sexta-feira, 1 de junho de 2007

Serão as constantes da natureza contingentes?

A ideia do princípio antrópico, assim como a própria ideia de design inteligente, pode estar baseada num argumento simples inválido, mas muito influente ao longo da história da filosofia e até intuitivo. Podemos encontrar uma versão desse argumento na famosa passagem de Hume, na qual se procura provar que o contrário de qualquer afirmação factual (a que Hume chamava “questão de facto”) é possível porque não implica qualquer contradição:

“O contrário de qualquer questão de facto é ainda possível; porque nunca pode implicar uma contradição, e é concebida pelo espírito com a mesma facilidade e distinção com que seria se fosse conforme à realidade. Que o Sol não irá nascer amanhã não é uma proposição menos inteligível, e não implica maior contradição, do que a afirmação de que irá nascer amanhã.” (Investigação Sobre o Entendimento Humano, sec. IV, par. 21.)

A ideia central é afirmar que se a negação de p não é logicamente impossível, p é possível. O argumento de Hume formula-se claramente do seguinte modo:

1. Não é logicamente impossível que o Sol não nasça amanhã.
2. Logo, é logicamente possível que o Sol não nasça amanhã.
3. Logo, é possível que o Sol não nasça amanhã.

Dado o exemplo escolhido por Hume, o argumento parece razoável. Mas se usarmos outro exemplo num argumento com a mesma forma lógica, começamos a perceber que algo está errado:

1. Não é logicamente impossível que Sócrates não seja um ser humano.
2. Logo, é logicamente possível que Sócrates não seja um ser humano.
3. Logo, é possível que Sócrates não seja um ser humano.

Intuitivamente, aceitamos 1 e 2, mas não 3. O problema do argumento de Hume é pressupor sem justificação que a possibilidade lógica é absoluta, ou seja, que se algo é logicamente possível, é possível. Contudo, é precisamente esta ideia que precisa de ser defendida, e não meramente pressuposta. Ao limitar-se a pressupor sem justificação que tudo o que é logicamente possível é possível esta teoria dificulta a compreensão da modalidade: pois agora ficamos com um mistério para resolver, o mistério da nossa intuição modal que nos diz que Sócrates não poderia ter sido um chinelo de quarto, apesar de isso não ser logicamente impossível. Podemos argumentar que esta intuição está errada, e que Sócrates poderia ter sido um chinelo de quarto, mas é uma petição de princípio defender que esta intuição está errada porque tudo o que é logicamente possível é possível — pois isso é o que está em discussão.

O que faz muitas pessoas, incluindo cientistas, aceitar o princípio antrópico e o design inteligente é este argumento falacioso segundo o qual do facto de algo ser logicamente contingente se segue que é contingente — sendo então necessário explicar por que razão as coisas contingentes são como são, surgindo Deus como uma explicação disponível. Ora, Deus só pode funcionar como explicação da razão pela qual algo de contingente é como é se pressupomos que a própria existência de Deus não carece de explicação; e tradicionalmente considera-se que Deus não carece de tal explicação precisamente por ser um existente necessário.

Contudo, se as constantes fundamentais do universo forem necessárias, apesar de serem matemática e logicamente contingentes, nada há para explicar, do próprio ponto de vista teísta. Do mesmo modo que não precisamos de Deus para explicar por que razão as verdades da lógica e da matemática são como são, e do mesmo modo que não ocorre aos mais influentes teólogos e filósofos argumentar que foi Deus que fez as verdades da matemática e da lógica serem o que são, também não precisamos de Deus para explicar as leis fundamentais do universo, se considerarmos que são necessárias apesar de serem matemática e logicamente contingentes.

Resumindo: que razões há para pensar que as constantes da natureza são contingentes? Que são lógica e matematicamente contingentes é óbvio; mas daí não se segue que sejam realmente contingentes. Ora, se não há outras razões para pensar que são contingentes excepto o argumento inválido baseado na premissa da contingência lógica e matemática, não podemos pura e simplesmente pressupor que as constantes da natureza são contingentes — e, desse modo, não podemos pura e simplesmente argumentar a favor de qualquer princípio antrópico ou de qualquer design inteligente, pois tais coisas só fazem sentido se as constantes da natureza forem contingentes.

