sexta-feira, 1 de junho de 2007

E ao terceiro livro passou-se: a pseudociência do ano

Frank Tipler (ver também aqui) é um físico teórico bona fide. Não é um maluquinho - é um cientista da Universidade de Tulane, com vários livros científicos e mais de cinquenta artigos e publicados nas melhores revistas internacionais de Física. Trabalha sobretudo em áreas de Cosmologia e Relatividade.

À parte a Física, Tipler é também uma pessoa com concepções peculiares sobre a vida, o mundo e tudo o resto. E com uma abordagem muito mais peculiar.

Nua sua primeira incursão pela divulgação científica, The anthropic cosmological principle, publicado nos anos 80 em co-autoria com o cosmólogo britânico John Barrow, Tipler começa a soltar algumas ideias pseudo-científicas no mínimo bastante discutíveis. No seu Física da Imortalidade (publicado entre nós pela Bizâncio), de que já é autor único e data de 1994, Tipler já vende descaradamente banha da cobra em todo o seu esplendor: apela à sua autoridade em Física para “provar” a existência da vida depois da morte, proporcionada por uma “inteligência artificial” a que chama “ponto Ómega” e identifica com Deus. A pseudo-ciência no seu melhor. O que tudo isto tem a ver com Física a sério fica ao cuidado do leitor interessado (ou desinteressado, como é o meu caso).

Se isto já era mau, ao terceiro livro Tipler passou-se completamente. Ele acaba de publicar, em Maio de 2007, The physics of christianity. O objectivo é nem mais nem menos do que explicar os milagres da vida de Jesus Cristo à luz da Física Moderna. O primeiro capítulo pode ser encontrado na sua página, aqui.

A ideia central é que milagres são acontecimentos raros – muito raros. Não impossíveis, mas muito raros. Mas Tipler vai mais longe do que procurar a explicação na Física conhecida: quando ela não existe ou todos os dados apontam contra ela, Tipler distorce a realidade para lá do ponto de rotura até ficar de acordo com aquilo em que ele acredita, deixando-nos com a sensação de que afinal tinha sido sempre esse o objectivo. É um livro pseudo-científico, perverso e perigoso.

O facto de Tipler ser um cientista respeitável pode dar a ideia de que está a ser honesto. Não está! Leiam-se por exemplo as críticas dos físicos Lawrence Krauss na New Scientist ou Vic Stenger. Ele distorce a Física conhecida de acordo com as suas conveniências. Para citar Krauss, “Tipler afirma que o modelo standard da Física de Partículas é completo e exacto. Não é. Afirma que temos uma visão coerente e clara da gravidade quântica. Não temos. Afirma que o Universo irá entrar numa fase de colapso. Não tem de o fazer, e tudo o que sabemos actualmente indica que é o contrário que vai acontecer. Afirma que compreendemos a natureza da energia escura: não compreendemos. Afirma que sabemos existir mais matéria do que antimatéria no Universo. Não sabemos. E assim por diante”.

Mas, para lá de permitir semelhantes exercícios desconstrucionistas, o livro de Tipler é fundamentalmente desonesto. Ele afirma que o nascimento de Jesus a partir da Virgem Maria se deu essencialmente por geração espontânea, sendo Jesus portanto homozigótico XX, sendo parte de um dos cromossomas X inactivado para funcionar como Y. A prova está na análise de DNA ao sangue deixada por Jesus no Sudário de Turim – que, infelizmente para Tipler, há muito se sabe ter sido forjado no século XIV. Não contém sangue: contém tintas.

Andar sobre o mar? Ressuscitar dos mortos? Simples. Bastou esperar 21 séculos para percebermos. Segundo Tipler, as partículas dos átomos do corpo de Jesus decaíram espontaneamente em neutrinos e antineutrinos. Para andar sobre as águas, estes proporcionaram uma espécie de “almofada” de partículas sobre a qual a caminhada teve lugar. Para a Ressurreição, o processo essencialmente inverteu-se: as partículas, ao terceiro dia, “des-decaíram” e voltaram a formar o corpo de Jesus.

Tão simples quanto isto. Mas quando eu parto um copo, os cacos não se voltam a unir, pois não? É uma chatice, chamada Segunda lei da termodinâmica. Para Jesus é pior: o decaimento do protão conduz a uma diferença de cerca de 100 ordens de grandeza! Impossível, não? Não para Tipler: ele usa uma versão grotesca do princípio antrópico que afirma que, se estamos aqui, é porque aconteceu. Curiosamente, esse princípio é aplicável não apenas ao Deus cristão, mas a qualquer Deus, ou mesmo a qualquer crença.

O curioso Prémio Templeton, no valor de 1,2 milhões de euros (há quem diga que o valor foi escolhido para ser superior ao Nobel) premeia individualidades que consigam a curiosa proeza de aproximar a ciência da religião. Em 1995, Tipler esteve quase a ganhar com o seu Physics of Immortality. Agora, com Physics of Christianity, deve ser o eleito. Mesmo que a verdade seja a sua primeira vítima.

9 comentários:

Anónimo disse...

Penso que há uma área que é simultaneamente pseudo-ciência e pseudo-religião. Digo isto também em abstracto, ou seja, qualquer que seja o deus considerado (para este efeito, não considero a possibilidade de uma religião sem um deus, ou um princípio divino).

Esse jesus cristo que utiliza as leis da física (podemos chamar-lhe tecnologia) em vez de as ignorar não se distingue de um hipotético extraterrestre de ficção científica; dito de um modo talvez mais compreensível para um crente, perde exactamente aquilo que tornava impossível ver nele uma criatura, e não um criador. E portanto o argumento do livro, tal como apresentado aqui, não é um argumento a favor da religião, mas contra ela, visto negar a manifestação da divindade qua tale, e visto que um deus incognoscível ou não-manifestado não "religa".

devoured elysium disse...

