sábado, 2 de junho de 2007
COIMBRA E A CIÊNCIA EUROPEIA NO SÉCULO XIX
Texto em colaboração com Décio Ruivo Martins que continua os anteriores intitulados "Coimbra e a génese da ciência moderna". As acções aqui descrita iniciam-se em 1807, com a partida da família real para o Brasil (faz este ano 200 anos). Na figura, Andrada e Silva, o luso-brasileiro descobridor do minério do lítio.
Portugal foi bastante marcado pelas grandes transformações sociais e políticas observadas em França, com a Revolução Francesa, em finais do século XVIII. As invasões francesas obrigaram a corte do Regente D. João, futuro rei D. João VI, a refugiar-se em 1807 na cidade do Rio de Janeiro, no Brasil, uma transferência que não foi alheia à independência do Brasil, proclamada no dia 7 de Setembro de 1822, junto às margens do Ipiranga, em São Paulo, por D. Pedro, filho de D. João VI.
Também na Universidade de Coimbra se fizeram sentir as mudanças introduzidas então no ensino e que se generalizaram na Europa durante o século XIX. O modelo de ensino na Escola Politécnica de Paris viria a constituir uma das mais importantes referências em Coimbra ao longo deste século. Por outro lado, no final desse século, a organização universitária na Europa viu se obrigada a grandes reformas de organização, sendo paradigmático o caso da Universidade de Berlim, fundada pelo alemão Wilhelm von Humboldt, em 1810, que foi considerada a “mãe das universidades modernas”. Tratava se, com efeito, de um centro aberto à investigação científica como trabalho complementar ou mesmo autónomo da docência universitária. Várias viagens científicas de alguns professores de Coimbra a diversos centros universitários europeus reflectiram-se na evolução do ensino em Portugal durante todo o século XIX e também na organização, ainda que débil, de algum trabalho de investigação.
Na primeira metade do século XIX concretizaram-se na Universidade de Coimbra algumas reformas curriculares (sendo as mais importantes as de 1801, 1836 e 1844, as duas últimas já influenciadas pela Revolução Liberal de 1830), da iniciativa do claustro universitário, como necessidade de melhor ajustamento ao desenvolvimento científico na Europa. No entanto, apesar das sucessivas reformas tendentes à actualização dos conteúdos científicos dos programas, não se pode dizer que Coimbra tenha sido palco de descobertas ou desenvolvimentos relevantes à escala europeia. A partir de 1836/1837, com a fundação da Escola Politécnica de Lisboa e da Academia Politécnica do Porto, imbuídas do espírito do liberalismo, a Universidade de Coimbra passou a ter concorrência a nível de estudos superiores. A relação de Coimbra com essas novas escolas não foi simples nem pacífica. Alguns críticos da velha universidade afirmaram que os métodos de ensino coimbrão continuavam a assentar na erudição livresca e nas lições magistrais e, consequentemente, não eram mais do que um repositório de uma ciência desligada das novas realidades científicas e técnicas. Coimbra era acusada de ser fábrica de homens políticos, normalmente formados em Direito ou Medicina, que perseguiam os graus académicos para conquistar posições proeminentes na sociedade.
Contudo, depois da Reforma Pombalina da Universidade de Coimbra, foi no ano de 1791 que se verificou a primeira alteração do plano de estudos na Faculdade de Filosofia. Com efeito, foi criada nesse ano a cadeira de Botânica e Agricultura para substituir a de Filosofia Racional, que os estatutos pombalinos haviam colocado no primeiro ano do Curso Filosófico. Para reger a nova cadeira de Botânica foi nomeado Félix de Avelar Brotero, que por carta régia se graduou gratuitamente e entrou na corporação de professores da Faculdade de Filosofia. Brotero havia estudado no Colégio dos Religiosos Arrábicos de Mafra, tendo posteriormente concorrido ao lugar de capelão cantor da Igreja Patriarcal de Lisboa. Emigrou para França na companhia do poeta Francisco Manuel do Nascimento, mais conhecido pelo pseudónimo de Filintio Elísio. A sua estada na capital francesa permitiu lhe conviver com os mais eminentes naturalistas franceses da época, especialmente com Georges-Louis Leclerc (Conde de Buffon), Georges Cuvier e Jean Baptiste Lamark. Doutorou se em Medicina na Universidade de Reims. Depois do seu regresso a Portugal, foi nomeado professor da Faculdade de Filosofia, tendo sido determinante a sua intervenção para reformar o plano de estudos que levou à criação da cadeira de Botânica e Agricultura.