25 comentários:

no name disse...

bom, isto hoje está interessante. não podia imaginar que uma coisa tão simples podesse criar tanta confusão! da mesma forma que um "princípio antrópico relativo ao tamanho da terra" retira o nosso planeta do "centro" do universo, também um "princípio antrópico para a massa do electrão" retira o nosso universo do seu papel de "desenhado". de facto, se no multiverso todos os diversos universos com diferentes massas do electrão são realizados (e, naturalmente, serão muito diferentes uns dos outros), o nosso universo tem pouco de especial e nada de "desenho".

Teresa Sá e Melo disse...

A questão é mais simples e prosaica.
Por exemplo:
Activei artificialmente as células neuronais de um ratinho vivo, com drogas injectadas, e vou medir um parâmetro quantitativo, relativo à difusão da água nessas células activadas artificialmente. Observo então que o valor experimental da difusão da água nestas células activas é menor que nas não activas. Existindo razões experimentais para crer que as drogas injectadas activam as células neuronais da dor (ou da sede ou da raiva ou do prazer), então a actividade neuronal ligada a estas sensações provocam a inibição no movimento celular da água.
Experimentalmente, todos os sistemas respondem adequadamente às questões que lhes colocamos. Senão, não saberíamos como atingir as respostas. Por definição, o modelo está sempre de acordo com a pergunta que formulamos e com a resposta que obtemos.
No entanto, a verdadeira causa do evento que procuramos só é atingida quando a resposta do sistema engloba parâmetros desconhecidos que, à partida, não foram inquiridos.
O sistema e o modelo são então melhorados sucessivamente e, dentro do erro experimental, o resultado obtido será a causa do evento, matemática e fisicamente verdadeira nesse momento.
Os parâmetros físicos fundamentais são infinitamente menos contingentes do que os parâmetros biofísicos do exemplo experimental anterior. Isto é, pode vir a provar-se que a imobilidade da água nas células neuronais activas é uma consequência da inactividade, forçada pelas drogas, das restantes e maioritárias células vizinhas.
Ou seja, os sistemas e os modelos adoptados são contingentes, embora formulados por uma razão imanente.
Tudo na natureza pode ter um explicação fisicamente correcta, partindo do princípio da capacidade imanente da nossa razão.

Desidério Murcho disse...

Caros leitores

Obrigado pelos comentários.

Ricardo, afirma que "se no multiverso todos os diversos universos com diferentes massas do electrão são realizados (e, naturalmente, serão muito diferentes uns dos outros), o nosso universo tem pouco de especial e nada de "desenho"."

Ora, o meu artigo argumenta que não precisamos sequer de um multiverso. Pode haver apenas este universo e mesmo assim o argumento a favor do princípio antrópico e do design inteligente não funciona, porque se apoia na ideia de que as leis e constantes do universo são contingentes. A tentativa de postular um multiverso aceita ainda esta premissa. Eu estou a argumentar que tal premissa é pura e simplesmente recusável porque o único argumento a seu favor é falacioso.

Musicologo disse...

Então... se eu tiver algo que é Logicamente Possível, qual é o método para provar, o passo seguinte, que esse algo é "plausivamente" possível? (Isto é, possível, mesmo que à partida o nosso instinto não aceite muito bem)?

Desidério Murcho disse...

A resposta simples é que não há um método simples, nem um argumento directo. É preciso ter muitas coisas em consideração.

O importante é que o argumento simples e directo que parte da possibilidade lógica para concluir a contingência de algo é falacioso.

Portanto, quando algo é logicamente possível, resta ainda saber se é realmente possível. E para saber isso é preciso mais trabalho do que um mero argumento directo e simples.

Anónimo disse...

Caro Desidério Murcho:

se bem entendo,

1. "tradicionalmente considera-se que Deus não carece de tal explicação precisamente por ser um existente necessário".
2. No entanto, não é logicamente impossível que deus não exista;
3. Logo, é logicamente possível que deus não exista.
4. Logo, é possível que deus não exista.

