segunda-feira, 29 de abril de 2024

O FÍSICO PRODIGIOSO

 


Cap. 43 do livro  "Bibliotecas. Uma maratona de pessoas e livros", de Abílio Guimarães, publicado pela Entrefolhos, que vou apresentar no próximo sábado em Oliveira de Azeméis. É uma bela obra, onde se descrevem 50 bibliotecas privadas que o autor visitou, entre os quais a minha:

Carlos Manuel Baptista Fiolhais
25 de Agosto de 2023 / 6ª feira / 11h 15
Rua do Pinheiro / Coimbra

Até que no tempo cesse anónimo o ténue sopro que ao tempo dou.
Rui Knopfli

12.06.56 / 67 anos / Físico (doutorado em Física Teórica), cientista, difusor de ciência e professor catedrático; criou o "Rómulo" - Centro de Ciência Viva da Universidade de Coimbra  (UC) e foi director da Biblioteca Geral da UC.

Enquanto o ouvia num podcast e tomava umas notas a dado passo escrevi: Humildade. Chega a minha mulher  e também se encanta: Parece uma pessoa humilde. Para quem diz que rir é um modo de nos curarmos e que a vida é uma caixinha de surpresas, ser autor de um artigo com mais de 25 000 citações e ter quase uma centena de livros publicados é como me disse o meu filho: Nem acreditas!

Se é verdade que as páginas de um livro não são todas iguais - numas quase adormecemos, noutras o arroubo é tremendo - também os dias das nossas vidas gozam de favores desiguais. O de hoje, desde o prévio afã até à sua feliz consumação, pertence à última espécie e estender-se-á sem nenhum estorvo que o deslustre pelo perene tapete da memória. Apalavrada a lábia para a esplanada do Café Mainça, assim foi. O dicionário afiança mainça como mão-cheia, punhado, porção de coisas que a mão pode apanhar de uma só vez, e eu logo ali soube do apuro que iria ser rabiscar as minhas apostilhas à justa medida da sua fala.

Tenho a paixão dos livros. Não se apraz com menos: Sou viciado em livros e muitas vezes compro por impulso. Criou a sua biblioteca desde a adolescência, baseado no capital que advinha dos prémios (de desenho, alguns) que recebia desde a primária. De uma família humilde - a mãe era de Selhariz, Vidago; o pai, de Sedielos, Régua - e não sendo o livro o objecto de maior uso lá em casa, foi em contramaré que o pai, militar da GNR, lhe deixou As Minhas Memórias, o resumo de uma vida em meia dúzia de páginas. Admite que nesse legítimo desejo de assegurar a memória resulte uma certa forma de sobrevivência. Não sente o culto do livro, o do conhecimento sim. Edições antigas e caras não cultivo. O que lá está é que interessa, não é tanto o aspecto. O livro é apenas um suporte. Ao longo da vida foi deixando muitos para trás, ao Centro de Ciência Viva legou 10 000 e mesmo assim ainda estima reunir uns 50 000. Ao invés, por razão das suas relações e notoriedade dão-me sacos de livros. Cedo emigrou. Viveu em Copenhaga, Nova Orleães  e Bilbau, mas foi antes,  em Frankfurt, na Alemanha, onde aos 26 anos se doutorou, que pôde atestar o quanto a biblioteca é um modo de medir a mentalidade dos povos. Abjurando o bafio português, a Universidade Goethe, avessa a qualquer limite à requisição, era um local de porta aberta que hoje acolhe uns 15 milhões de volumes. Procuramos o infinito nos livros, essa liberdade que eu tenho nos livros e não encontro na vida real, a verdade que não somos e queremos. Que me perdoem os demais leitores, mas este, por tão alto, não haveria de se abreviar na dose da página regular - e já agora, concisa, por forjada na ideia de que se posso dizer uma coisa em poucas palavras para quê escrever muitas - até aqui ajustada. E rogo ao texto que continue.

