Sereno e recordo o pai a partir de bicicleta para o moleiro do Zambujal, com um saco de arroba e meia de trigo, e a voltar de noite, com um sorriso, depois de atravessar as trevas adensadas pelos pinhais imponentes da Gândara, ao encontro das premonições sombrias da mãe. Recordo a mãe, com as hábeis mãos em concha e os braços frenéticos, a peneirar a fina farinha de trigo e a baldear para um balde o farelo trigueiro. Recordo a mãe, com os braços incansáveis e os joelhos fincados no chão, a amassar e estirar a massa para o pão, a pedir-me, arquejante, para arregaçar-lhe as mangas e entornar um gole de água quente no alguidar. Recordo o crepitar das vides e dos ramos secos de oliveira no interior do forno, o ruído do espeto de pau de espalhar as brasas rubras e do arrasto do rodo. Recordo a mãe, com as hábeis mãos em concha, a moldar o pão, a polvilhar a superfície da mesa de madeira e a pá com farinha. Recordo a mãe, com os braços incansáveis e os punhos nas manhãs azuis de domingo, a esfregar a roupa no tanque, com sabão azul e rosa, a mergulhá-la na água, num fragor, e a torcê-la com veemência e ardor. Recordo a mãe e o pai. O pai, dentro de uma oliveira, a serrar este e aquele ramo para se mover, a vibrar a vara de eucalipto e a azeitona a cair, na rede e nos panos, como chuva grossa no asfalto; debaixo de uma oliveira, a mãe, ajoelhada no pano de rede, a joeirar a azeitona com os dedos, depois a enfiar a boca do balde no monte, só com azeitonas e folhas, e a despejá-lo num saco. O pai, na serventia da casa, de terra batida, a limpar a azeitona: a jogar mancheias contra o vento, as folhas a caírem para trás e as azeitonas a baterem na elevação do pano de rede e a acumularem-se num monte. A mãe a salgar a azeitona, retirando o sal do saco com um prato, e, com a mangueira, a verter água para os poceiros. Recordo a mãe e o pai laborando como duas andorinhas na nidificação de um ninho e na proteção dos filhotes.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2022
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