quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

SENTIDO DO PENSAR (HUMANO) EM TEMPOS DE AFIRMAÇÃO DE MÁQUINAS "PENSANTES"

Confesso que a partir do momento (ainda recente) em que as máquinas informáticas (num modo muito simplista de dizer) passaram a ser apresentadas/impostas, no campo da educação escolar, como coisas pensantes (mesmo, pensantes!), o meu interesse por elas decresceu até atingir um nível de (quase) indiferença. Elas estão aí, fora da ficção, na realidade concreta, mas, em termos de trabalho (do meu trabalho), não me interessam sobremaneira: prefiro usar recursos que não pensam. Reservo a tarefa de pensar para as pessoas, mesmo sabendo o quão difícil ela é, e os erros, falhas e afins em que faz incorrer.
O que acabo de dizer leva a vários mal-entendidos.
Um deles é ter-me referido à máquina como coisa pensante. Por mais sofisticada que seja, a máquina mais "pensante" recolhe, combina e mostra o que alguém integrou no sistema. A quantidade de dados que processa e a velocidade com que o faz impressiona-nos, por certo, e talvez nos atemorize, mas não podemos igualar o pensamento humano a esse processamento.
Outro é esse meu desinteresse ser, na verdade, estratégico. Estou consciente de alguns benefícios que as ditas máquinas podem proporcionar, principalmente nas ciências que pugnam pela vida e pela sustentabilidade do planeta, mas também estou consciente de alguns problemas que se afiguram nada menos do que assustadores. Portanto, como alguém que pensa e que está neste mundo, não posso dizer que não me interessam.
Mas há que separar as coisas: ponderar problemas e ir vivendo. Melhor: ir vivendo, tentado manter o pensamento a níveis dignos do ser humano. Porém, esta decisão tornar-se cada vez menos ser fácil...
Sendo professora, dizem-me: os alunos vão buscar algures trabalhos, apresentações, teses até! Não se detecta à primeira nem à segunda vista, o melhor é tomar-se esta ou aquela medida. Sim, argumento, mas alguns já antes iam buscar tudo isso a outro lado, ou mandavam fazer... A atitude fraudulenta é a mesma, o meio é que mudou, nada de novo.
Sendo investigadora, dizem-me: isto ou aquilo poupa-te tempo a procurar bibliografia, corrige-te o português do texto e é bom nisso, apresenta-te sugestões de estrutura, de finalização de um tópico, também te dá ideias para títulos que te passariam ao lado, se não souberes como iniciar um artigo ou uma comunicação, que por vezes é o mais difícil, sugere-te o mote...
Não, obrigada! Continuo a pedir aos alunos os trabalhos que sempre pedi, segundo linhas e critérios que determino, corrigindo, eu e eles, e voltando a corrigir, encontrando pequenas e menos pequenas fraudes que, de resto, eles não desmentem. E continuo a "brigar-me" com a folha/ecrã em branco, seja em trabalhos individuais ou em colaboração. Não se entenda o que acabo de dizer como uma declaração pública de honestidade académica (escusada e de péssimo gosto), mas como uma impossibilidade da minha parte e da parte dos que comigo colaboram para pensarmos e escrevermos algo a "quatro mãos" com uma máquina. Os "produtos" são, por certo, em menor número e mais fracos em determinados aspectos, por comparação com os que "sairiam" com a "ajuda" de uma máquina "pensante", mas quanto a isso nada a fazer: o ser humano é lento e falível. Contudo, assim, será possível manter algo inigualável: o sentido do pensar, de se procurar pensar bem, e de, com essa preocupação, se repensar e voltar a pensar... e de se pensar que talvez não se tivesse pensado bem, que é preciso continuar a pensar. É isso que, com todo o desespero e alguma alegria que tem inerente,  permite ir vivendo...
Surgiu-me esta consideração a propósito de um artigo/podcast saído há poucos dias no jornal Expresso. O título é “Quem vai ser substituído pelas próximas máquinas são os que têm mais formação. É o paradoxo da IA. Assina-o Hugo Séneca (com sonoplastia de Salomé Rita) e é resultado de uma entrevista a Virgínia Dignum, investigadora portuguesa numa universidade sueca que tem participado num grupo de aconselhamento da ONU para questões de "inteligência artificial".
 
Esta investigadora diz algo que, no conjunto do seu depoimento, pode parecer de menor importância, mas que é nada menos do que fundamental: refiro-me à não cedência ao argumento TINA (There is No Alternative / Não Há Alternativa), sistematicamente invocado quando se fala de novas tecnologias, inteligência artificial, robôs e afins. Um certo progresso está em marcha e não pode ser parado, ainda que reduza o número de profissionais (ao que parece, sobretudo os têm mais formação), que ponha em causa os sistemas de assistência social, que passe por cima dos direitos de autor, que alicerce o racismo, o machismo e outros preconceitos, que tenha usos iníquos de vigilância e controle, bem como aplicações militares que nem queremos imaginar.
 
Recorda a entrevistada que os responsáveis por aquilo que as máquinas executam (mesmo que tenham sido programadas para executar com autonomia) são os humanos. Portanto, somos nós, acrescento eu, que decidimos orientar essa execução em função dos valores éticos a que, realmente, damos valor e que, nessa medida, temos o dever (ético) de preservar.
 