Brotero foi membro de diversas academias científicas, entre as quais a Sociedade de Horticultura de Londres e a Lineana de História Natural da mesma cidade; a Academia Real das Ciências de Lisboa, de História Natural e Filomática de Paris; Fisiográfica de Lund na Suécia; de História Natural de Rostock, na Alemanha, e Cesareia de Bona, também na Alemanha. Entre os vários trabalhos que publicou citem-se, a título de exemplo, os seguintes: Compêndio de Botânica, ou Noções Elementares desta Ciência, segundo os melhores Escritores Modernos, espostas na Língua Portuguesa (Paris, 1788); Flora Lusitanica: seu plantarum, quae in Lusitania vel sponte crescunt (Lisboa, 1804); Phytographia Lusitaniae selectior... (Lisboa, 1816-1827); e Compêndio de botânica: addicionado e posto em harmonia com os conhecimentos actuais desta ciência, segundo os botânicos mais célebres... (Lisboa, 1837-1839). Também publicou diversos trabalhos nas Transactions of the Linnean Society de Londres. Autor de vasta obra, Brotero foi talvez o mais proeminente cientista português do século XIX.
No Gabinete de Física Experimental, o italiano António Dalla Bella foi substituído em 1791 pelo português Constantino Botelho de Lacerda Lobo, que foi pela primeira vez nomeado demonstrador de Física em 1781/1782. Entre 1785 e 1790 alternou com Teotónio Brandão e Ribeiro de Paiva na docência da cadeira de Física. Botelho de Lacerda Lobo, mostrando assídua aplicação e elevada inteligência foi em 1778, tal como Brotero, graduado gratuitamente. Passados treze anos foi nomeado Lente Proprietário de Física Experimental, tendo falecido em 1820 antes de se jubilar. Em 1807 a Congregação da Faculdade de Filosofia reuniu na sala do Gabinete de Física, deliberando que para o aumento do Gabinete de Física se mandem modelar algumas máquinas, que de modo importante são empregadas nos usos das Artes. Durante a sua direcção o Gabinete sofreu uma perda irreparável. Com efeito, por ocasião da terceira invasão francesa, o exército de Massena entrou em Coimbra no dia 30 de Setembro de 1810. Passados dois dias foram levados pelos invasores um óculo astronómico, um óculo de Galileu e dois magníficos microscópios que tinham sido comprados em Inglaterra. Para além da sua dedicação ao ensino da Física, Lacerda também se interessou pelos assuntos de agricultura, publicando várias obras sobre esse assunto em periódicos como o Investigador Português, Jornal de Coimbra e as Memórias da Academia das Ciências. Tornou se notável por ter descoberto um novo modo de aplicar a força do vapor ao movimento das máquinas. Uma memória sobre este invento foi lida em sessão pública da Academia das Ciências de Lisboa realizada em Janeiro de 1805. No último parágrafo queixava se de que a glória da sua invenção lhe fosse roubada por Verzy, que, arrogando a si a autoria da descoberta, a propusera ao Ministro do Interior francês, tendo obtido os fundos indispensáveis para fazer experiências em ponto grande. A descrição da máquina veio no Jornal de Coimbra, de Abril de 1812, acompanhada por estampas. Botelho de Lacerda não mandou imprimir os seus trabalhos, tendo as muitas memórias que escreveu sido publicadas em vários jornais e em revistas científicas.
Andrada e Silva e a descoberta de um novo elemento químico
Fundados os estudos das ciências naturais, houve que recrutar, entre os seus mais destacados estudantes, aqueles que no futuro viriam a ser docentes da Universidade. Como exemplo de estudantes formados na academia coimbrã, após a reforma pombalina, teve especial relevo, para além de Vicente Coelho Seabra, uma outra figura oriunda do Brasil e que viria a revelar-se proeminente no processo da independência do Brasil: José Bonifácio de Andrada e Silva.
