quarta-feira, 13 de junho de 2007

Os Contos de Cantuária - medicina

Os quatro elementos e os humores: Bartholomeus Anglicus, livro IV De elementis, um dos dezanove livros integrantes do De proprietatibus rerum ou «O Livro das Propriedades das coisas», uma enciclopédia de ciência e teologia do século XIII, normalmente referida como um bestiário.

Os Contos de Cantuária denotam um ecletismo pouco comum para a época, para além de um indiscutível conhecimento da poética europeia, - podemos ver claramente traços da influência do «Decameron» de Boccaccio, da «Divina Comédia» de Dante e da lírica de Petrarca assim como dos poemas narrativos franceses. De facto, Chaucer mostra um conhecimento considerável sobre outras «artes» , como sejam medicina, ornitologia, alquimia ou astronomia, embora tenha incluído, numa tradução livre, o aforismo Ars longa, vita brevis no prólogo d'«O Parlamento das Aves»:


The lyf so short, the craft so long to lerne,
Th' assay so hard, so sharp the conquerynge
,
A vida tão curta, a arte tão longa de haver,
O ensaio tão duro, a vitória tão vã

Um dos exemplos deste ecletismo é o conto do médico, ou mais concretamente o prólogo, já que o conto é uma alegoria moral, notável pela forma não tanto pelo conteúdo, que nos conta a história de um homem que corta a cabeça da filha Virgínia (que representa a virgindade, a pureza cristã) para a salvar da concupiscência de Ápio, 0 libidinoso juiz. No prólogo, Chaucer apresenta com um minucioso poder de síntese a visão religiosa-sobrenatural da medicina predominante na época. O médico, um homem sem escrúpulos que enriqueceu à custa da peste, era fluente em medicina alicerçada em astronomia, a medicina «holística» inseparável de uma mundivisão mitológica e mágica em que se acreditava, por exemplo, que os corpos celestes podiam influenciar a saúde do Homem:


Connosco estava um médico também;
Em todo o mundo não existe alguém
Tão bom em medicina e cirurgia,
E alicerçado assim na astronomia.
Previa a hora propícia contra o mal
Pelo uso da magia natural.
Com firmeza traçava ele o ascendente
Dos amuletos para o seu paciente.
Via a causa de cada enfermidade
No frio, calor, secura ou humidade,
Onde nascia, e qual o seu humor;
Era um perfeito, um óptimo doutor.
Sabendo a fonte de onde o mal provinha,
Receitava ao enfermo sua mezinha,
Surgiam a seguir os boticários
Com suas drogas e remédios vários,
Pois a esta classe aquela classe obriga
Numa amizade já bastante antiga;
Seu Esculápio conhecia bem,
Rufus e Deiscórides também,
O velho Hipócrates, Ali, Galeno,
Serapião, Razis e Damasceno;
Avicena, Averróis e Constantino;
Bernardo e Gatesden e Gilbertino.
Tinha a dieta muito moderada,
Pois de supérfluo não comia nada,
Mas só alimento rico e digestivo.
Em ler a Bíblia parecia esquivo.
De vermelho e de azul vinha vestido;
De seda e tafetá era o tecido
Gastava o seu dinheiro com cuidado,
Guardando o que na peste havia lucrado.
Como o ouro entre os cordiais tem mais valia,
Ao ouro mais que tudo ele queria.


Influência dos 12 signos do zodíaco nos quatro elementos: fogo (vermelho), castanho (terra), azul (água) e verde (ar). Bartholomeus Anglicus.

A cosmologia medieval distinguia duas regiões do Universo, a esfera sublunar, que continha substâncias sujeitas à corrupção devido à incompatibilidade existente entre os quatro arqué - os elementos primordiais de Empedócles ainda aceites - (o fogo quente, o ar seco, a terra fria e a água húmida) que a constituiam. A segunda região, a esfera supralunar (ou celeste), era povoada pelos astros, pelos santos que estão na «Glória Eterna», os anjos e Deus. Acreditava-se que o mundo supralunar emitia fluidos que influenciavam o mundo sublunar e a saúde dos seus habitantes. A «vontade» de Deus e a vinda de adversidades podiam ser lidas nos signos do céu. Cometas e eclipses eram «maus presságios», uma forma de Deus anunciar catástrofes sortidas com que decidira mimosear a Terra e os homens.

De acordo com esta medicina «cosmológica» - que dominou, em Portugal inclusive, até pelo menos ao século XVI - os corpos superiores ou supralunares poderiam influenciar quer os arqué do mundo sublunar quer os «humores» humanos e imprimir doenças sortidas, sendo o ar o condutor entre as duas regiões do Universo.

Hildegard von Bingen*, abadessa do mosteiro beneditino de Disibodenberg, escreveu os únicos livros originais, embora com claras influências clássicas, de medicina na Europa do século XI, Physica e Causae et Curae (1150), - conhecidos como Liber subtilatum, Subtilezas da Natureza de Diversas Criaturas - assim como um livro de visões Scivias (Conhece os caminhos do Senhor) que recomenda a fé como caminho para a saúde.

Na Physica, são descritos os elementos da natureza, plantas ou minerais, que devem ser utilizados para a restituição do equilíbrio com Deus - e por conseguinte da saúde - e quais os que se devem evitar, nomeadamente na alimentação, já que «engendram humores maus». As descrições assentam na classificação do «temperamento» das plantas em quente ou frio, seco ou húmido. Na Causae et Curae, são descritas as doenças e a forma como os astros e os elementos da natureza as controlam. O livro inicia-se com uma visão cosmológica da humanidade e do mundo a que se segue a teoria dos humores. Segundo esta teoria, a saúde dependia de quatro «humores» do corpo humano - o sangue (húmido), a fleuma ( seco), a bílis (quente) e a atrabílis (fria) em permanente correspondência com os quatro elementos existentes (fogo, ar, terra e água) e com os astros celestes (os doze signos do Zodíaco). Um desequilíbrio da fleuma deveria ser tratado, tendo em atenção as conjunções astrais mais propícias, com o seu oposto, o sangue. Assim dever-se-ia escolher como tratamento uma planta com temperamento «húmido».

