quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O palácio dos Sarafanas

Texto de João Boavida, saído antes em As Beiras, sobre um enorme palácio em ruínas em Alpedrinha, Fundão (segundo a monografia referida no texto "consta em Alpedrinha, e o povinho acredita piamente, que este grandioso edifício não foi acabado devido a um embargo real, pois era obra de tal sumptuosidade que o rei teve inveja d'um palácio assim, e proibiu terminantemente a sua conclusão." )

«Mesmo ao cimo da vila, e junto ao antiquíssimo caminho romano que conduz à Portela de Alpedrinha, por cima do Chafariz, está situado o palácio dos Sarafanas, mais conhecido por Picadeiro, dominando, sobranceiro, das suas altas e rasgadas janelas e varandas, a maior parte da vila, e todo o Campo, num panorama deslumbrante, d’esses que não esquecem». Assim começa Salvado Mota a descrição do palácio do Picadeiro, na sua Monografia de Alpedrinha, livro escrito, composto e impresso nesta vila, em 1933, numa «Tipografia particular e curiosa do autor», e com uma reedição fac-similada em 2004.

O palácio, construído no século XVIII pelo Dr. Francisco Lopes Sarafana Correia da Silva, ficou por metade, pois estava prevista uma fachada igual e simétrica, voltada a nascente, e que a morte do proprietário interrompeu. Se o plano tivesse sido concretizado, o edifício seria imponente, mas, mesmo assim, é uma magnífica construção barroca, de linhas elegantes e poderosas, que enquadra, ao alto, o belíssimo Chafariz Real de D. João V. O conjunto arquitectónico é notável. E mais ainda se tivermos em conta o acesso desde a Igreja Matriz, até ao largo, no cimo da vila, as construções graníticas em redor, a rampa da estrada romana, que começa ali, e a capela que lhe fica encostada, por detrás e acima, anterior igreja dos jesuítas e actualmente de São Sebastião.

A entrada do palácio, o «picadeiro», tem carácter, pois é largo, lajeado a granito e com o miradouro «com quatro parapeitos com assentos aos lados», no dizer ainda de Salvado Mota. As vistas são rasgadas: para trás de nós e a Nascente, a Gardunha, para Sul e Poente, o «campo», ou seja, o começo do Portugal do Sul, com a planície das Idanhas, velha e nova, e Castelo Branco, até ao amarelo e castanho de Castela, que, da tão longínquo, é azul.

A história do palácio foi atribulada. Com a morte de Francisco Sarafana começou uma agonia de abandonos, maus usos e abusos durante dois séculos, com esporádicas notícias de que ia ser recuperado para isto e para aquilo. Mas nada. Nunca.

Com o advento da democracia, e a chegada ao poder autárquico de gente de menos estatuto que o tradicional, talvez, mas mais capacidade para agir, constitui-se uma comissão, que trabalhou e lutou durante trinta anos e muitos governos. E que ajudada pela boa vontade da actual autarquia fundanense, conseguiu finalmente recuperar o Palácio do Picadeiro.

Para quem toda a vida viu aquilo ao abandono, poder agora pisar o seu pátio magnífico, andar pelas suas salas e subir ao piso superior «por uma escadaria construída no interior de uma das paredes», tão largas elas são, não só sente uma funda emoção como agradece aos que concretizaram a obra.

Na confluência do Portugal do Norte, montanhoso, húmido e frio com o do Sul, plano, mais árido e quente, o Palácio do Picadeiro, no alto da vila, aberto aos ventos e aos horizontes, tem-se vindo a tornar um lugar de referência e muito mais no futuro o poderá ser. Ainda em ruínas, aproveitando o seu espaço e as suas pedras, houve ali concertos musicais e outros eventos de relevo. Pensado agora para centro de estudo e interpretação da transumância ele pode ser isso e muito mais. Um centro cultural, um lugar de atracção turística, um miradouro, um ponto de vendas de produtos qualificados da região, uma livraria, lugar de reuniões, exposições, concertos, representações ao ar livre, enfim quase tudo o que os responsáveis pela sua gestão forem capazes de imaginar e levar a efeito. Mas a cultura não é isso mesmo? E as coisas não são aquilo em que se vão tornando? E não se vão tornando naquilo em que já são ou poderão vir a ser? Os lugares qualificam as pessoas; as pessoas qualificam os lugares. Apesar de vila com alguma tradição de nobreza, Alpedrinha tem trabalhado, e bem, para honrar os seus pergaminhos.

Sem comentários:

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...