texto disponível aqui: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=30347&ida=31108

Quanto à questão que aborda neste post – que me parece ser a diminuição da exigência na preparação dos agentes de ensino dos diversos graus verificada nos últimos anos – é minha convicção que o problema da má/deficiente preparação académica em geral, e no Direito em particular, deve ser resolvido, em primeira linha, por quem o criou (ou seja, o Governo/ME), na medida em que se trate de uma diminuição dos saberes académicos. Às Ordens (e mais concretamente, à minha) competirá garantir a formação adequada para o exercício, em concreto, da profissão em causa (sobretudo a deontológica), sendo, aliás, esta a orientação que vingou, no último Congresso, conforme poderá verificar aqui [ texto está disponível aqui: http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=31559&idsc=46077&ida=46080 (conclusão 30)].

Saudações cordiais
Nicolina Cabrita

Rui Baptista disse...

Prezada Dr.ª Nicolina Cabrita:

Muito me apraz a atenção que dedicou ao meu post, trazendo com o seu valioso comentário perspectivas que devem merecer atenção pelas pistas que apresenta no que tange à Ordem dos Advogados e que, por analogia, devem levar a uma análise cuidada por parte dos professores que se batem por uma ordem profissional para a classe.

Com os melhores cumprimentos
Rui Baptista

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Batista,

Infelizmente, e mais uma vez, o tempo veio dar-lhe razão...!

Mas há muito boa gente da tal esquerda modernaça que jura a pés juntos que o Estado deve ter o poder absoluto sobre os professores para que estes não se atrevam a voltar a... ENSINAR!

Como dizia o outro: "é a vida!"

Rui Baptista disse...

Caro Fartinho da Silva:

Como já tenho escrito várias vezes, os senhores de Roma (leia-se, inquilinos da 5 de Outubro) teimam em continuar a ver nos actuais professores uma espécie de escravos gregos ao serviço dos seus filhos e enteados por acréscimo.

Enquanto não assumirem, de corpo inteiro, a sua dignidade os professores não serão senhores do seu destino, a exemplo de outros licenciados de outras profissões que se autoregulam, através de ordens profissionais, deixando de ser escravos submissos a uma asfixiante tutela estatal no recrutamento de docentes não sancionados pela classe.

Com consequências funestas para uma juventude (e mesmo adultícia) deficientemente preparada, “et pour cause”, mais sujeita às garras impiedosas do desemprego embolado em diplomas de ensino superior que não valem um tostão furado.

Mais cedo do que se pensa, serão esses próprios diplomados a responsabilizar os governos que encararam a sua preparação académica como um palco de feirante e os professores como marionetes do reino da mediocridade.

Como escreveu Miguel Torga, “maldito seja quem se nega aos seus nas horas apertadas”. Depoimentos corajosos como o que subscreveu dão-nos o consolo que nem todos os professores se negam aos seus em horas apertadas, através de um silêncio cúmplice deixando que outros colegas vão para a frente de combate fazendo soar apenas as trombetas na hora da vitória ou deixando os corpos inertes dos vencidos sem sequer lhes prestarem as honras devidas.

Como dizia o outro, e ambos subscrevemos, “é a vida!"

Helena Ribeiro disse...

E já repararam na panóplia de autorzecos medonho-contemporâneos que invadiu os manuais escolares? Há textos tão estúpidos, mas tão estúpidos, que só de lê-los ficamos com os miolos dormentes.

Às manobras políticas vocacionadas para a criação de seres inoperantes que por aqui têm sido empenhadamente denunciadas, convém acrescentar outras formas igualmente indignas de garantir a manutenção desses mesmos seres inoperantes. E são elas muitas. “Os papões são do domínio do mundo físico, não são nada do mundo dos sonhos”. (Paula Rego, Câmara Clara, citado de memória).

Rui Baptista disse...

Prezada Helena:

É sempre com prazer que leio os seus comentários aos meus textos.

E este foi-me particularmente grato pelo seta que acertou em cheio na "mouche", quando se refere "às manobras políticas vocacionadas para a criação de seres inoperantes(...)",alás, com o perigo denunciado por Vitor Hugo: “Uma sociedade de carneiros acaba por gerar uma sociedade de lobos”.

Helena Ribeiro disse...

... acalentarão os assustados carneiros a ideia de que os lobos do século XXI são vegetarianos...???

Alguém que conheço pediu autorização na escola em que trabalha para participar na comemoração dos 87 anos de Agustina Bessa-Luís no CCB: o director dessa escola considerou que tal evento não contribuiria para a formação dessa pessoa que conheço, que lecciona Português. (Para quem não saiba, Agustina B essa-Luís ainda consta dos programas da disciplina no 7º e no 12º anos - e mesmo que não constasse!).

Se houvesse um Ordem de Professores acham que episódios destes não corriam o risco de ser eficazmente denunciados?

Rui Baptista: continuarei a ler com particular atenção os seus textos, quer pelo interesse que suscitam, quer pela importância que assumem na actual conjuntura - mesmo quando se prevê que tão depressa Sísifo não terá hipótese de se sentir feliz.

"A escola pública está em apuros"

Por Isaltina Martins e Maria Helena Damião   Cristiana Gaspar, Professora de História no sistema de ensino público e doutoranda em educação,...