Andrada e Silva formou-se em Filosofia Natural e Direito Canónico, em 1787 e em 1788, respectivamente. Após a conclusão dos seus estudos em Coimbra, iniciou, em 1790, na companhia de outro brasileiro, Manuel de Araújo Câmara, e do português Joaquim Fragoso Sequeira, um período de estadas nos grandes centros científicos da Europa que se prolongou até 1800. Durante este período trabalhou ou conheceu os melhores institutos da França, Itália, Alemanha, Dinamarca, Holanda, Suécia, Grã-Bretanha, etc. Não admira por isso que tenha sido eleito membro das Academias de Estocolmo, Copenhaga, Turim, da Sociedade dos Investigadores da Natureza de Berlim, das Sociedades de História Natural e Filomática de Paris, da Sociedade Geológica de Londres, Werneriana de Edimburgo, Mineralógica e Lineana de Jena, Filosófica de Filadélfia, etc. Foi ainda membro da Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro.
Na capital francesa teve por mestres nos seus estudos de Química os continuadores de Lavoisier – Jean-Antoine Chaptal e Antoine-François Fourcroy. Estudou Botânica com Antoine-Laurent de Jussieu. Foi discípulo de René Just Haüy, o fundador da Mineralogia em França, aprendendo com ele Cristalografia e Mineralogia. Os seus conhecimentos em Metalurgia foram aprofundados sob a supervisão de Balthazar-Georges Sage, que, na época, era o director da Escola de Minas de Paris. Este naturalista, reconhecendo a competência científica de Andrada e Silva, incitou-o a prosseguir a sua peregrinação europeia. Na Escola de Minas de Freiburg foi discípulo de Abraham Gottlob Werner, o mentor do neptunismo, teoria segundo a qual as rochas da crosta terrestre se tinham formado por cristalização num mar universal que cobriu toda a Terra. Nessa mesma escola, Andrada e Silva foi colega do famoso naturalista Alexander Von Humboldt, o autor de Kosmos e irmão mais novo de Wilhelm Humboldt.
Após dez anos de intensa actividade científica por toda a Europa, regressou a Coimbra, dedicando-se ao ensino da Metalurgia. Paralelamente à sua actividade docente, desempenhou o cargo de Intendente Geral de Minas e Metais do Reino. Foi também Administrador das minas de carvão de Buarcos e de S. Pedro da Cova e das Reais Ferrarias da Foz de Alge, situadas num afluente do Rio Zêzere. Exerceu o cargo de Director do Laboratório de Docimasia da Casa da Moeda em Lisboa, onde se determinava a proporção em que os metais estavam contidos nos minérios. Foi ainda da sua responsabilidade a criação de um laboratório destinado ao apoio de prospectores mineiros em Portugal e no Brasil.
O seu nome, juntamente com o dos químicos suecos Jöns Jakob Berzelius e Johan August Arfwedson, e ainda o do francês Claude Louis Berthollet, está associado à descoberta do elemento químico lítio, o terceiro da Tabela Periódica, depois do hidrogénio e do hélio. Com efeito, foi a partir dos trabalhos publicados por estes químicos que em 1818 outro grande químico, Humphry Davy, em Inglaterra, aplicou a recém-descoberta técnica da electrólise para isolar o novo elemento, a que deu o nome de lítio, do grego lithos (pedra). Andrada e Silva anunciou a descoberta de 12 novos minerais, quatro novas espécies e oito variedades de espécies conhecidas num artigo da revista alemã Allgemeines Journal der Chemie, publicada em 1800 em Leipzig, Entre os minerais descritos estavam a petalita e o espoduménio, que são aluminossilicatos de lítio. O artigo tinha por título (traduzido para português): Exposição sucinta das características e das propriedades de vários minerais novos da Suécia e da Noruega, com algumas observações químicas sobre os mesmos. A importância deste trabalho justificou a sua publicação em inglês no Journal of Natural Phylosophy, Chemistry and the Arts (1801) e em francês no Journal de Physique, de Chimie, d’Histoire Naturelle et des Arts (1800). Hoje em dia uma Galeria de Minerais, cuja origem remonta à época pombalina, no Departamento de Ciências da Terra da Universidade de Coimbra tem o nome de Andrada e Silva.