Estive no ano passado a 2 passos de comprar esse The anthropic cosmological principle. Pelo que li sempre fiz bem em não o comprar. Contudo, se esse livro não é lá grande espiga, existe alguma alternativa viável?

devoured elysium disse...

Em relação ao principio antrópico, em que é que realmente consiste(nas várias vertentes), implicações, e por ai adiante, quero eu dizer

Alef disse...

Sim, estou basicamente de acordo com a Hellena Corvo. Todos as tentativas de «concordismos» deste tipo acabam por ser artificiais e um mau serviço à ciência e à religião. Normalmente acabam por revelar uma flagrante ignorância do significado religioso-teológico daquilo para que buscam uma explicação «científica». Por exemplo, se a ressurreição se desse como o autor sugere, não seria propriamente a ressurreição que é a base do Cristianismo.

Este Jesus Cristo das «piruetas» um pouco «à Luís de Matos» não tem, de facto, nada a ver com o sentido teológico e bíblico dos milagres apresentados nos evangelhos canónicos. A tentação dos milagres-piruetas é uma das marcas de alguns evangelhos apócrifos.

Quanto ao «Ponto Ómega», não parece ser uma novidade, antes uma «reciclagem» de Teilhard de Chardin. Mas digo isto apenas a partir da leitura deste «post»...

Alef

Anónimo disse...

Se já me vinha a rir com o artigo do Fiolhais, com este escangalhei-me a rir. Ou melhor, os átomos do meu corpo decaíram espontaneamente partículas-lol.
Este Tipler é bom, o Ricardo Araújo Pereira que se cuide!

Anónimo disse...

Caro Jorge,

Aprecio sinceramente as suas crónicas de divulgação científica e o seu bom senso e equilíbrio no que concerne à relação entre fé e ciência. E este artigo é prova disso.

Contudo fiquei admirado com o seu convencimento de que a Síndone de Turim é forjada.
Estou convencido de que não terá investigado este assunto a fundo porque a esmagadora maioria dos estudos sérios feitos neste campo vão no sentido da sua autenticidade.

Sempre foi proclamada a suposta prova do Carbono 14. Sou investigador experimentalista e sei bem das contingências (e das possibilidade de adulteração) inerentes a qualquer medição experimental. Consta-me que esse teste não foi realizado nas condições necessárias para assegurar a sua validade. Quem o levou a cabo também não parece ter actuado com total boa fé.

Que fique claro no entanto, que apesar de ser crente, não preciso da autenticidade do sudário para acreditar na ressurreição de Crito :)

Gostava imenso de ver um artigo seu na INGENIUM sobre este assunto... depois de o ter estudado a fundo como costuma fazer.
Seria um óptimo "case study" sobre imparcialidade científica :)

Bem haja!
Francisco Brito

Jorge Buescu disse...

Caros leitores: obrigado pelas contribuições de todos.

As perguntas de devoured elysium encontram a sua resposta nos posts seguintes. Alef: de facto "moralmente" o ponto Omega é uma reciclagem de Teilhard de Chardin, que morreu em 1955...

António Parente: eu não desconheço o Premio Templeton. De facto, nos ultimos 8 anos Taylor foi o unico não-cientista a ganhá-lo... os outros 7 foram cientistas, entre os quais 5 físicos: Dyson, Barrow - co-autor de Tipler - , Townes (Prémio Nobel), Ellis e Polkinghorne. Há claramente um padrão... em "The God delusion" Dawkins relata que certa vez Daniel Dennett lhe disse: "Olha, Richard, se alguma vez te vires aflito com dinheiro renega tudo o que disseste e tens o Templeton à tua espera!"

Quanto à Matemática, se decidirmos ser desonestos até ela serve. Eu talvez pudesse iniciar uma seita só a partir do título do meu ultimo livro :-)

Anónimo disse...

Gostaria que no 3º Ciclo do Ensino Básico existisse uma disciplina chamada «Leitura Crítica» cujo programa consistisse na compilação, classificação e caracterização das principais falácias presentes no discurso e no debate públicos, e em que os alunos fossem treinados na sua detecção e desmontagem.
Materiais de estudo não faltariam: gravações de debates televisivos, artigos de opinião nos jornais de referência, artigos de divulgação nas revistas femininas e masculinas, horóscopos, entrevistas de celebridades...
E entretanto libertar-se-ia nos programas de Português espaço para textos com valor literário ou argumentativo.

Jorge Buescu disse...

Caro António Parente:

os nossos desejos coincidem: eu recusaria ser guru espiritual seja de quem for. Deus me livre! :-)

Parece-me que está a interpretar o meu post como cientismo ateísta primário. Não é. O meu post é sobre a última e inconcebível banha da cobra do Tipler, não sobre convicções ou crenças individuais que obviamente são livres e respeitáveis (enquanto respeitarem a liberdade dos outros).

Quanto ao prémio Templeton, é um facto que Tipler já esteve quase a ganhá-lo. O prémio foi para o seu co-autor John Barrow em 2006.

Haveria muito a dizer quanto ao Templeton: mas é declaradamente uma tentativa de colar Ciência e Religião. Na página de entrada da Templeton Foundation, http://www.templeton.org/, encontra o mote: "Supporting Science - investing in the big questions". Note que são eles quem invoca a "Ciência". Se a colagem é bem feita ou não é uma questão aberta a debate, como todas, e em última análise uma questão de opinião.

Muito obrigado pelos seus cumprimentos pelos livros! Espero que este último lhe agrade pelo menos tanto como os anteriores.

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