Isto tem o mesmo "erro" do que o raciocínio do "chinelo de quarto"?

Não sei se é a mesma coisa perguntar se um deus logicamente contingente pode ser "realmente" necessário.

Desidério Murcho disse...

Cara Hellena

Quando se diz que algo é logicamente possível ou impossível podemos entender isso em termos mais ou menos estritos. Estritamente falanto, não se considera que a existência de Deus é logicamente necessária -- no mesmo sentido em que é logicamente necessário que duas quantidades iguais a uma terceira sejam iguais entre si.

Mas há um sentido mais lato de necessidade e possibilidade lógica -- a necessidade e possibilidade conceptuais, do género "Nenhum particular pode ser instanciado". É neste sentido que muitas vezes se considera que Deus é um existente necessário, e não no sentido mais estrito.

Portanto, mesmo os teístas têm de aceitar que nem tudo o que é logicamente contingente em termos estritos -- como a existência de Deus -- é realmente contingente. Por isso, eles próprios não podem aceitar a validade do argumento que parte da contingência lógica para chegar à contingência metafísica.

Resta saber se há algum argumento a favor da ideia de que Deus é um existente necessário que seja mais forte do que qualquer argumento a favor de que as constantes do universo são metafisicamente necessárias apesar de serem logicamente contingentes.

Anónimo disse...

Sim, compreendi.

Pessoalmente penso que a inexistência de argumentos a favor dessa ideia é um existente necessário - embora a sua existência pareça ser logicamente possível.

no name disse...

"...o meu artigo argumenta que não precisamos sequer de um multiverso..."

bom, mas a questão do multiverso não é uma questão para ser debatida com argumentos abstractos. é uma questão física que pode --ou não-- ser medida.

existindo vários níveis de multiversos (diferentes constantes fundamentais, diferentes dimensões, diferentes condições iniciais, diferentes leis da física), há um nível do qual não podemos fugir: o multiverso das condições iniciais.

de facto, o "universo" que conhecemos é aquele que se encontra dentro do nosso horizonte cosmológico e que conhecemos com as condições iniciais que teve. mas medições recentes pelo WMAP3 confirmam que o universo é espacialmente plano e bastante homogéneo (em distribuição de matéria escura ou não), pelo que tudo aponta na direcção que assim seja também fora do nosso horizonte cosmológico (o raio de hubble do nosso universo).

assim sendo, existem muitos outros universos, de todo fora do nosso horizonte e assim inacessíveis, onde as leis da física serão as mesmas, as constantes da natureza também, mas as condições iniciais, que se verificaram nesses outros universos antes do período inflacionário, terão sido distintas das nossas condições iniciais.

isto para dizer que os "argumentos" em questão de nada servem neste caso particular. e nos outros casos também não servem de muito, pelo menos não em teorias físicas que tenham inflação e moduli. por isso é necessário ter um bocado de cuidado quando se tenta arranjar "argumentos" para falsear coisas, quando as equações nos dizem precisamente o contrário. a ciência quantitativa é sobre equações, não sobre palavras. na realidade as palavras muitas vezes são muito vagas, mas as equações são sempre precisas!

:: rui :: disse...

É incrivel a falácia inerente à construção deste post.

O que faz muitas pessoas, incluindo cientistas, aceitar o princípio antrópico e o design inteligente é este argumento falacioso segundo o qual do facto de algo ser logicamente contingente se segue que é contingente

>> Quem é o algo que se diz contingente? Contingente para quem? Eu não digo que é contingente. Só pode ser falacioso quem acha que pode ser contingente.


— sendo então necessário explicar por que razão as coisas contingentes são como são, surgindo Deus como uma explicação disponível.

>> A explicação foi dada muitas vezes, mas não basta somente a explicação, mas sim a vontade em querer ver qual é a explicação, o que a não existir, qualquer explicação deixa de poder servir.


Ora, Deus só pode funcionar como explicação da razão pela qual algo de contingente é como é se pressupomos que a própria existência de Deus não carece de explicação

>> Deus tem explicação, só não tem para quem procura uma explicação que se adeque ao seu entendimento (premissas), ou seja plausível de acordo com as suas premissas. Se Deus se adequasse a essas premissas, achas que Deus seria Deus? É exactamente porque não se adequa, e portanto só é contingente para quem procura que o seja.


e tradicionalmente considera-se que Deus não carece de tal explicação precisamente por ser um existente necessário.

