quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O chapéu das fitas a voar

Novo texto de João Boavida:

Num texto anterior referi que, por influência do ex-banqueiro Paulo Teixeira Pinto a Guimarães Editores se propôs levar a cabo a publicação fa Opera omnia de Agustina Bessa-Luís, num azul-ferrete que não será a melhor escolha para a sobrecapa, mas que alcança alguma qualidade com capa cartonada, papel de 80 g Munken Print Creme e a edição composta em Adobe Garamond. Vale a pena chamar a tenção para estas coisas porque andam por aí edições péssimas, do papel à mancha tipográfica, do tipo e tamanho da letra às revisões que muitas vezes não se fazem, etc.

A edição das obras completas de Agustina é um acontecimento, ou devia ser, e este livro, devo dizer, apanhou-me desprevenido. É feito, no dizer dos organizadores Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira por «sete obras antes editadas autonomamente ao longo de quase um quarto de século», e teve a útil colaboração de Alberto Luís, marido de Agustina, e da filha Mónica Baldaque.

Não se estava a contar com ele porque o título é novo e resulta de uma ideia que Agustina deixou num texto a propósito de um chapéu que lhe deram, quando adolescente, e os organizadores acharam que Agustina gostaria muito bem de o ver num livro desta natureza, evocativo, voltado para a infância e para a juventude onde a recordação de um chapéu com fitas que voavam ao vento pode dourar uma velhice e prolongá-la pela eternidade fora.

O livro é feito de textos «autobiográficos» embora nunca se possa saber ao certo o que aconteceu ou não aconteceu, separar do imaginado o que foi de facto. E, se isto é verdade com todos os artistas, muito mais o será com Agustina. Mas a verdade autobiográfica dele é mais forte que a verdade que poderá ou não ter sido porque é uma evocação onde o seu estilo se manifesta com toda a força e as memórias têm aquele sabor impar dado por imaginação e contenção verbal que não dispensam o toque do seu espírito agudo e implacável, simultaneamente cáustico e saboroso, que é capaz de amar sob o gume do aço dando força e beleza a tudo aquilo em que toca.

Poderá dizer-se também que aqui Agustina teve a travar a sua inteligência aforística e contraditória o peso da memória e os trilhos da evocação, e que não pôde desdobrar-se em explicações e teorizações contraditórias, como sempre gostou, porque, apesar de tudo, a memória tinha o seu peso e não podia fugir muito dela. Daí resultarem páginas magníficas de um rigor livre, se é que se pode dizer, quase perfeito, porque parece que as palavras e as expressões, sopradas por ela por uma caninha com sabão, vêm pelo ar encaixar nos espaços previamente preparados sem ruídos nem desequilíbrios formando uma tapeçaria de que não conseguimos desprender o olhar.

As cem páginas que constituem “Dentes de Rato” são de uma concisão e de um rigor impecáveis, dentro de um processo evocativo que corre sem pressas mas cheio de encontros inesperados, lexicais e dialógicos, que evoca na medida certa e pelos quais consegue dar aos diálogos, quase inexistentes, a riqueza máxima que eles poderiam ter, ali. Sem deixar de desenhar personagens, com dois ou três traços de mestre cria situações, lugares e imagens que nos entram pelos olhos e nos vão despertar quadros em que nos revemos como se tivéssemos estado lá, sem nunca termos estado.

E, já que se trata de escritos autobiográficos, lá vêm alguns contos que Agustina ouviu às tias e que ela reconta com toda a sua desenvoltura. “Os contos amarantinose “Três histórias mais” onde “A memória de Gis” (Gisbergo, entenda-se, mas quem iria chamar-lhe assim?) só não atinge a perfeição porque é sempre bom deixar uma margem, e é um exemplo da simultânea rapidez e lentidão de todo o livro. Rapidez na narração e lentidão no peso que cada palavra ou expressão idiomática adquire no lugar em que está; segurança nos traços e inesperadas ou hilariantes situações, que evoca da passagem, numa construção, como já se disse, de pedras aparelhadas na medida certa sem necessidade de maço nem pico. O que nos faz pensar numa espécie de arte da fuga em literatura, num Johann Sebastian Bach segurando as rédeas da sua carruagem musical, ou na quadratura de um círculo, que os geómetras conseguissem finalmente sem dificuldade nem alarido, mas com muita beleza nos gestos racionais. E em tudo o resto.

João Boavida

1 comentário:

Pôncio Vileda disse...

continuo na minha: O Editor cheira mal dos olhos. Pim.

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