quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O LIVRO

Por João Boavida

O livro é ainda, na nossa civilização, um objeto de prestígio; até de culto, para muitos. Compreende-se porquê. O livro foi o grande veículo cultural e espiritual de toda a civilização ocidental. Desde as tabuinhas com caracteres cuneiformes, na Mesopotâmia, e de várias placas presas por dobradiças, até ao objeto que conhecemos hoje a evolução foi contínua.

As necessidades da vida social exigiram sempre mais registos, e o texto cada vez mais corrente obrigou a passar desse objeto primitivo ao rolo, ou cilindro, e deste, provavelmente por exigência do próprio texto e do que lhe passaram a exigir, ao códice. O que era predominantemente um veículo de orações monótonas ou ladainhas monocórdicas e repetitivas, como cilindro, transformou-se num objeto de estudo ou de usufruto, de consulta mais acessível, no códice. E, portanto, com muito maiores capacidades de divulgação do seu conteúdo pois era mais fácil voltar atrás, reler, comparar, verificar, localizar certas passagens, repetir para compreender ou memorizar, etc. 
 
Para lá da comodidade de utilização e de capacidade de armazenar conhecimentos, era um elemento muito mais capaz de conservar e transmitir às gerações seguintes os conhecimentos entretanto adquiridos, ou recuperados, potenciando o desenvolvimento pelo contínuo acréscimo de elementos informativos e de produtos culturais a um número crescente de utilizadores.

Acontece ainda que a modernização do livro e a possibilidade de conservar e divulgar, desde logo a Bíblia, muitos textos dos padres e dos doutores da Igreja e filósofos gregos e helenísticos, que a teologia ia buscar para seus fundamentos e razões, foi um elemento essencial para a constituição da Europa medieval, sobretudo para a sua unidade religiosa e política. Sem a contribuição do elemento cultural e religioso é-nos hoje difícil imaginar como poderia ter-se conservado a cultura greco-romana e a própria cristandade, e o que seria hoje a Europa sem isso. Carlos Magno, no século IX, percebeu-o ao mandar que os copistas dos conventos copiassem numerosos exemplares da Bíblia e de outros textos sacros para os divulgar por conventos e mosteiros, dando uma base espiritual e cultural à política, e assim auxiliando à união, pela religião e pela cultura, do Sacro Império Romano-Germânico.

O aparecimento do papel na Europa, durante a Idade Média, (que fora inventado pelos chineses no século III) foi outro elemento potenciador do valor cultural e social do livro. A produção anterior era restrita e cara. O papiro (uma espécie de caniço, ou junco, cortado em tiras) era usado há muito, mas era de utilização restrita e difícil. O pergaminho, de origem animal, que começou a ser usado em Pérgamo, era caro e nem sempre as quantidades disponíveis eram suficientes. A utilização cada vez mais generalizada do papel potenciou a produção e divulgação do livro, tornando-o um catalisador pessoal e social da maior importância.

A esta divulgação, resultante da necessidade de transformar o livro num objeto corrente e mais acessível, não é alheio o aparecimento das universidades um pouco por toda a Europa, durante a Idade Mádia. As universidades de Bolonha e Oxford, ainda no século XI, Salamanca e Paris no século. XII, Pádua, Cambridge, Nápoles, Siena, Coimbra, ao longo do século XIII e muitas outras pelos séculos seguintes, tiveram uma grande importância. Vivendo à base de livro e vindo a constituir uma capilaridade cada vez mais fina, são também determinantes para a construção e fortalecimento da Europa.

A cultura, que fora, durante séculos, monástica e conventual, ou seja, restrita, expandiu-se incessantemente a partir daí. Por outro lado, ela que fora predominantemente teológica e filosófica, foi-se tornando jurídica, astronómica, geográfica, matemática, naturalista, médica, em suma, científica e laica, e cada vez mais ao serviço de uma sociedade com outras necessidades, possibilidades e diversidades.

Se acrescentarmos a isto a descoberta, por Gutenberg, cerca de 1440 da imprensa - os carateres móveis, as ligas resistentes, as tintas e todos os processos ligados à impressão, reconhecemos a rapidez e quantidade de produção de cultura infinitamente maior que a dos copistas. Podemos, portanto, imaginar o que isto significou em progresso na produção e difusão cultural. E até, com é sabido, no próprio domínio religioso, pela importância que teve para a difusão do Luteranismo e do Calvinismo.

