terça-feira, 25 de outubro de 2022

CENTENÁRIO DE REINALDO FERREIRA

Por Eugénio Lisboa

O poeta fala a todos os homens,
daquela outra vida que eles sufocaram e esqueceram. 
Edith Sitwell

Passa este ano o centenário de um grande lírico português – Reinaldo (de Azevedo e Silva) Ferreira – mais simplesmente conhecido como Reinaldo Ferreira, como o seu pai, o notório e talentoso Repórter X.

Como nem só do centenário de Saramago vive o homem, sendo até provável que, dentro de não muito tempo, Reinaldo seja uma presença mais viva e assídua, para os leitores, do que o autor de MEMORIAL DO CONVENTO, talvez não fosse má ideia assinalar o centenário do nascimento deste grande lírico português, nascido em Barcelona, em 1922, e falecido em Lourenço Marques, em 1959. Malhas que o império tece. 

Dizia Jean Cocteau que os poetas são, quase sempre, criaturas muito pouco poéticas. Reinaldo Ferreira, com a sua cabeça de fauno bom e afectuoso, era a personificação do poeta, mesmo fora da poesia escrita. Bondoso e mesmo generoso até dizer chega, desinteressado do dinheiro que ganhava com o seu talento, incapaz de fazer mal a uma mosca, contava-se dele esta história exemplar:
descuidado como era e vivendo sozinho, guardara na gaveta de uma mesa da cozinha, os papéis com os seus poemas manuscritos. Um dia, abrindo a gaveta, achou-a vazia. Chamou o empregado africano e perguntou-lhe se ele tinha mexido naquela gaveta. Ele respondeu que deitara tudo fora por pensar que eram papéis velhos e sem préstimo. A única reacção do poeta foi encolher filosoficamente os ombros e dizer: “Lá se foram sete anos de trabalho…” E nem sequer repreendeu o rapazinho. 
Este seu comportamento vale volumes de poesia. Tive o privilégio de estar com Reinaldo Ferreira, em Lisboa e em Lourenço Marques. Era um companheiro inesquecível e um conversador extraordinário. Fazia teatro no Rádio Clube de Moçambique, escrevia canções para marchas populares e revistas musicais, porque tinha grande facilidade de improvisação. Mas quando as jogava a sério, era de um teimoso perfeccionismo, que deu, aos editores da sua poesia póstuma, um trabalho infernal, para decidirem qual das várias versões de um poema era a definitiva.

Outra história que gostava de aqui contar é esta: 
tendo-lhe sido diagnosticado, em Lourenço marques, um cancro nos pulmões, aos 37 anos, foi a Joanesburgo, tentar uma opinião que lhe desse esperança. Ficou em casa da que viria a ser a minha grande amiga, Dianne Lidchi, bela pintora e mulher endinheirada. Contou-me ela que ficou muito impressionada com o comportamento de Reinaldo, porque, na noite do dia em que ele recebeu a sentença de morte, da parte do médico sul-africano, esteve todo o tempo a participar numa reunião que Dianne organizara em sua honra, exibindo uma brilhante convivialidade, como se nada de extraordinário lhe tivesse acontecido. Dianne Lidcchi ficou tão siderada com a sua coragem e o seu panache, que fez alguns retratos dele, dos quais sou hoje possuidor. Um deles serviu para a capa da primeira edição dos poemas, feita em Lourenço Marques, a expensas da Imprensa Nacional e graças ao esforçado labor de três amigos.
A poesia de Reinaldo foi imediatamente saudada, após a sua publicação, em Lourenço Marques. Figuras como José Régio ou David Mourão-Ferreira logo o saudaram como grande poeta português de qualquer tempo. No Brasil foi saudado por críticos e professores universitários, tendo um deles afirmado alto e bom som que Reinaldo Ferreira era o maior poeta português do século XX, logo a seguir a Fernando Pessoa, o que enfureceu Jorge de Sena, que reclamou esse lugar para si próprio. Mas, quando, em 1972, passou por Moçambique, pediu-me encarecidamente que lhe arranjasse a primeira edição dos POEMAS, do malogrado poeta. Sena era colérico mas não era mesquinho. Os famosos Jograis de S. Paulo logo o incorporaram no seu reportório. 

Há muita gente, sobretudo sociólogos e políticos, para não falar em economistas, que são de opinião que a poesia não serve para nada. Há não muito tempo, um conhecido sociólogo dizia, preto no branco, que essa coisa das artes e letras era coisa para se ensinar fora das horas normais de aulas. A epígrafe roubada à poetisa inglesa, Edith Sitwell, de algum modo responde a esse tipo de enormidades.

Mas, já agora, junto e termino com esta admirável reflexão do grande poeta Dylan Thomas: 
“Um bom poema é um contributo para a realidade. O mundo nunca mais fica o mesmo, desde que um bom poema lhe é acrescentado.” 
Eugénio Lisboa

8 comentários:

Ildefonso Dias disse...

Quando leio aquilo que o Sr. Eugénio Lisboa escreveu sobre o nosso único Nobel - José Saramago - recordo a arrogância de Mark Twain, e a descrição nos Simplórios no Estrangeiro, contando as suas viagens na Europa.

