quinta-feira, 6 de outubro de 2022

«O PRINCÍPIO DA INCERTEZA» DE AGUSTINA BESSA-LUÍS


Meu texto sobre Agustina Bessa-Luís, que faria 100 anos a 15 de Outubro, saído nas Artes entre as Letras:

Agustina Bessa-Luís (1922-2019) escreveu sobre a vida portuguesa, em particular da gente do Norte do país. Não estando a cultura nacional historicamente entranhada pela ciência e pela tecnologia como está em outros países europeus, não era de esperar que a cultura científico-tecnológica fosse relevante nas histórias de vida de Agustina.

No entanto, encontramos alguns termos científicos na sua obra. Por exemplo, o título Princípio da Incerteza, que deu a uma trilogia formada pelos romances Joia de Família (2001), Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, A Alma dos Ricos (2002) e Os Espaços em Branco (2003), os dois primeiros adaptados ao cinema por Manoel de Oliveira (1908-2015), sob os títulos de O Princípio da Incerteza (2002) e Espelho Mágico (2005). Enunciado em 1926 pelo físico alemão Werner Heisenberg, o título genérico diz que não se pode saber exactamente a posição e a velocidade de uma partícula quântica, isto é, quanto mais se conhecer a posição menos se saberá da velocidade e vice-versa.  Esse enunciado pode ser deduzido de axiomas da teoria quântica, sendo. uma fatalidade no estranho mundo das micropartículas. Mais adequado do que incerteza seria o termo «indeterminação», uma vez que não se pode determinar em simultâneo os valores das duas grandezas físicas.

Tal norma da física quântica, que viola o nosso senso comum uma vez que, para um automóvel, podemos saber ao mesmo tempo posição e velocidade, não passa de uma metáfora na trilogia literária, pois não se descortina uma relação óbvia entre os romances e o mundo das partículas não passa de uma metáfora. A apropriação literária de um termo da física não é inédita. Encontra-se noutras obras como O Princípio da Incerteza (1993), do escritor francês Michel Rio, e na peça de teatro Copenhaga (2000), do dramaturgo inglês Michael Frayn. Se a relação com a física quântica é algo difusa em Rio, ela é bastante nítida em Copenhaga, peça que em Portugal foi representada no Teatro Aberto em Lisboa em 2003 encenada por João Lourenço e interpretada pelos actores Carmen Dolores, Paulo Pires e Luís Alberto. A peça trata a incerteza tanto na física como nas relações humanas, ao descrever o encontro que teve lugar em Copenhaga em 1941 entre Heisenberg e o seu mestre Niels Bohr, físico dinamarquês. O discípulo representava o ocupante e o mestre o ocupado. Os dois tinham segredos atómicos e da conjugação das suas vontades dependia o futuro do mundo. Saíram separados, mas, como em todas as relações humanas, o desfecho não podia ser previsto: era incerto.

Na trilogia de Agustina paira também uma contínua incerteza. Ao ler esses romances, o leitor não pode adivinhar o que vai acontecer. Na história de Joia de Família surgem casos de corrupção, delinquência e crime. É descrito um incêndio numa casa de alterne do Norte que se assemelha ao que aconteceu realmente em 1997 no estabelecimento Mea Culpa em Amarante, em que morreram treze pessoas. Por seu lado, A Alma dos Ricos anda à volta dos mistérios da alma feminina (a mulher ocupa um lugar relevante em toda a ficção de Agustina), uma alma que, entre nós, tanto pode ser submissa como rebelde.  Finalmente, em Os Espaços em Branco perpassam cenários e cenas da modernidade lusitana como os centros comerciais, o comércio de droga, a imigração ilegal, todos eles sintomáticos de uma sociedade desigual. Os três romances são independentes, embora existam personagens recorrente. O painel dos três fornece um retrato desalentado da contemporaneidade portuguesa, mostrando como uma sociedade de raízes antigas reage a novas influências e vícios. Agustina dá um retrato da alma humana, portuguesa e universal. Escreve em Alma dos Ricos a propósito de um dos seus personagens, usando uma imagem científica: "Ela tomara um caminho tão solitário como o das estrelas e não havia uma fórmula para o descrever e compreender.” Numa entrevista à jornalista Maria Augusta Silva, a escritora sumariou assim o seu Princípio da Incerteza: “Para mim, o Ser é infinito, tem uma história que se desenvolve, mas sem remate. É uma trilogia tocada pela asa da incerteza.”

É claro que ciência e literatura são diferentes: a ciência lida com o real e objectivo, ao passo que a segunda não tem de o fazer. Mas, numa entrada do Caderno de Significados (Guimarães) intitulada “A Ciência da Literatura”, datada de 1984, Agustina afirma que “a literatura é uma ciência”, acrescentando “encíclica”, isto é. que circula:

“A literatura é uma fisionomia interior. Vemos como as mulheres são dispostas a conservar um rosto e não a criar um rosto. A literatura tem que criar o rosto; manifestar nela a marca que está no fundo de todos os seres e que é a inteligência. Por isso digo que a literatura é uma ciência, uma ciência encíclica em que a arte da palavra origina a tão bela cultura externa que os gregos admiraram. Quanto mais a alma humana estiver distribuída por harmoniosos laços de pensamento, vontade e paixões, mais a literatura será obra digna dos homens e das mulheres que a fizerem.” 

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