quarta-feira, 12 de outubro de 2022

O LIVRO ENQUANTO OBJETO

Por João Boavida 

Um livro pode ser muitos mais do que um simples livro. Não só por aquilo que transmite mas por aquilo que é enquanto objeto. 

Há frequentemente uma relação afetiva que vai muito para lá da obra que o autor produziu e que ali está impressa. O veículo pelo qual essa palavra chega até nós - o livro - é frequentemente motivo de grandes amores e até paixões.

Não falo dos livros ricamente encadernados e gravados a ouro, ou vertidos em preciosos pergaminhos, nem sequer dos livros com ricas iluminuras medievais, que são muitas vezes obras de grande arte e requinte, e que só pensar nas quantas horas e nas tantas habilidades que exigiram para ser produzidos nos comove. Ao aplicarem todo o seu engenho e paciência na produção de livros, sobretudo sagrados, os copistas medievais transpuseram para o objeto o valor que atribuíam ao conteúdo. E os livros eram tão raros e tão difíceis que, obtê-los e poder estudá-los, era um benefício que hoje dificilmente podemos imaginar.

Sendo objetos raros, o valor sagrado e doutrinário que os livros transmitiam, e que iluminava quem os lia ou quem os ouvia ler, foi sendo absorvido pelo próprio objeto, e assim, com a valorização do conteúdo foi-se valorizando o continente. 

Com a generalização do texto impresso e a difusão cultural a veneração pelo livro foi-se laicizando e vulgarizando, mas o amor pelo objeto mantém-se, em inúmeras pessoas, frequentemente até muito para lá do conteúdo propriamente dito. É o culto do livro como objeto.

Ainda não há muito, pessoas cultas e abastadas mandavam encadernar, a carneira, coleções inteiras de livros de certos autores, que veneravam, assim os preservando muito para lá das suas próprias vidas. Aproveitando esse sentimento, coleções mais baratas, mas com aparato, ainda não há muito eram produzidas em grande quantidade e vendidas de porta em porta ou por círculos restritos de produção livresca.

Apesar da vulgarização e massificação da produção livreira o livro mantém ainda uma certa dignidade enquanto objeto. Refere-se uma dada obra de um autor, e somos levados a pensar naquilo que o autor escreveu. É, de facto, o elemento principal, a razão de ser do livro, apesar de haver ainda quem os compre, sobretudo se vistosamente encadernados, para dar ambiente a uma sala ou prestígio a uma família.

Mas não é disso que se trata aqui, como é evidente, embora seja o bom nome alcançado pelo livro que leva a esta atitude.

Porém, a massificação do livro, nos nossos dias, destruiu, muito deste culto, pela quantidade incalculável de livros, do mais variado valor, forma e feitio, que se publicaram e continuam a publicar. Mas um livro, mesmo corrente, não é um objeto qualquer, ou melhor, o livro objeto não é assunto secundário, porque duma mesma obra podemos ter um livro excelente ou um livro indigente, e isso conta muito na missão que é suposto desempenhar.

De facto, ao lado do texto há o livro objeto, pois uma coisa não vive sem a outra, e nesse objeto há vários fatores que o podem qualificar, ou degradar.

Um livro bem conseguido deve ser, também aqui, uma síntese entre o conteúdo e a forma. A qualidade e natureza do papel, no que diz respeito à gramagem e à cor, o tipo e o tamanho das letras, o entrelinhado, as margens – esquerda, direita, superior e inferior - a capa, a sobrecapa, a folha de rosto, as badanas, se as tiver, a lombada, a cosedura ou a colagem, tudo isto são aspetos que salvam ou perdem um livro.

Não é raro encontrarem-se grandes obras em que, pela sua extensão, ou por economia, ou pelas duas, os editores escolheram um tamanho de letra e uma magreza de margens que os torna quase ilegíveis.

Há livros que, de tão descuidados na apresentação, inibem o gosto de ler, quase nos rejeitam. Um livro bem feito acaricia o olhar, sente-se nas mãos, na polpa dos dedos, manuseá-lo é logo um prazer entusiasmante, mesmo que subtil. E fazê-los bem não fica necessariamente mais caro, só que é preciso entregar a sua conceção a quem sabe.

Diga-se, a propósito, que em medos do século passado, entre as décadas de 40 / 70 se produziram em Portugal inúmeras capas de livros que são hoje referência e que, muitas delas, pela sua originalidade, imaginação e arrojo, são um património cultural, artístico e gráfico de grande valor. Artistas como Sebastião Rodrigues, João da Câmara Leme, Victor Palla, Querubim Lapa, Luís Filipe de Abreu, Paulo Guilherme, Infante do Carmo, António Garcia, Octávio Clérigo, Abel Manta, Manuel Correia e Manuel Ribeiro de Pavia, deixaram obra a muitos títulos admirável, quer pelas capas, quer pelo formato, quer pelo todo do livro, e que, muitos anos depois, ainda nos provocam a emoção acima referida.

E certas coleções ficaram famosas, como, por exemplo, a Antologia do conto moderno, da Atlântida e os Novos prosadores, da Coimbra Editora; Os melhores romances dos melhores romancistas, da Inquérito; as Antologias universais (Os mestres do conto), da Portugália; e Obras escolhidas de autores escolhidos, da Romano Torres, ainda nos anos 40/50. E, um pouco mais tarde, a coleção Contemporânea, da Portugália Editora; a Dois Mundos, da Livros do Brasil, cujo formato de base ainda hoje se mantém, tal como a Coleção Miniatura, com capas originais e de muito bom gosto, enriquecidas, cada uma delas, com aguarelas de Bernardo Marques e posteriormente de Infante do Carmo. O prestígio desta coleção foi tal que a Porto Editora anda atualmente a publicar uma segunda série, em tudo igual à primeira se bem que num formato menos miniatural. Mas ainda há mais: Os Livros de Bolso, a Unibolso e Os livros das Três Abelhas, todas da Ulisseia; O livro de bolso da Portugália; o Livro de Bolso Europa-América, sem esquecer os livros os Livros RTP, que tiveram enorme divulgação.