>> Deus explica-se como já disse, é um ser auto-existente. Para quem procura mais explicação, este estará à procura de nivelar-se com a sua posição.


Do mesmo modo que não precisamos de Deus para explicar por que razão as verdades da lógica e da matemática são como são, e do mesmo modo que não ocorre aos mais influentes teólogos e filósofos argumentar que foi Deus que fez as verdades da matemática e da lógica serem o que são

>> Será que os macacos sabem fazer contas? Quando foi que se começou a fazer contas e a explorar a questão da matemática? Quando foi que se começou a abstrair em termos de ideias matemáticas? Se tudo não passar de suposições, como sabemos que não estaremos a supor errado?


que razões há para pensar que as constantes da natureza são contingentes?

>> As constantes da natureza nao sao contingentes. Mas isto nao quer dizer que o que as iniciou sejam.

É falacioso este argumento todo pois partiu de um ser inteligente. Para chegar a ser inteligente, teve de aprender, teve de lhe ser dito o que era constante e o que não era.
A tendência pós-modernista é fundir tudo, relativizar tudo com tudo, mesmo que o que é relativo não o seja realmente. Exemplo: se A é relativo a B, então C deve estar relativamente a seguir a A e B dado que no alfabeto, este vem a seguir a estas letras. Ora, para chegar a isto, terá-se de ensinar o alfabeto, que por sua vez não tem relação com nada, pois foi criado. Ora, nenhum outro ser seria capaz disto. E porque ninguém conseguiu explicar a tamanha complexidade na evolução dos seres anteriores para o homem, este só pode ter sido criado por Deus e portanto, Deus é preciso para explicar as leis fundamentais do universo.

Desidério Murcho disse...

Caro Ricardo

Se existe ou não um multiverso, isso é irrelevante para a questão do princípio antrópico -- a não ser que variem as constantes da física nos diferentes universos. Pois se não variarem, os defensores do princípio antrópico irão pedir uma explicação para o facto de tais constantes permitirem a vida, e argumentarão que a permitem porque Deus assim o quis -- presumindo por isso que tais constantes são contingentes.

As equações e demonstrações matemáticas não estão acima da argumentação: na realidade, são tipos muito específicos de argumentação. Um bom argumento a favor de existir um multiverso é haver modelos físicos e matemáticos de tal coisa, que explicam adequadamente determinadas observações que não podem ser adequadamente explicadas de outros modos. Chama-se a isto argumento a favor da melhor explicação, a que por vezes também se chama abdução.

O que dá a sensação aos cientistas quotidianos de que estão para lá da argumentação é o facto de usarem apenas argumentos muitíssimo simples, exclusivamente baseados na complexidade matemática e física, mas muito simples enquanto argumentos (geralmente, não mais do que meros modus ponens e modus tollens). Só os cientistas inovadores usam argumentos mais sofisticados.

A minha argumentação não é sobre palavras, mas sobre coisas. Mas uso palavras, pois é uma prática corrente usar palavras para falar de coisas. Contudo, também posso usar muitos símbolos lógicos, o que dá logo um ar de falsa seriedade científica, para impressionar papalvos.

Victor Alves disse...

Execelente blog. Sempre gostei de discussões interdisciplinares. Algo difícil de conseguir hoje-em- dia, pois as pessoas vivem agarradas àquilo que fazem e ignoram as outras ciências.

no name disse...

"...Se existe ou não um multiverso, isso é irrelevante para a questão do princípio antrópico -- a não ser que variem as constantes da física nos diferentes universos..."

bom, isto é falso: podem haver condições iniciais excepcionais que também impeçam o surgimento da vida. se o universo for mesmo espacialmente plano (como as medições indicam), então existe um universo no multiverso onde isso se acontece.