Entra (entramos) pela casa dentro e é o espanto: o prazer estava logo ali, hiante, à nossa frente. Fiadas de lombadas coloridas em poses variadas e - não tão poucas - de trama com os espaços mais escusos. Tudo o que não há, decerto aqui se achará. Ensaios, romances, o terramoto de 1755, a história do Brasil, as invasões francesas, a obra de José Mattoso, as religiões. Até soa obscena qualquer listagem deixando tantos de fora. Num espaço contíguo que lhe serve de escritório o assombro sobrepuja o de antes, com estantes em dupla fiada, e sem mais onde se quedarem, carradas de livros em ânsias por uma migalha de vazio que ainda por aqui perdure. Parece muito confuso, mas eu sei onde está tudo. Numa mesa espera-o uma pilha com alguns que por estes dias lhe ofereceram. Enquanto fala, desembrulhando assuntos atrás de assuntos, sempre os mais inesperados, abre um maço do correio que lhe traz nova remessa. Nenhuma peia ou limite deve servir para acobardar o saber. Não há limites para o saber. A noção de portugalidade e o que é isso de ser português interessa- -o. A literatura à volta dos estrangeiros que vêm para cá - Portugal visto por olhos estrangeiros é muito mais bonitoe dos portugueses que vão para fora. Livros sobre os livros e a leitura. Tudo o que tenha o tempo e o futuro por mote.

De gostos diversificados, fala de tudo com um amor e um gosto sem par. E tanto se atreve a escrever livros infantis, como toma a direcção da vasta Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa e da original História Global de Portugal ou até - e di-lo com grato orgulho - se lança na aventura de compor, aliado a um fotógrafo amigo também físico, um livro muito bonito sobre a Biblioteca Joanina, de que foi director sete anos. Há autores polémicos de que eu gosto e fala de Maria Filomena Mónica, Vasco Pulido Valente e António José Saraiva. Tem tudo do Eduardo Lourenço. Quanto ao facto surpreendente de alguém da ciência ter uma tão ingente paixão por livros aponta Oppenheimer, o "pai" da bomba atómica, que por nutrir um enorme gosto por línguas se aventurou a aprender sânscrito, quando não precisava nada disso para a sua vida profissional. O saber tem asas e constrói pontes, até com a física. Alegra-se em transmitir conhecimento, e divulgar ciência é favor de que não prescinde. Para além dos livros, escreve em jornais, tem podcasts e é figura comum na TV..

O tempo nunca é problema; se a pessoa quiser fazer, faz. Como lê rápido avia vários ao mesmo tempo, pois claro! Dicionários, citações e obras de referência, tem-nas perto da sua secretária e ao alcance da mão esquerda. Sobre a ideia de que está tudo na net é uma ilusão, e há pessoas que descobrem o mundo através dos livros. Sabiam que Fiolhais é um lugar? Se tirarmos Pessoa, que se vê por aqui em distintas e fartas moradas, a poesia, por ser algo de mais íntimo, acolhe-a no quarto. Nas costas da porta do seu escritório o aviso é claro: A bibliofilia é o resultado de um amor à ciência e à beleza. A descida ao piso inferior arrima mais cimento para o pasmo. Acede que procura uma certa ordem no arranjo dos temas, mas nem sempre vence. A filosofia, os clássicos, cartazes, livros de viagens, revistas, a banda desenhada (o Loustal todo) e há mesmo um cantinho (O Diabo da Biblioteca) em que o Eros ganha a palma. Camilo, Agustina, tudo do Umberto Eco todo, música, fotografia, arte, cinema, livros acerca de Portugal (um país maravilhoso) e outros até sobre o simples acto de passear. Adoro pechinchas! Também aqui deixo nota do seu arquivo pessoal com a correspondência de 40 anos, mas há que refrear o engulho da nomeação. A casa respira livros - são os livros - porque uma coisa sem animação (anima) não interessa. Neles moram o espírito crítico e a inquietação.

Não acredita na vida para além da morte e sobre o tempo: Ninguém sabe o que é, mas existe. O tempo é mudança e joga-se em duas partes: a permanência e a temporalidade. Sem renovação não se pode pensar nele. Sexo sem morte não funciona. Morrem pessoas todos os dias e o tempo continua. Vê nessa cadeia uma vida para lá da nossa - pode ser que a imortalidade assim se concretize - e isso dá-lhe conforto. morte pode ser uma benção. É belo pensar que se cada um de nós tiver feito alguma coisa terá contribuído para o tempo. Ele é maior do que nós. E depois há os livros com o mágico poder de conservar o fio da memória. O pai deixou-lhe seis páginas. Ele multiplicou-as. De Física Divertida, da Gradiva, o seu livro inicial, que desde 1991 vendeu mais de 20 000 exemplares, passando pelos três que sem prosápias me ofereceu, serão à volta de 70 os que - sozinho ou em co-autoria - já deixou escritos. Capítulos, prefácios e posfácios que aqui e ali vai, a pedido, alinhavando serão mais de 200. Quer dizer, eu não morro. Enquanto isso, agracia Montaigne e toma a leitura como uma forma de felicidade: Não faço nada sem alegria.


Abílio Guimarães

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