O Laboratório Químico e as invasões francesas
As invasões francesas foram um factor de grande instabilidade no funcionamento da instituição universitária. Alguns professores da Faculdade de Filosofia prestaram relevantes serviços para a defesa contra os franceses. Em 1808 vários estudantes da Academia de Coimbra alistaram se num batalhão que, sob o comando de Tristão Álvares da Costa, major de engenharia e lente de Cálculo, combateu os franceses. Por sua vez, os lentes formaram outra secção, capitaneada por Fernando Fragoso de Vasconcellos, primeiro lente da Faculdade de Cânones. O próprio Vice Reitor, Manuel de Aragão Trigoso, tinha sido chamado para ocupar o cargo de Governador-Geral da cidade. No ano lectivo de 1810/1811 a Universidade permaneceu encerrada. Neste período o Laboratório Químico desempenhou um papel fundamental na resistência contra a ocupação francesa. Foi transformado numa verdadeira fábrica de munições de guerra. O seu director, o químico Thomé Rodrigues Sobral, teve um desempenho notável na luta contra os invasores. Sob a sua orientação fabricou se uma grande quantidade de pólvora. Ainda hoje existe na Universidade de Coimbra o grande almofariz em pedra utilizado nesta tarefa. Este professor não só dirigia e organizava todo o grupo de trabalho no Laboratório Químico, como preparava com as suas próprias mãos as munições de guerra. Foi neste período que todo o arsenal armazenado no edifício do Laboratório Químico esteve na eminência de explodir. Ao deflagrar um incêndio, com o edifício repleto de barris de pólvora, valeu a serenidade de Rodrigues Sobral, que conseguiu evitar a catástrofe utilizando água de uma cisterna próxima. Em consequência do seu empenhamento na resistência, Sobral viu a sua casa destruída por um incêndio ateado pelos franceses. Neste incêndio ficaram irremediavelmente perdidos os seus preciosos manuscritos, bem como a excelente biblioteca que possuía, reunida ao longo de trinta anos. Entre os manuscritos destruídos perdeu se o Compêndio de Química que se preparava para publicar. Quando o exército francês chegou a Coimbra, uma das primeiras preocupações dos comandos militares foi o de saberem onde ficava a casa do mestre da pólvora, nome dado ao professor de Química pelos invasores. O resultado foi o bárbaro incêndio da sua casa na Quinta da Cheira. Mais tarde, reconhecendo o seu elevado empenho na defesa nacional, o governo português, por aviso régio de 1816, mandou reedificar as suas casas.
No Laboratório Químico também foram desenvolvidas acções muito úteis no domínio da saúde pública. Em Agosto de 1809 verificou-se aí intensa actividade para que fosse debelado o surto de peste que então ocorreu. Para o efeito assumiu particular importância a acção de Rodrigues Sobral. Com o objectivo de purificar a atmosfera, erradicando a epidemia, foram fabricados no Laboratório desinfectadores de cloro e ácido muriático oxigenado, que eram distribuídos gratuitamente por casas particulares, hospitais, cadeias e até pelas ruas. Em Outubro de 1813 foi publicado no Jornal de Coimbra um relatório pormenorizado de toda esta actividade.
Outro professor de Química que se distinguiu pelos seus estudos da composição da água foi Manoel José Barjona, na época em que também os britânicos James Watt e Henry Cavendish realizavam as suas primeiras experiências neste domínio. Foi durante as experiências de síntese da água, realizadas no Laboratório Químico, juntamente com Rodrigues Sobral, que Barjona foi vítima de uma violenta explosão do gasómetro, tendo ficado cego de um olho. Contribuindo para desenvolver o ensino das ciências, Barjona foi sempre um activo membro das Congregações da Faculdade. Em 1823 submeteu à aprovação do Conselho da Faculdade as suas Tábuas Mineralógicas, que viria a ter uma segunda edição em 1835. Já havia publicado em 1798 um compêndio intitulado Metallurgica Elementa (Elementos de Metalurgia).
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1 comentário:
Tenho gostado muito desta serie de posts sobre o ensino em Coimbra. Nao sabia que tinha contribuido assim tanto no campo da ciencia. E a pensar que o ensino la era so sobre anjos e metafisica.
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