"...os defensores do princípio antrópico irão pedir uma explicação para o facto de tais constantes permitirem a vida, e argumentarão que a permitem porque Deus assim o quis..."

como já disse, só fará essa interpretação quem não percebe o que se quer dizer por "princípio antrópico" em ciência. mais uma vez, a ser realizado o multiverso, isso será;, possívelmente, a definitiva prova física da impossibilidade do design.

"...As equações e demonstrações matemáticas não estão acima da argumentação:..."

bom aqui não concordo. e não quero dizer que não possa re-escrever o texto todo utilizando quantificadores de lógica; o ponto não é esse. muito pelo contrário, o ponto é que muitas vezes muitas equações guardam nelas muitas mais ideias do que as palavras nos permitem alcançar.

Desidério Murcho disse...

Caro Ricardo

Parece que não me fiz compreender claramente. Vejamos: o princípio antrópico baseia-se na ideia de que carecemos de uma explicação para o facto de o universo ser como é, tão afinado para a vida inteligente. A resposta do multiverso aceita que carecemos de tal explicação se só houver este universo, mas adianta que há um número infinito de universos que esgotam todas as possibilidades lógicas.

Esta resposta aceita o argumento fundamental do princípio antrópico e das teorias do design inteligente. Esse argumento é o seguinte: porque as leis e as condições iniciais do universo são logicamente contingentes, são contingentes.

O que eu mostrei no meu post, aparentemente sem me conseguir infelizmente fazer entender, é que este argumento, que é o ponto de partida de toda a discussão, é falacioso. Logo, mesmo que se prove um dia que o multiverso não existe, o argumento antrópico e do design inteligente continua a ser falacioso.

Quanto ao resto, dizer que uma equação guarda mais ideias do que as palavras permitem alcançar é só uma maneira não muito feliz de dizer que por vezes não compreendemos claramente as próprias equações que temos razões para acreditar que são verdadeiras. Mas isto nada tem a ver com a superação da argumentação por via das equações. A argumentação é o fundo rochoso insusceptível de ser ultrapassado, excepto artificiosamente -- pela força da autoridade, pelo silenciamento do pensamento ou pela automutilação intelectual. De todas, prefiro a última, pois tem a vantagem de não impor aos outros o obscurantismo -- seja o obscurantismo da Palavra de Deus seja o da Equação Inefável.

:: rui :: disse...

O pós-modernismo expressa-se de muitas formas, sendo que uma delas é a assertividade. E atrás dela, vem a sofisticação da assertividade. Deus sabe apanhar as pessoas exactamente onde elas não esperariam ser apanhadas. Talvez por isso, as coisas sejam bem mais simples do que parecem - e exactamente para quem não vê que assim seja.

no name disse...

não sei se é uma falha de comunicação ou não, mas tentemos outra vez! :-)

o princípio antrópico, tal como é entendido em ciência, diz-nos apenas o seguinte: podem existir parametros do nosso universo que não são determinados por nenhuma equação. nesse caso, a razão pela qual os medimos é tão simplesmente porque neste canto nos encontramos para os medir. é o mesmo caso do raio da terra, ou do tamanho da órbita da terra: medimos o que medimos porque aqui estamos, não porque exista qualquer equação que os determine.

esta frase nada tem de errada ou anti-científica ou mística. e é natural que também possa ter pouco a ver com outras interpretações do princípio antrópico (de cariz mais metafísico, fora de um contexto de estudo da física no multiverso). mas, parece-me a mim, é bastante importante diferenciar as coisas, e separar "princípios antrópicos místicos" de "princípios antrópicos científicos"!

(também, como já referi, a física no multiverso arruma de vez com qualquer hipótese de deuses e outras idiotices místicas)

neste contexto é importante, em ciência, saber quais constantes da natureza são determinados por soluções das nossas equações e quais não são (quais são os parametros "ambientais"). e, volto a dizer, não há argumento que contrarie as medições! os resultados do WMAP3 parecem ser bastante definitivos em relação à existência do multiverso das condições iniciais (enquanto que algumas teorias de gravitação quântica parecem indicar como algo provável um multiverso de certas constantes da natureza --- aquelas que são moduli do espaço de vácuos).

quanto a:

