quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

TOMÁS PEREIRA, JESUÍTA NA CHINA


Minha coluna no último JL:

Na História Global de Portugal (Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2020) que coordenei com os historiadores José Eduardo Franco e José Pedro Paiva, escrevi uma entrada intitulada «1614 - A Revolução Científica chega a Ásia», onde dei conta da recepção que se deu na China das primeiras observações astronómicas de Galileu com o telescópio realizadas apenas cinco anos antes. Protagonista maior foi o jesuíta português Manuel Dias (1574-1659), natural de Castelo Branco e entrado na China em 1610, que escreveu Tiean wen Lue (Sumário de Questões sobre o Céu), uma obra em mandarim na qual eram descritas as referidas observações. O início da transferência da ciência moderna para o Império do Meio tinha-se devido a um outro jesuíta, o italiano Matteo Ricci (1552-1610), que chegou à China, por Macau, em 1582, depois de ter aprendido português em Coimbra. O segredo do seu êxito foi a aprendizagem do mandarim e a adopção dos usos e costumes locais. Só em 1601 Ricci consegui chegar à corte imperial, entregando ao imperador Wanli, um mapa-múndi, um atlas, um relógio mecânico e instrumentos de óptica. Estava inaugurado um fértil período de intercâmbio científico entre Oriente e Ocidente.

Um livro recente conta a história extraordinária de um outro jesuíta português na China, cuja estada asiática foi posterior à de Manuel Dias: Tomás Pereira (1645–1708), natural de São Martinho do Vale (Vila Nova de Famalicão), formado em colégios jesuítas de Braga, Coimbra. Goa e Macau, onde chegou em 1672. Por necessidade de concisão, apenas lhe fiz uma breve referência na minha entrada da História Global de Portugal. Mas ele merece mais, pelo papel pioneiro que desempenhou na chegada à China da música ocidental e, portanto, na globalização da arte musical desenvolvida na Europa. Vários termos musicais em mandarim foram cunhados por ele. O livro intitula-se Tomás Pereira e o Imperador Kangxi. Um diálogo entre a China e o Ocidente (Guerra & Paz, 2022). É sua autora Tereza Sena, historiadora que trabalha no Centro Científico e Cultural de Macau (vale a pena visitá-lo na Rua da Junqueira, em Lisboa) e que, para o escrever, trabalhou como investigadora convidada da Universidade de São José, uma instituição de ensino superior em Macau que funciona em parceria com a Universidade Católica Portuguesa. O livro, baseado num rol bibliográfico extenso, com fontes manuscritas (guardadas no Vaticano e em Portugal), fontes impressas e fontes on-line, exibe alguma liberdade literária. A autora chamou-lhe «narrativa histórica». As citações surgem em itálico. Não teria sido preciso sublinhar algumas partes do texto a negrito pois não só o assunto é interessante como a escrita é viva.

Tomás Pereira, cujo nome de baptismo era Sancho, ingressou na Companhia de Jesus em 1663, em Coimbra, nessa altura um dos maiores centros dos jesuítas no mundo (havia dois colégios próximos, o de Jesus e o das Artes). Deve ter acompanhado nessa cidade o processo inquisitorial contra o Padre António Vieira, também ele jesuíta, já que a reclusão domiciliária deste ocorreu em 1665. Mas já não ouviu a sentença condenatória, lida dois anos depois, pois embarcou na carreira da Índia para Goa em 1666. Mal chegado a Macau, foi chamado pelo imperador, que o queria em Pequim, para aproveitar os seus conhecimentos científicos e musicais. O livro começa com o «1.º andamento (Adagio)» da parte I - Ouverture (repare-se na cadência musical da narrativa) precisamente com a descrição do cortejo, encabeçado por dois emissários imperiais e escoltado por 500 soldados, que por rios, montes e vales levaram o padre até ao Palácio na Cidade Proibida de Pequim. O seu título era Kiú Ciú Cin Kim, «honrado e seleccionado pelo imperador».

Quem era o imperador? De origem manchú, Kangxi (1654-1722) foi, em toda a história chinesa, o que reinou mais tempo: tendo subido ao trono com sete anos, ocupou-o durante 61 anos (tinha 18 quando chamou Tomás Pereira). Conquistada a confiança mútua, Kangzi e o Padre Pereira tornaram-se inseparáveis. Foi decerto graças ao esse bom entendimento que Kangxi proclamou, em 1692, o Édito da Tolerância, que permitia aos chineses a conversão à fé cristã. Um outro jesuíta que ganhou as boas graças do imperador foi o flamengo Ferdinand Verbiest (1623-1688), que conseguiu provar a superioridade da astronomia ocidental em relação à astrologia chinesa. Foi, por isso, nomeado director do Observatório Astronómico de Pequim e do Tribunal das Matemáticas, cuja missão era estabelecer o calendário com base nos eventos astronómicos. Como todos os outros missionários na China nessa época, Verbiest tinha partido de Lisboa, tendo chegado a Macau, via Goa, em 1658. No período em que Kangxi era menor e o governo era assegurado por regentes, Verbiest foi aprisionado e julgado, na companhia de um jesuíta mais velho, astrónomo como ele, Johann Schall von Bell (1591- 1666). Os dois foram condenados à pena capital, mas acabaram por ser perdoados, devido a um terramoto que foi interpretado como um sinal redentor. Quando Kangxi ganhou poder efectivo, tudo mudou na relação com os jesuítas. Contudo, em 1712, o papa Clemente XI, contra a opinião dos inacianos, publicou um documento que proibia aos cristãos chineses participar em cultos dos seus antepassados. O imperador abandonou a tolerância religiosa ao interditar, em 1721, as missões católicas na China.

Quando Verbiest faleceu, o Padre Pereira esteve para ser seu sucessor à frente do Observatório Astronómico, mas aceitou o cargo apenas interinamente, com um confrade francês, até que um italiano mais habilitado regressasse da Europa. A carreira de Pereira atingiu o auge em 1689 quando foi um dos dois jesuítas designados por Kangxi para negociarem com o Império Russo o Tratado de Nerchinsk, que delimitou as fronteiras entre os dois países. O Tratado foi discutido e assinado em latim, língua que os jesuítas dominavam, por falta de intérpretes russo-mandarim. Alcançando o acordo, os enviados de Moscovo mandaram servir doces, um dos quais – o mais saboroso! - um pão de açúcar da ilha da Madeira. Tudo isto está contado no livro de Tereza Sena, que se lê com muito agrado.

 

 

1 comentário:

Anónimo disse...

Agradeço a referência e o seu contributo para uma maior divulgação da figura de Tomás Pereira, cujo conhecimento praticamente se circunscreve aos círculos de especialidade. Aliás, foi esse o objectivo do livro, uma iniciativa que partiu da Embaixada de Portugal em Pequim, no tempo do Senhor Embaixador José Augusto Duarte, prontamente acolhida pela Universidade de S. José, de Macau, como é de justiça sublinhar.
Cordialmente,
Tereza Sena

O corpo e a mente

 Por A. Galopim de Carvalho   Eu não quero acreditar que sou velho, mas o espelho, todas as manhãs, diz-me que sim. Quando dou uma aula, ai...