A teoria dos humores, proposta por Cláudio Galeno (129-199,) foi a base da medicina clássica e medieval. Os conceitos de Galeno sobre anatomia, fisiologia, higiene, dietética e terapêutica permaneceram como verdades inquestionáveis durante 14 séculos. Apenas no século XVI Galeno começou a ser contestado, em várias frentes como exemplificado no «Tratado dos Simples» de Garcia d'Orta ou no De Humani Corporis Fabrica de Andreas Vesalius.

Mas a figura que se destaca nesta revolta renascentista contra Galeno é Theophrastus Philippus Aureolus Bombastus von Hohenheim (1493-1541) mais conhecido como Paracelso, que introduziu em alternativa à teoria dos humores uma filosofia natural alquímica, revolucionando a medicina e a química. O seu seguidor Jan Baptista van Helmont foi um dos mais destacados «filósofos químicos» da primeira metade do século XVII que contribuiu indelevelmente para o sucesso da química médica ou iatroquímica em oposição à medicina galénica, segundo a qual apenas forças ocultas, aliadas às ervas medicinais com o «temperamento» adequado, surtiriam efeito na cura dos males do corpo.

*Os livros de Hildegard von Bingen, que se pensa actualmente sofrer de enxaquecas, foram inspirados nas visões «divinas» que a assolavam durante as crises, descritas pormenorizadamente nas obras Liber vitae meritorum e De operatione Dei também conhecido como Liber divinorum operum. São Bernardo de Claraval (ou Clairvaux), que se destacou pela oposição à linha filosófica dos chamados dialécticos, escola de pensamento iniciada por Anselmo de Aosta e continuada por Pedro Abelardo - oposição manifesta no Disputatio Adversus Petrum Abaelardum -, foi o seu patrono junto ao papa.

7 comentários:

Unknown disse...

Eu adoro estes artigos :)) Nunca tinha ouvido falar na teoria dos humores nem que tinha durado tantos anos, mas faz sentido, ainda hoje se fala em temperamentos sanguíneos, biliosos e fleumáticos.

As figuras são de um colorido magnífico, compensam em cor o que lhes falta em perspectiva. Imagino as obras primas que teriam feito se não se tivesse perdido a técnica da perspectiva

Mas não tarda aí o claudio pascoal, no alto da autoridade e sapiência conferida por uns artigos da wikipedia e por outro lunático paranóico, dizer que esta posta faz parte de uma conspiração contra o catolicismo [sigh]

Anónimo disse...

Palmira, não será melhor Hildegard ?, com H

Anónimo disse...

Rita,

Não seja tão obcecada com os católicos, que lhe fica mal. Deixe lá os idólatras em paz. Ou será que a réplica deles lhe dá «pica». Sem querer, tornou-se uma idólatra de sentido contrário ou virada do avesso. E pior que um idólatra, só um idólatra virado do avesso.

Palmira F. da Silva disse...

Anónimo das 20:06:

Obrigado pelo reparo, claro que é Hildegard...

Fernando Dias disse...

A Ilha de Palmira é uma ilha vulnerável ao assalto dos idólatras de outras ilhas, e dos mais variados admiradores, porque tem o encanto de atrair a amizade de confabuladores cúmplices esculápicos. Confabulações propícias e esquivas, fogos húmidos, orgasmos místicos, corpos quentes, humores divinais... Jogos de crianças que pregam partidas à sábia Hildgard von Bingen que está sentada com eles na relva, constantemente a lembrar-lhes para que se libertem da imagética e joguem todos os jogos da linguagem. Alguns contentam-se com pouco, basta-lhes o relinchar dos cavalos e o zunir dos chicotes.

Enquanto a minha mente não me pede outro alimento e estímulo, que não sejam estes jogos, e me dispensa das paixões da alma e do corpo, vou continuar a visitar esta maravilhosa Ilha de Palmira, enquanto ela me deixar frequentar, e fruir os seus Contos de Cantuária, porque não, para me deliciar a ouvir os sábios nos túmulos jogarem tão deliciosos jogos. De um inconábulo para outro, de iluminura em iluminura, ouvem-se trinados de flauta e acordes de harpa. Mas para nós, também há-de chegar o dia em que teremos de partir. Seja como for, sei que não deverei descer às docas, mas sim subir ao pináculo mais alto de Palmira e esperar que passe um navio lá por cima. Não há linguagem sem engano…

Anónimo disse...

A teoria dos humores é hipocrática, não é galénica.
Parabéns pelo blog.

Cláudia da Silva Tomazi disse...



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Abelardo é pássaro livre!
Sob o quintal meu refrão,
que ditoso nem se ateve,
mestre fora da prisão.

Por devoção e estímulo,
vos que estudais esperança,
esforça-te em per escrúpulo,
reforçando sua lança.

Concebido para história,
por qual?! Dolorosa lição;
ser honesto per aprender,

nem larga, tarda crer,
a ciência oh'doce emoção,
eis da moderação, a memória.




O AMENDOAL

Por A. Galopim de Carvalho   Como no tempo da lenda, todas as primaveras, o amendoal alentejano cobre-se de fores branca como se de neve se ...