"...Quanto ao resto, dizer que uma equação guarda mais ideias do que as palavras permitem alcançar é só uma maneira não muito feliz de dizer que por vezes não compreendemos claramente as próprias equações que temos razões para acreditar que são verdadeiras..."

lamento, mas é falso! ou, então, temos outro problema de comunicção :-)

as equações de einstein, por exemplo, guardam muitas surpresas que só com a sua exploração conseguimos aprender. nenhuma argumentação sobre gravitação nos teria levado a muitos conceitos fundamentais de física moderna sem realmente estudarmos com atenção e cuidado as soluções dessas equações!

um exemplo claro e recente neste sentido está relacionado com a "interpretação" da mecânica quântica. os físicos do princípio do século escolheram a via de copenhaga "shut up and compute" com um sucesso inegável. ao mesmo tempo, muitos argumentos foram debatidos ao longo dos anos sobre as "implicações filosóficas" das diversas interpretações da mecânica quântica, produzindo barbaridades científicas sem limite (até tempos recentes: lembro-me de uma conferência em boston em meados da década de 90 onde a parvoíce dita e incomprensão da mecânica quântica, por parte das pessoas que apenas se ficavam pelos "argumentos", não tinham limite).

hoje a via das equações provou a sua superioridade para atingir este fim: temos uma descrição a caminho de ser bastante completa de todos os aspectos da mecânica quântica, fazendo uso das ideias de decoerência. décadas de argumentação nem lá perto chegaram.

com isto não quero dizer que os argumentos de nada serviam; óbvio que não!! apenas quero dizer que, muitas vezes, é útil conhecer as equações e aprender a estudá-las, antes de decidir argumentar sobre certas coisas...

Palmira F. da Silva disse...

Olá ricardo:

Acho que é mesmo falha de comunicação :)

Pensei que tinha ficado claro que apenas nos referíamos ao princípio antrópico como apropriado pelos «homens da ressurreição». Aliás, o primeiro link que incluí no meu post, para o livro Anthropic Bias: Observation Selection Effects in Science and Philosophy do Nick Bostrom, faz exactamente a distinção que tu fazes :) e refere como nós os vários princípios antrópicos «criacionistas».

no name disse...

ok,óptimo! então parece que nos entendemos :-) o que acho mesmo importante salientar é que quando se argumenta antrópicamente em ciência (e, logo, se tem razõs para diferenciar parametros caluláveis de parametros ambientais) não estamos a ser criacionistas, mas muito pelo contrário, estamos a dar o golpe fatal em qualquer ideia criacionista!

:: rui :: disse...

Desidério, explica-me por favor de que modo é que as leis iniciais do universo são logicamente contingentes.

Vitor Guerreiro disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Desidério Murcho disse...

Caro Ricardo

Argumentar é apenas defender ideias com razões. A argumentação pode 1) ser em si pior ou melhor e pode 2) ser baseada em melhor ou pior informação. O Ricardo parece sugerir que quando se domina as equações cessa a argumentação, mas isto é falso. Quando se dominam as equações — ou quando se domina qualquer área científica — apenas passamos a argumentar numa base mais sólida. E, desejavelmente, as pessoas não deviam discutir assuntos que não dominam, pois por melhor que saibam argumentar podem partir de premissas mal compreendidas e mal interpretadas. Mas a argumentação está sempre presente; a diferença é só se é uma argumentação informada, como é desejável, ou ignorante. A única circunstância em que cessa a argumentação é quando já sabemos tudo o que queríamos saber. Mas isso nada tem a ver com o domínio de equações, pois podemos dominar o formalismo matemático de uma disciplina e não compreender cabalmente o que tal formalismo realmente significa.

O princípio antrópico, tal como o formula, é equivalente ao que eu disse, mas formulado de modo mais confuso: "podem existir parametros do nosso universo que não são determinados por nenhuma equação. nesse caso, a razão pela qual os medimos é tão simplesmente porque neste canto nos encontramos para os medir." Isto é uma maneira confusa de dizer que é logicamente contingente que tais parâmetros sejam o que são, apesar de obviamente em todos os universos em que nós existimos tais parâmetros têm de ser tais que permitam a nossa existência. Ora, é precisamente assim que se usa o princípio para argumentar a favor de Deus, pois declara-se que do facto de tais parâmetros serem logicamente contingentes segue-se que são metafisicamente contingentes e logo tem de haver uma explicação da razão pela qual são como são. O meu argumento o que mostra é que ainda falta provar que tais parâmetros, só porque são logicamente contingentes (na sua terminologia, não resultam directamente de nenhuma equação verdadeira conhecida sobre o universo) são realmente contingentes.

no name disse...