Daí termos boas razões para associar a imprensa e a grande produção de material impresso ao fim da Idade Média. Uma vez que a queda do Império Romano do Oriente não parece a razão única, nem talvez principal, sobretudo aos olhos de hoje, somos levados a perceber que um período de cerca de mil anos não foi substituído, de repente, com a queda de Constantinopla em 1453, como quem empurra, do assento, alguém que há muito tempo o ocupa e só sai à força.

As razões são muito mais complexas e interativas, e o livro está lá bem no centro de todas elas, possibilitando-as e vitalizando-as. É claro que adquirir, conservar e divulgar conhecimentos já fazia parte da Cultura Clássica, mas era por grupos muito restritos e fechados, iniciáticos até, e geralmente em escolas ou academias. A transformação do livro em objeto corrente e acessível alterou profundamente o acesso a essa cultura.

Podemos até colocar um problema: Foi o livro que, desenvolvendo e divulgando a cultura para fora dos domínios eclesiais deu origem ao Renascimento e à Idade Moderna, ou o livro modernizou-se porque se estava sentindo necessidade de criar meios de produção e divulgação cultural que as sociedades mais desenvolvidas necessitavam? Foi o livro que divulgou a cultura, e esta originou a mudança, ou foram as mudanças sociais e culturais que exigiram uma maneira eficiente e rápida de divulgar informação, dinamizando a produção de livros?

Como noutras situações semelhantes terá havido múltiplas interações que permitem compreende melhor o processo. O que importa é o modo como a utilização generalizada do papel e a invenção da imprensa vieram dar ao livro um potencial de crescimento e uma influência até aí nunca vista. Porque, é óbvio, se as universidades exigiam muito maior produção livreira, esta, por sua vez, tornou possível uma Universitas, ou seja, uma visão englobante do universo cultural do tempo.

As viagens traziam notícias espantosas, mas como divulga-las sem os livros? E a Natureza, como fonte extraordinária de descobertas e de conhecimentos novos, como seria possível ensiná-los e divulgá-los se uma população cada vez mais ansiosa de saber não tivesse tido os livros como agentes principais? 

E sabermos a importante contribuição que demos para esse conhecimento é motivo de orgulho: o Livro das maravilhas do Mundo, de Rusticiano de Pisa, que ficou conhecido como as Viagens de Marco Polo, nos finais do século XIII, a Primeira viagem em redor do Mundo, de António Pigafetta, o cronista de Fernão de Magalhães, pelo qual ficamos a conhecer quase tudo o que ocorreu na primeira viagem de circunavegação, a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, também nos princípios do século XVI, com tais relatos, descrições e peripécias que acharam que ele não podia senão estar a mentir, embora não estivesse, como conheceríamos tudo isto sem livros? 

E as observações de outras plantas e animais, de outros mares, de outros fenómenos atmosféricos, como se divulgariam sem os livros? A influência que tiveram para o dealbar da ciência livros como o Esmeraldo de situ orbis, de Duarte Pacheco Pereira, nos princípios do século XVI, As sete Centúrias de João Rodrigues - o Amato Lusitano - na primeira metade do século XVI, o Colóquio dos Simples, de Garcia da Orta, já na segunda metade do século XVI, etc., como poderiam ter a influência que tiveram sem eles?

O processo nunca mais terminou, pelo contrário, sempre em crescendo, trouxe até nós uma riqueza incalculável, inimaginável mesmo alguns séculos antes. Porque, sem quase sem darmos por isso, pensamos em Galileu, Descartes, Espinosa, Kepler, Newton, Leibniz, Rousseau, Kant, Hegel, Marx, Darwin, Einstein, Bhor, Planck, etc., etc. 

E se passarmos a uma espécie de “segunda divisão” o número de cientistas e filósofos que fizeram de nós o que somos, e o que podemos, não tem limite e chega a causar vertigens. Depois, se pensamos nos literatos, sei lá, de Vergílio e Dante a Fernando Pessoa, de Shakespeare, a Dickens, de Emile Brontë a Tolstói, de Tchekhov a Clarice Lispector, a riqueza e a beleza literária produzida é imensa. 

