segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O ACASO E A NECESSIDADE SEGUNDO SAVATER

O filósofo espanhol Fernando Savater é o autor do recente livro "A Arte do Ensaio, Ensaios sobre a Cultura Universal" (Temas e Debates/ Círculo de Leitores). Para abrir o apetite para o resto do livro deixamos aqui o seu breve ensaio sobre o ensaio de Jacques Monod de 1970 "O Acaso e a Necessidade":

"Entre todos os conceitos filosóficos, talvez não exista um par de opostos tão existencialmente relevante como o que dá título este livro. São duas perspectivas contrárias de interpretar a realidade, mas que coincidem em aspectos importantes: ambas se mostram globalmente irrefutáveis (sem deixarem de ser incompatíveis!) e ambas são profundamente desmobilizadoras no tocante à gestão do nosso destino individual (em qualquer dos casos não há nada a fazer, quando se trata de estabelecer um certo controlo autónomo sobre as nossas vidas, ainda que por uma curiosa miopia os partidários do acaso acreditem que este garante melhor a liberdade pessoal do que o seu rival). Quer tudo aconteça de forma gratuita e imprevisível quer, pelo contrário, nada aconteça sem uma causa inamovível e suficiente (e ambas as posições radicais admitem ser defendidas com coerência suspeitosamente absoluta), o papel que a nossa vontade pretensamente livre tem nos acontecimentos fica reduzido quase a zero: o fio de erva arrastado pelos caprichos imprevisíveis do furacão ou pela roda da engrenagem universal que chama vaidosamente "optativo" ao irremediável.

Dentro da campânula de vidro da filosofia pura, acaso e necessidade opõem-se desta forma irredutível. Porém, no âmbito - mais pragmático e transaccional - da ciência contemporânea, as coisas podem funcionar de um modo menos categórico. Constitui um dos méritos do grande biólogo Jacques Monod o facto de ter conseguido delinear um panorama racionalmente aceitável, no qual ambas as perspectivas têm os seus pontos de cumplicidade teórica, sem que tal conciliação desminta nem castre a conversa epistemológica em que se inscrevem.

O ensaio de tipo científico acaba por ser o mais comprometido de todos, porque se nega a prescindir da argumentação experimental e formalizável que parece menos compatível com a dimensão pessoal que caracteriza o género na sua totalidade, tal como já referimos. Contudo, esta obra de Monod demonstra que este tour de force pode ser brilhantemente conseguido e que, quando sobrevém essa sorte, o que acontece é que os cientistas se tornam ensaístas filosoficamente muito mais sugestivos do que os pensadores apenas "literários".

Permitam-me uma nota geracional, que assumo convicto e confesso. A minha simpatia por Jacques Monod provém também da fotografia que o mostra nas barricadas do Quartier Latin, no Maio de 1968 em França, amparando paternalmente uma jovem atingida por gases lacrimogéneos da polícia. Nem eu nem, provavelmente, ele próprio poderemos dizer se agia pelo acaso ou pela necessidade, mas procedeu como uma companheiro bastante digno".

1 comentário:

Anónimo disse...

Foi por ser tão sábio. que Monod partiu tão cêdo!

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