"A gente destes países estrangeiros é muito ignorante. Olhavam curiosamente para as roupas que levávamos [...]. Observavam que às vezes falávamos muito alto à mesa... Em Paris ficavam a olhar, de olhos espantados, quando lhes falávamos em Francês! Nunca chegámos a conseguir que aqueles idiotas compreendessem a sua própria língua."

Idiotas, é o que nós somos, porque não compreendemos o Sr. Eugénio Lisboa como os idiotas Franceses, idiotas, que não percebem a sua própria língua.

Anónimo disse...

Os que falam insistentemente no "nosso único Nobel" dão um lamentável testemunho de parolice. Além do mais, esquecem-se de Egas Moniz. Pensar que Saramago, só por causa do Nobel, é o nosso maior, só por ignorância e provincianismo. No século XX português há um bom punhado de escritores bem mais importantes e interessantes, como artistas e como pessoas, do que o pobre do Saramago. Pinheiro Chagas foi dos homens mais agraciados e prebendados do seu tempo, mas a posteridade põe-no bem abaixo de um punhado de gigantes muito superiores. ID é um pobre deslumbrado, a quem a leitura não tem feito nenhum bem. E é um caricato citador. E eu constituí-me, para ele, uma obsessão, o que, já disse e repito, não é do domínio da literatura. Quem trata de obsessões é outro tipo de profissional. Confesso que me não sinto nada honrado com a atenção persistente deste senhor. Acho que gente desta é um perigo social. Ver o que aconteceu a Salmon Rushdie!
Eugénio Lisboa.

Ildefonso Dias disse...

"... é absurdo fazer depender o prestígio da literatura portuguesa de se ter ou não se ter o Nobel" [José Saramago - Cadernos de Lanzarote]

Anónimo disse...

Curiosamente, essa sensatíssima citação de Saramago veio dar-me razão a mim e não ao Sr. Ildefonso Dias. Não fui eu quem andou embevecidamente a falar no "nosso único Nobel". Se o Sr. Ildefonso Dias veio trazer essa citação, por humildemente reconhecer que errou, dá-me imensa satisfação. Ao fim e ao cabo todo o ser humano tem direito à redenção. Bem está o que bem acaba!
Eugénio Lisboa

Alberto disse...

Mais do que Portugal ficar a dever o prémio Nobel a Saramago, é Saramago que deve o Nobel ao Portugal d`aquém e d`além mar. Os países protestantes, que fizeram um país como a África do Sul, onde os colonos europeus ainda hoje têm lugares de destaque, e os países comunistas, onde quem mandava era a Rússia, podiam estar roídos de inveja das colónias portuguesas, mas, tinham de reconhecer o facto de a língua portuguesa ser uma das mais faladas no mundo. Evidentemente que atribuir o Nobel a um português, nos tempos de Salazar e Caetano, estava fora de questão. Dá-se o 25 de Abril, Portugal abandona as províncias ultramarinas e os senhores do Nobel, sobrepondo os seus critérios geopolíticos aos de natureza literária, atribuíram o Nobel da Literatura a um comunista português.

Anónimo disse...

Já agora, devo uma observação a Ildefonso Dias e a Alberto, com todo o respeito. O meu texto não era sobre Saramago, mas sim sobre Reinaldo Ferreira e a oportunidade de se assinalar condignamente o seu centenário. Quando se usa a secção de comentários para se discorrer sobre um texto, deve comentar-se o verdadeiro miolo desse texto e não uma vírgula mal colocada ou uma observação lateral que ele contenha e não seja o seu conteúdo central. O que frequentemente se faz é pegar num pequeno pormenor irrelevante do texto e fazer disso o miolo dos comentários. Depois, todos os comentadores subsequentes, por arrasto, comentam esse comentário a uma parte lateral do texto publicado no DRN. Seria o mesmo que comentar a teoria da relatividade, dizendo que Einstein não se sabia pentear. Estou, claro a exagerar, mas o exagero é, como a caricatura: põe os nossos erros em relevo.
Eugénio Lisboa.

Ildefonso Dias disse...

O que prova, é que o sr. Eugénio Lisboa tem andado, por todo o lado, a vilipendiar o homem com as ideias do próprio homem.

Quero dizer-lhe ainda, que José Saramago, prémio Nobel da literatura, pouco ou nada deve a este país, sabe porquê? porque Saramago pertence ao povo, aquela casta de que nos falava o Manuel Mendes.

«Temos vivido os mais espantosos anos de humilhação e desprezo, de arrogância e arbítrio, de presumida bazofiante, ignara petulância que imaginar se pode, sinto que, do meu bando, da casta a que pertenço, nada ou muito pouco temos a ver com os destinos da terra que nos viu nascer, pertencemos ao povo, aqueles a que não cabe um lugar ao sol, persistimos na mesma miséria, - a do pão e a do espírito.»

Isto foi em grande parte a vida de Saramago... tão diferente da vida abastada que Portugal proporcionou e proporciona ao sr. Eugénio Lisboa.

billyroberts disse...

Quando leio aquilo que o Sr. Eugenio Lisboa escreveu sobre o nosso unico Nobel - Jose Saramago - recordo a arrogancia de Mark Twain, e a descricao nos Simplorios no Estrangeiro, contando as suas viagens na Europa.

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