Se pensarmos, também aqui, numa “segunda divisão” (com todo o aleatório que isto implica) que seria dos milhares e milhares de autores que produziram literatura, da mais variada qualidade, mas que ajudou aqueles a chegar tão alto? A vertigem anterior talvez aumente ainda. E que pensar se tentarmos avaliar o fator de humanização e de formação, de crescimento, em suma, que toda esta produção trouxe para o género humano? 

Em resumo, em todo este longo lapso de tempo, cerca de mil anos que levam as chamadas Idade Moderna e Contemporânea - tantos como os que durou a Idade Média - o livro foi rei e senhor no armazenar, conservar e divulgar conhecimentos. Sobre ele e através dele se guardou toda a produção cultural e científica da humanidade, e neles se conservou e difundiu toda a imensa, e imensamente rica literatura do Ocidente.

Chega a ser comovente pensar que foi o livro, esse objeto humilde e silencioso, a dar voz a tantos que doutro modo a não teriam. E sempre num abnegado esforço de servir, sofrendo, sem um lamento, o peso dos prelos; o aperto das prensas, o dilacerar das agulhas e das coseduras e o incómodo das colas; e todo isto sem um lamento, Ele a todos serviu e dele todos se serviram; como poderemos nós agradecer-lhe suficientemente se o que lhe devemos não tem medida? 

É impossível imaginar onde teríamos ficado, em termos culturais e civilizacionais, se não tivéssemos os livros ao nosso dispor, mas podemos ter a certeza que teríamos ficado muitos séculos lá atrás. 

Ora, é justamente essa magnífica invenção, essa extraordinária força propulsora da nossa civilização que parece estar em perigo. 

Será que já todos nos capacitámos disso? 

João Boavida

4 comentários:

Mario Ricca Gonçalves disse...

Não está em perigo, não. Nunca se editou tanto, nunca houve tantas livrarias (excepto em Portugal) quer de livros novo, quer usados, nunca se vendeu tanto (a amazon que o diga - a internet também está ao serviço do livro), nunca houve tantos autores - qualquer um, na verdade, edita livros, sejam romances, policiais, culinários ou de aconselhamento. Só Filosofia é que não, esse saber que já foi dominante na edição de livros (cultura monacal) hoje é irrelevante. Não há filósofos. De resto há tudo, e muito mau, a minha razão de queixa é não haver nehuma censura ao que é mau. Vafés e restaurantes, hotéis e ginásios têm livros. Alguma vez se viu tal coisa? Não há centro comercial nem aeroporto sem livraria, todas as cidades inglesas mesmo pequenas têm biblioteca. Biblioteca! Lembra-se quando no mundo havia só uma ?

João Boavida disse...

Estou de acordo, nunca se editaram nem venderam tantos livros como hoje. Mas isso pode não ser suficiente, a longo prazo, para estarmos seguros de que o livro terá um futuro igual ao passado, e que a espécie humana lhe continuará a agradecer tudo o que lhe deve. Claro que isto é um sentimento de receio, e a dinâmica comercial é-lhe alheia e resolverá o problema à sua maneira. Mas não consigo pensar neste perspetiva onde o livro for dispensado porque, lá está, muitos dos meus sentimentos devem bastante aos livros, como, de resto, a muita gente. De qualquer modo, obrigado pela sua participação porque o assunto tem muitas vertentes.
Quanto à filosofia, ela continua a fazer-se, a propósito da política, da sociologia, da economia, da educação, da arte, da inteligência artificial e de tudo o que nos seja problemático. Disfarçam-na, ignoram-na mas ela renasce a cada instante e rindo dos que a negam ou tentam desprezar.

Carlos Ricardo Soares disse...

Terei sido o único leitor a aperceber-se de que desapareceu, sem deixar rasto, um comentário que fiz neste espaço no dia 28 de setembro? Já é a terceira vez que coloco comentários e os vejo desaparecer misteriosamente. Se alguém tiver uma explicação, agradeço.

Helena Damião disse...

Prezado Leitor Carlos Ricardo Soares, não me apercebi disso. As tecnologias são, por vezes, falíveis. Se voltar a acontecer, por favor diga-nos. Obrigada e cumprimentos, MHDamião

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