terça-feira, 19 de junho de 2007
BIOLOGIA E LITERATURA
Minha recensão saída no "Primeiro de Janeiro" de ontem:
Pouca gente sabe que o escritor moçambicano Mia Couto é biólogo (e há muita gente que não sabe que, apesar do nome, Mia, trata-se de um escritor e não de uma escritora). Pois foi essa dupla qualidade de escritor e de biólogo que lhe valeu o chamamento pelo biólogo Amadeu Soares, da Universidade de Aveiro, em 2006, para falar nos encontros “Biologias na Noite”, encontros abertos realizados, como o próprio nome indica, em horário nocturno no Centro Cultural e de Congressos da Câmara Municipal de Aveiro (antiga fábrica de cerâmica).
Mia Couto não podia deixar de fazer uma intervenção que cruzava a biologia com a literatura, a ciência com a arte. O seu belo texto encontra-se desde há pouco à disposição de todos como capítulo 1 do livro “Biologias na Noite”, que é o número 2 da colecção “Biologicando”, das Edições Afrontamento do Porto (em colaboração com o Departamento de Biologia da Universidade de Aveiro).
Há quem diga que há duas culturas, como duas margens do mesmo rio separadas por uma corrente difícil de passar. Mia Couto vem-nos dizer que há, afinal, apenas um rio. O seu escrito intitula-se “Mitos e pecados de uma indisciplina científica” e subintitula-se “Rios, cobras e camisas de dormir”. Lá está: o rio aparece destacado. Conclui ele, depois de aduzir argumentos tanto científicos como literários:
“Afinal, a ciência e a arte são como margens de um mesmo rio. A Biologia não é diurna nem nocturna se não se assumir como autora de uma espantosa narração que é o relato da Evolução da Vida. Podem ter certeza que essa é história tão extraordinária que só pode ser escrita juntando o rigor da ciência ao fulgor da arte. (...) Poesia e ciência são entidades que não se podem confundir; mas elas podem e devem deitar-se na mesma cama. E quando o fizerem espero bem que dispam as velhas camisas de dormir”.
Está explicada agora, tanto como o “rio”, a “camisa de dormir” do subtítulo. Esclarece o escritor (ou o cientista?) que essas camisas são uma espécie de fóssil de tempos idos: “[No Renascimento] os casais estavam proibidos de dormir nus. As camisas de noite que ainda hoje conhecemos não são apenas uma peça de vestuário. São também uma herança das cruzadas puritanas contra os pecados do corpo e da paixão”. Só falta explicar as “cobras” do surpreendente subtítulo (por mim acho-o tão interessante que teria trocado o título com o subtítulo: pois só um escritor poderia associar rios, cobras e camisas de dormir). As cobras, ou melhor, uma cobra aparece numa divertida mas verídica história moçambicana, do Dondo (perto da Beira, terra natal do escritor), que o autor contou oralmente à audiência da noite aveirense e agora em livro a todos nós. Constou que havia uma cobra, uma perigosa mamba preta, escondida no edifício da Administração do Dombo. Falava-se em vítimas. E constava que a cobra cantava o hino nacional moçambicano, mantendo toda a gente em patriótico respeito. Uma coisa fantástica, digna das melhores páginas do Gabriel Garcia Marquez. Até que foi chamado um cientista que explicou ao povo o que era uma mamba preta, de acordo com os mais modernos ensinamentos da biologia. Que ela não era tão perigosa assim. E que não podia cantar o hino. Etc., etc. No final da prelecção, as pessoas agradeceram ao biólogo: “Gostámos muito do que nos mostrou, só é pena que não tenha falado desta cobra”. Resposta pronta: “Como não falei? Então não falei da mamba negra?”. Réplica do outro lado: “Falou sim, mas não é esta”. Depois de instalada a confusão, o biólogo pediu um esclarecimento derradeiro: “Digam-me só uma coisa: isto que têm aqui é realmente uma cobra?”. Resposta final: “Quase é, doutor”.
Mia Couto pega nesta fantástica história e diz que quase é escritor e que quase é biólogo. Porque, tal como nos mitos africanos, as coisas para ele não têm necessariamente de ser ou não ser. O dia não está completamente separado da noite. A biologia não está apartada da literatura. E aduz:
“A verdade é que para mim não existe conflito. Pelo contrário, hoje não sei como poderia ser escritor caso eu não fosse biólogo. E vice-versa. Nenhuma das actividades me basta O que alimenta é o diálogo, a intersecção entre os dois saberes. O que me dá prazer é percorrer como um equilibrista essa linha de fronteira entre pensamento e sensibilidade, entre inteligência e intuição, entre poesia e saber científico”.