Neste movimento de renovação e valorização literária é de justiça lembrar o editor Joaquim Figueiredo Magalhães, que, à frente da Ulisseia, em meados do século passado, revolucionou o campo editorial português com a edição dos chamados livros de bolso. Joaquim Magalhães pensava o livro como algo que deve ser uma obra artística enquanto tal, numa síntese de inovação e acabamento, isto é, obras bem escolhidas, bem traduzidas e artisticamente servidas em termos gráficos. Foi arrojado, inovador, imaginoso e revolucionou a maneira como se faziam e distribuíam livros em Portugal, tornando-os sugestivos, artisticamente valiosos e acessíveis a todos. E demonstrando que o bem feito não é necessariamente caro e o mal feito barato. Até aos escritores começou a pagar mais altas percentagens do que era costume.

Mas penso que isto está a passar. Há já uns largos anos fui dar um seminário a mestrandos duma nossa universidade e muito espantado fiquei quando os alunos – já professores, ou candidatos a isso – a certa altura preferiram umas tantas folhas fotocopiadas ao livro correspondente, onde havia, de resto, muita informação útil para a sua formação, e que, pelo facto de haver ali vários exemplares, me dispunha a oferecer-lhos. As fotocópias pesavam menos e a doutrina nelas contida desapareceria em breve, o que seria um alívio.

Publica-se muito, nunca se publicou tanto como hoje, lembraram-me aqui outro dia, mas os escaparates das grandes superfícies, que já foram comparadas a eucaliptos a secar livrarias, são montras de horrores salpicados aqui e ali por livros de facto bons. E mesmo em algumas livrarias é preciso passar duas ou três filas de novidades, que nos são sugeridas, para chegar ao que interessa. O comércio do livro estará pujante, mas o livro parece desaparecer sob toneladas de livros impressos.

Por outro lado, o livro como objeto de uso corrente, como companheiro para as horas vagas, está a desaparecer, e penso que isso é fatal. Toda a gente, indiscriminadamente, cultos e incultos, gastam o seu tempo, as suas esperas e até as suas caminhadas usando e abusando dos telemóveis, percorrendo os olhos por notícias, anúncios, títulos, jogos, mensagens, isto é, recebendo estímulos instantâneos que não dão grande informação nem fazem pensar. 

Estamos, tudo o indica, e entrar num novo paradigma de difusão cultural e literária, e a questão é saber como é que se vai ficar depois disto.

João Boavida

2 comentários:

Carlos Ricardo Soares disse...

A paixão pelos livros existe e tentar explicá-la pode ser um desafio muito interessante, quando percebemos que é uma paixão muito secreta e estranha, até por dizermos que é paixão, em vez de lhe darmos outro nome.
Desde ser de tanta subjectividade que dificilmente se conceberá que alguém trate da paixão pelos livros sem ser apaixonado pelos livros, até à suspeita de que não haverá duas paixões iguais pelos livros, ou sequer parecidas, a paixão pelos livros é uma boa aproximação aos livros enquanto arte de tentar revelar e descrever e explicar paixões, esse reduto de subjectividade que alguns se atrevem a objectivar, acreditando e contando com alguma possibilidade da linguagem para o comunicar.
Cada paixão é única e, muitas vezes compreensível a partir, não de quem a vive, mas da interpretação que dela faz.
É problemático, para não dizer ilegítimo, falar de paixões sem aceitar entrar e falar das próprias paixões, como se pudessemos falar, em abstracto, de paixões concretas.
Duvido que haja paixão sem uma narrativa, embora nem sempre haja uma narrativa disponível e, muitas vezes, seja até impossível uma narrativa verdadeira de uma paixão.
Teço estes pensamentos ao pensar que fui e sou apaixonado pelos livros e que, ainda hoje, ao tentar reconhecê-lo e explicá-lo a mim mesmo, me surpreendo com a dificuldade de fazer-me entender o que é isso.
Se nem todas as paixões têm o seu quê de conflituosas (conflito interior), há paixões que o são muito e colocam o indivíduo num campo de batalha em que é invariavelmente vencido. Talvez por isso, há quem tenha como lema precaver-se de paixões e quem nem tenha de o fazer, porque não sabe o que é.
Os livros entraram na minha vida não à força, como a catequese, as orações, a escola, a cana da Índia, a palmatória, a polícia, mas com a sedução de poder rejeitá-los ou pegá-los a meu bel-prazer.
Quanto à catequese, escola, polícia, não vi alternativa à coerção. Quanto aos livros, nunca desisti de pensar que, enquanto não ler um livro, não sei o que ele encerra, e porque aprendi a namorar os livros muito antes de saber o que é amá-los, percebi que os livros são inesgotáveis fontes de prazer, por mais que nos revelem a escala que é preciso ter em mente, quando lemos.
E se esse namoro era do mais estranho e engraçado, para não dizer infantil, e envergonhado, que há, o amor ainda o é mais.
Mas como passar bem sem o que se ama?
Quem quer ver-se livre do que ama?

João Boavida disse...

Estou de acordo com tudo o que diz, este tema tem muitas pontas por onde se pode pegar. Nos livros está tudo, ou quase. O que lhe devemos está muito para lá do que podemos imaginar, por isso é que é tão difícil imaginar uma sociedade que os possa dispensar.

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