"...O Ricardo parece sugerir que quando se domina as equações cessa a argumentação, mas isto é falso..."

não seria isso que eu queria dizer, concordo que é falso. o que eu queria dizer é que, em ciência quantitativa, sem dominar as equações os argumentos em geral de pouco ou nada servem. precisamente uma parte delicada do processo de investigação é saber colocar em forma de equação as ideias formuladas. depois, perceber o que as equações nos dizem é fundamental para poder argumentar numa direcção ou noutra. sem sequer olhar para elas, argumentos por si só pouco conteúdo têm --- era isto que eu queria dizer, naturalmente.

"...do facto de tais parâmetros serem logicamente contingentes segue-se que são metafisicamente contingentes e logo tem de haver uma explicação da razão pela qual são como são..."

de facto deve haver uma falha de comunicação neste ponto... se todos os parametros possíveis são realizados, não existe explicação nenhuma para serem como são (inclusivé, um conjunto tem menos informação que um elemento do dado conjunto...).

quanto a decidir quais parametros são ambientais e quais são calculáveis, isso só saberemos continuando a explorar as equações da gravitação quântica :-)

Desidério Murcho disse...

Caro Ricardo:

“de facto deve haver uma falha de comunicação neste ponto... se todos os parametros possíveis são realizados, não existe explicação nenhuma para serem como são (inclusivé, um conjunto tem menos informação que um elemento do dado conjunto...).”

Espero conseguir explicar agora a falha de comunicação. Postular a ideia de que todos os parâmetros LOGICAMENTE possíveis são realizados é pressupor que pelo facto de certos parâmetros não serem LOGICAMENTE necessários se segue que são metafisicamente necessários. Postula-se e procura-se o multiverso partido da aceitação de um argumento falacioso, o argumento seguinte: Certos parâmetros são logicamente contingentes; logo, são metafisicamente contingentes. O que eu mostrei no meu post é que não precisamos sequer de aceitar isto.

Por outras palavras: imagine que se prova fisicamente, sem sombra de dúvidas, que o multiverso é uma fantasia e que não existe tal coisa. Significa isso que temos de explicar por que razão certos parâmetros são como são? Não. Pois só teríamos de explicar tal coisa se aceitássemos que tais parâmetros poderiam ser diferentes do que são. Ora, o único argumento a favor de tal ideia é uma falácia. Logo, não temos de aceitar tal ideia.

Espero agora ter sido claro.

no name disse...

sim sim, eu percebo o argumento. só que não concordo. nem eu nem milhares de físicos por todo o mundo!! :-) descrevemos tudo o que conhecemos com cerca de 30 parametros livres, mas ninguém acha que isso seja um estado satisfatório da física. precisamente grande parte da história da física teórica passa por explicar porque certos parametros são que são, e isso tem sido feito com algum sucesso (restam cerca de 30!). se pensásemos o contrário, penso que não haveria razão para quase 4 décadas de estudo de teorias de unificação... :-)

Filosórfico disse...

Não sendo filósofo, ao contrário do que poderá sugerir o meu nome de usuário, gosto de raciocínios claros.
Ora, parece-me que o exemplo apresentado com referência ao Sócrates é desajustado.

A premissa “Não é logicamente impossível que Sócrates não seja um ser humano” não admite paralelismo com “Não é logicamente impossível que o Sol não nasça amanhã”.

De facto, naquela pimeira proposição – ao contrário do que sucede na segunda – está a afirmar-se que não é logicamente impossível que alguma coisa seja diversa daquilo que é.

Asserção tão inadmissível como se disséssemos: “Não é logicamente impossível que o Sol seja a Lua”...

Cumprimentos
Filosórfico

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