Repare-se como o escritor, no último termo da enumeração, troca a ordem que esperaríamos, colocando a poesia antes do saber científico, ligando-a ao pensamento e à inteligência. É como se a ordem não interessasse grande coisa. Como se a ordem fosse arbitrária. Como se verdade e beleza fossem intercambiáveis. São-no? Vários escritores e e vários cientistas já afirmaram que sim. O verdadeiro é belo e o belo é verdadeiro. “Beauty is truth”, disse um dia o poeta romântico inglês John Keats. Mais precisamente ele deixou-nos, no final de “Ode on a Grecian Urn” (escrita em 1819), estes dois versos, que têm sido intensivamente discutidos e glosados: “Beauty is truth, truth beauty, - that is all / Ye know on earth, and all ye need to know”. Em 1954, muito perto do fim da sua vida, o físico Albert Einstein confessou: “The ideals which have lighted my way, and time after time have given me new courage to face life cheerfully, have been Kindness, Beauty and Truth.”
Pois Mia Couto une Keats e Einstein, explanando qual é para ele a relação entre verdade e beleza. Aqui está mais um belo excerto de “Rios, cobras e camisas de dormir”:
“Um dos princípios que nos guiam estabelece que as ciências se ocupam de verdades e não de beleza. Essa parede divisória foi muitas vezes violada. Quem ergueu essa parede divisória não saberá da aptidão para ser feliz. Em rigor, não existem coisas belas. Para ser bela a coisa deixa de ser coisa. Passa a ser parte da Vida. Porque ela só é bela enquanto produtora de beleza. Só é bela enquanto nos fala e nos acende secretamente um sentimento de parentesco”.
Espero que o leitor tenha ficado seduzido pela prosa de Mia Couto e queira ler o seu texto na totalidade. Se o fizer, talvez continue lendo para diante. Encontrará uma colecção de textos das várias conferências de “Biologias na Noite”. Carlos Almaça, António Amorim e Vítor Madeira falam de diferentes aspectos da teoria da evolução, a grande unificação que Darwin conseguiu fazer para os fenómenos da vida. O fenómeno, que está na base da vida, da reprodução, é abordado por João Ramalho Santos e Mário Sousa (títulos curiosos os dois, respectivamente “Algumas narrativas reprodutíveis” e “Manual do casal infértil”). Ecologia, conservação e biodiversidade são os temas que surgem a seguir pela pena de José Alho, Jorge Paiva e Jorge Ferrão. António Correia fala depois das aplicações práticas da moderna microbiologia (o título não fica atrás dos anteriores, misturando dois títulos de revistas nos antípodas uma da outra, mas que estão intimamente ligadas, pois os produtos de beleza vêm afinal dos laboratórios de ciência: “Da Science à Caras”). Por último, este escriba fala de nanotecnologia e das relações entre física e biologia e Arsélio Pato de Carvalho oferece-nos a sua visão sábia e integradora sobre os ensinamentos da biologia. O professor da Universidade de Coimbra cita o biólogo francês François Jacob, que em “O ratinho, a mosca e o homem” (Gradiva, 1997) diz que “somos uma terrível mistura de ácidos nucleicos e de recordações, de desejos e de proteínas”. Comenta Pato de Carvalho, na linha de Mia Couto:
“Até aqui, a ciência ocupou-se principalmente com as proteínas e com os ácidos nucleicos e foram estas moléculas que determinaram a nossa evolução. Neste século, a ciência vai concentrar-se nas recordações e nos desejos. É nas recordações e nos desejos que reside o grande desafio do ser humano.”
- Amadeu Soares (coordenação), “Biologias na Noite”, Afrontamento, 2007.
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1 comentário:
"do Tempo"
"Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente por fora. A das emoções sei também que é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.
Julgo, às vezes, que tudo é falso, e que o tempo não é mais que uma moldura para enquadrar o que lhe é estranho. Na recordação que tenho da minha vida passada, os tempos estão dispostos em níveis e planos absurdos, sendo eu mais jovem em certo episódio dos quinze anos solenes que em outro da infância sentada entre brinquedos.
Emaranha-se-me a consciência se penso nestas coisas. Pressinto um erro em tudo isto; nâo sei, porém, de que lado está. É como se assistise a uma sorte de prestidigitação, onde, por ser tal, me soubesse enganado, porém não concebesse qual a técnica, ou a mecânica, do engano.
Chegam-me, então, pensamentos absurdos, que não consigo todavia repelir como absurdos de todo. Penso se um homem que medita devagar dentro de um carro que segue depressa está indo depressa ou devagar. Penso se serâo iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada. Penso se são realmente sincrónicos os movimentos, que ocupam o mesmo tempo, em os quais fumo um cigarro, escrevo este trecho e penso obscuramente..."
Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, 1ª Parte (organização de António Quadros,Publicações Europa América)
"Se o nosso tempo na terra for estabelecido em 240.000 anos e se imaginarmos que eses anos decorreram numa hora, nós passámos cinquenta e cinco minutos desse tempo na cultura do Paleolítico (Idade da Pedra)...
(...)há 5 segundos começou a Revolução Industrial; há 3 segundos e meio ele aprendeu a utilizar a electricidade; e o tempo há que ele tem o automóvel é menos do que o intervalo entre os tiques de um relógio, i.e. menos de um segundo."
William D. Wallis, citado em Charles R. Walken, Modern Technology and Civilization (McGraw-Hill, 1962).
O diálogo das 2 culturas é profícuo e indispensável à marcha da Humanidade, portanto.
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