Assim, tenho esperança - quero ter esperança - no trabalho do mencionado grupo de aconselhamento e na constituição da anunciada agência internacional para a monitorização da inteligência artificial para enfraquecer esse argumento de imposição amoral, que exclui todo o tipo de reflexão, incluindo a de ordem ética. Mas tenho mais esperança - quero mesmo ter mais esperança - no trabalho dos educadores, com destaque para os professores. A firmeza no propósito de pensarem profundamente sobre o conhecimento para levarem os mais novos no mesmo caminho, recusando todas as formas de subordinação das pessoas a poderes instalados ou que se querem instalar é, no meu entender, o principal caminho para a manutenção da dignidade que deve assistir ao ser humano.

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

O maior desafio, para compararmos uma máquina “pensante” a um humano pensante, em meu entender, está em apurarmos o que é um pensamento, um processo neurológico de pensamento e como esse processo físico se replica ou reflete (não como num espelho, mas reflexo dinâmico, construído) sobre si mesmo sem se repetir jamais.
O “cogito, ergo sum” de Descartes não nos ajuda a responder ao desafio, nem nos remete para as três leis da lógica ou leis clássicas do pensamento, embora elas estejam implicadas naquela frase. Distinguir e analisar o pensamento humano como processo de atos pensantes, se é que o é, o que são atos e o que é “pensante” está mais em linha com o conselho, advertência, "conhece-te a ti mesmo", atribuída ao filósofo grego Sócrates, do que com a sua, igualmente célebre, filosofia “só sei que nada sei”. Embora o pensamento tenha uma natureza reflexiva sobre si mesmo, o pensamento está para o seu reflexo numa ordem de precedência e o seu reflexo é algo descontínuo, memorizado, que interrompe aquele e dá lugar a outro.
O “conhece-te a ti mesmo” é da ordem introspetiva, sem deixar de ser da ordem do conhecimento, mas da estrutura e do processo que gera esse conhecimento. O “só sei que nada sei” é da ordem da linguagem, da análise lógica e epistemológica da formulação do pensamento/ideias.
No “conhece-te a ti mesmo” o objeto faz parte da incógnita, ou seja, o ti mesmo é o objeto de um conhecimento que se pretende, mas um e outro, objeto e conhecimento, são indissociáveis e são também reflexo um do outro, mas não como num espelho. São um reflexo construído, dinâmico e não fixo.
Além disso, neste caso, o objeto de conhecimento (indeterminado e indefinido) é da ordem do “existir”, da existência, da realidade (coisa), enquanto que, em “só sei que nada sei”, se trata de uma declaração formal e abstrata, que vale pelo significado e pela lógica que pode ter, sendo da ordem do “ser”, da essência, do conhecimento, da linguagem, do pensamento objetivado, verbalização.
Enquanto os humanos pensam com imensa espontaneidade e liberdade, sempre numa condição de existência, em constante e inevitável contingência biológica evolutiva, autores do seu pensamento, sobre a sua existência cujo modo de ser é pensar (relembro as leis do pensamento que referi no início) e cuja condição é viver ininterruptamente e, quando conscientes, decidindo e escolhendo (num quadro de possibilidades) o que lhes proporciona satisfação.
O deve ser é a antevisão, a representação antecipada daquilo que ocorrerá, acontecerá, será consequência, efeito, da escolha, do ato que a realiza ou corporiza. Essa representação não é arbitrária e tem como princípio ativo, vital, homeostático, a sobrevivência, que é uma forma de egoísmo, mas não se confunde com egoísmo em sentido ético. Se perguntarmos o que é Verdade, Direito, talvez a resposta seja surpreendente: é o que não deve ser outra coisa, ou, é o que deve ser e não outra coisa. Retomamos neste ponto Descartes e as problemáticas dos existencialistas, mormente em torno da existência e da essência. Não tenho esperança de que a IA pense como eu, nem que ela pense que eu venha a pensar como ela. Por isso, aliás, apetece-me aconselhar e advertir a IA, como o faziam os antigos pensadores “conhece-te a ti mesma”.

Anónimo disse...

Grande, belíssimo artigo, Helena Damião! É bem a imagem da lutadora
incansável que tem sido, ao longo destes anos todos, pela dignificação da
educação, a qualidade dos professores, a exigência, o rigor, enfim, a
humanização, fundamental para que o género humano continue a ser humano e a
progredir. Ainda ninguém pensou que se as máquinas começarem a resolver
todos esses problemas, que cansam os nosso jovens, como a nós nos cansavam
- estudar, reter conhecimentos, pensar, escrever - a inteligência dos
humanos irá diminuir dramaticamente. ? E que, por isso, nos vamos tornar em
muito mais incapazes, planos, superficiais e, portanto, antissociais e
amorais? Ainda ninguém pensou nos jovens futuros que não terão necessidade
de aprender a pensar, de superar dificuldades, de se esforçar, de se
aperfeiçoar? Ainda ninguém pensou nas pessoas que eles irão ser? Será que a
inteligência artificial não acabará por destruir a inteligência natural na
maior parte dos seres humanos futuros? E que só se salvarão os que virem
este perigo e se deixarem de tretas de modernidades bacocas e tecnologias
assassinas? Anda o género humano a aperfeiçoar-se há tantos milénios para
agora fabricar a sua própria destruição?

João Boavida

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